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Writer's pictureJurpontonal Nova Law Lisboa

1ª correspondência



Cemitério de Lisboa (campa no1312), 6 de abril de 2023


Meu Evaristo,


Agora que a poeira já assentou, e que eu já sei agarrar na caneta, posso finalmente escrever-te. Tem sido complicado encontrar uma superfície plana onde assentar a folha, penso que ninguém ponderou a necessidade essencial dos mortos escreverem.


A vida após vida é tão escura quando está de dia, e ilumina-se tanto à noite, quando as velas se acendem e as flores ganham cores especiais (se bem que eu sempre disse que não queria flores). Como estão as nossas filhas? E as galinhas, ainda põem 2 ovos ao dia? Às vezes, o chefão aqui da zona decide ligar a nossa televisão ultra-mega-enorme, e põe a dar as nossas memórias. Olha, ontem passaram as da Zezinha, e hoje passaram as minhas. Para ser honesta, eu só pedia para que passassem “Os Batanetes”, assim à noitinha, e que pusessem também a dar o som das gargalhadas da Filipa. Aquela cabrita, nossa neta, ria desalmadamente. E só assim é que o programa tinha graça.


Espero que continues a dar as caixas das batatas ao Miguel. Aquele palhacinho, nosso neto, bem se metia lá dentro e deslizava com a terra pelo campo fora. Diz-me, por favor, que não partiu mais dentes. Ele já tinha uns dentinhos tão afetados. Em parte, era minha culpa, mas querias o quê? Que eu desse cenouras na Páscoa? E brócolos no Natal?


Mal posso esperar por te apresentar à malta daqui. Quando estiveres a chegar, avisa, tenho de fazer a cama e preparar o teu almoço favorito. Até te arranjo umas bolachinhas e um vinho tinto. Sinto falta de, sorrateiramente, mergulhar os lábios no teu copo, e de te gritar “ALTO! ALTO! CHEGA!” quando insistias “Se queres beber, eu encho-te o copo!”.


Parece que vos conheço a todos tão bem... Guardo com todo o carinho a voz da Filipa; o olhar traquina do Miguel; os teus aconchegos ao fim do dia; até as discussões tontinhas das

nossas filhas. Conheci-vos a todos tão bem, e não podia orgulhar-me mais disso (ainda que de momento o meu maior orgulho seja ter chegado aqui primeiro que vocês, já tenho lugar reservado no sofá, bem ao lado da nossa coelhinha).


Sempre tive medo de não me ter dado a conhecer tão bem quanto devia. Mas quando olho aí para baixo, e vos vejo a amar-me com tanta força, tudo desvanece. Lembro-me de como vos deixei e das saudades que tenho. Acredito que, se o meu nome ainda continua convosco, talvez vocês me tenham amado mais do que deviam. Seus totós, já deviam saber que as pessoas morrem. E agora? É suposto eu guardar o vosso amor onde? Eu já nem corpo tenho!


Andei em pés de lã a vida inteira, só para que, quando me fosse, nem notassem que eu não

estava. Talvez a lã fosse grossa demais e eu tenha deixado um rasto de fio no chão.


Perdoem-me.


Os maiores beijos “cagadinhos” que tenho em mim,


Emília


P.S.: compra aquelas gomas dos tubarões azuis para o Miguel. Para a Filipa, qualquer chocolate serve.





Lisboa (na nossa casa), 13 de abril de 2023


Minha Emília,


Morro de saudades dos teus berros a chamar-me para a mesa. Pereço de saudades do teu cheiro, antes de tomares banho. Faleço de saudades da minha ajudante da apanha de fruta. Bato a bota com saudades tuas. Todos nós batemos. Saudades de nos afagares nos teus abraços, até dos teus beijinhos “cagados”. Andamos todos como se fôssemos bombas relógio, à espera que o primeiro expluda em lágrimas, só para que se torne legítimo o choro coletivo (não vou ser eu o primeiro a ceder, isto eu não perco).


Fico feliz por te terem ensinado a escrever, e que bonita que é a tua letra. Tenho pena que eu não tenha tido o vagar para te ensinar. As tuas cartas fizeram-me falta nos tempos de guerra, mas agora fazem muito mais.


As nossas meninas continuam a marrar uma contra a outra, mas nada que não se suporte. Olha, vendi as nossas galinhas! Juro que foi por um bom preço... Agora temos coelhos! Fiquei desolado quando a nossa coelha se foi, logo depois de ti, então tive de arranjar mais.

Ias adorar estes, têm um pelo mais macio que o teu cabelo (ainda tens cabelo?).


Eu contento-me com a nossa televisão de 4 canais. Ainda vejo “Os Batanetes” com a nossa neta, mas ela já não se ri. Começo a achar que fazia de propósito só para tu te rires. Agora percebo porque gostavas tanto de dar doces ao Miguel. Ele tem de arranjar energia em algum lado para descer o monte, enfiado nas caixas de batatas. Só pode ser o pico do açúcar a dar-lhe o empurrão inicial, já que não pode contar com as tuas mãos.


Deixa que, quando faltar pouco para te voltar a chatear, eu mando-te uma carta a avisar. Eu sei que não se deseja a morte a ninguém, mas por favor, deseja a minha.


Cada um dos que cá deixaste conheceu uma “Emília” diferente. E cada um de nós amou essa tua versão de modo diferente, mas na mesma intensidade. Gostava que houvesse um concurso qualquer de “Quem amou mais a Mila?”, só para que fosse um tremendo fracasso.


Quase como aquela vergonha do “Quem quer namorar com o agricultor?”. Agora já nem posso ter o nosso terreno e os meus coelhos em paz, que de 15 em 15 dias passa uma carrinha da tvi a perguntar se estou viúvo... Não te preocupes, Milita. Eu finjo sempre que

estou a ter um ataque e eles fogem a sete-pés.


Até podes ser lembrada por poucos na aldeia, mas acredita que esses poucos produzem mais amor, do que o padeiro produz pão. Andaste tu, metida por entre as ovelhas, com medo de ser conhecida, para agora nem teres onde arrumar o amor que sobrou de ti.


Guarda-me um lugar no sofá ao teu lado (e diz aí ao patrão para ir arranjando uma tv cabo,

quero ver “O Preço Certo” quando aí chegar).


Mil beijos do teu eterno,


Evaristo


P.S.: Não te preocupes, já tratei disso. Ainda que eles tenham saudades de receber as guloseimas vindas de ti.

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