Lá está ele, dentro da festa, dançando intensamente. Trata-se de um movimento estranho àquele comum, que é pouco elaborado, seguro e estável, apreciado pelos leigos. É um devir dinâmico e fluido. A sincronia do indivíduo com a música pode não ser perfeita, mas nota-se o esforço, a dedicação para cumprir o grande desiderato naquele momento, a satisfação incondicional. De repente, o evento torna-se um show para o qual ninguém pagou ingresso. A cor da cerveja na mão direita parece mais reluzente e o cigarro à mão esquerda, ui, delicioso! Outro ponto interessante a se notar é o sorriso. Não é aquele tímido e resguardado e nem aquele totalmente aberto, para mostrar todos os dentes. É trêmulo, cansado e incerto do que quer ser, isto é, incongruente com o sentimento externalizado pelo indivíduo; O que seria surpreendentemente inadequado, certo? Por que estar a hesitar neste aspeto se já se entregou a todas as tentações, oportunidades e prazeres momentâneos? O sorriso é, na verdade, uma última fagulha da interioridade humana a tentar encandecer a distorção que sofre, a procurar cessar este estado ilusório ao qual o indivíduo se submeteu. O homem, agora, aparenta ser e aparenta estar, apenas isso!
Contudo, esta forma de conduta não surge inconscientemente, ou por uma força maior, não é algo tão reducionista como um fundamentalista religioso poderia dizer que são “as forças do Diabo agindo sobre jovens transviados”. Na verdade, a situação é apenas o ato final de uma obra de ficção construída tanto pelo equivocado entendimento de que deve haver uma resposta firme e imediata face às incertezas, inseguranças e preocupações provenientes da árdua e tortuosa rotina humana quanto pela perigosa distorção do que deve ser a prossecução da felicidade e a busca incondicional pelo famigerado “viver intensamente cada momento”. Portanto, o grand finale é o completo desvirtuamento e a brusca transformação de valores, como a ponderação, a felicidade, a apreciação da beleza humana e às vezes, a sexualidade; em sentimentos puramente físicos e esvaziados de sentido conduzidos em horas noturnas, que tentam imprimir a inquietação perante estes valores nas ofertas e tentações abundantes no mundo terreno, tais como rebuscados e atraentes objetos, substâncias, ou, até mesmo, indivíduos, que se submeteram à mesma distorção.
Ademais, é fator preocupante que estas distorções não são apenas casos isolados ou esporádicos, mas elementos que afetam uma crescente abundância de indivíduos facilmente identificáveis. Cada vez mais são vistas aquelas “comuns personalidades”, caracterizadas pela estranha dança e pelo duvidoso sorriso, regurgitadas na mesma ilusão. Ainda por cima, esta experiência, por ser “fácil” e sedutora, é vendida pelos seus participantes como o antídoto para as vicissitudes da vida e a pílula da felicidade, no intuito de atrair mais pessoas para participarem nesta grande ilusão coletiva. Então, a festa, para alguns, torna-se um evento quase místico, um porto seguro para os que vêm de um tortuoso caminho e um momento apoteótico capaz de sanar abruptamente a necessidade de felicidade do Ser Humano. No tocante ao aspeto da docilização do Homem, que se acostuma com a subversão do mundo à sua volta, vale trazer Fiódor Dostoiévski, que o trata, mesmo em uma situação distinta, na sua fantástica obra “Crime e Castigo”: ‘’Que poço, contudo, souberam abrir, e usufruem! Usufruem mesmo! Acostumaram-se. Primeiro choraram, e depois se acostumaram. O vil homenzinho se acostuma a qualquer coisa!’’
Todavia, por outra perspetiva, a dose de realismo necessária para este desorientado “vil homenzinho” só poderá decorrer de forma eficiente se perpassar pelo próprio. Em um certo ponto, cansado de tamanho esforço empreendido e encarcerado pela manipulação sentimental a que se submeteu, finalmente, para e vai à casa. É nesta localidade, o seu verdadeiro porto seguro, em que vai render-se à calmaria e começar a recapitular, agora em um novo estado de espírito, o turbilhão em que investiu, bem como o seu real significado, chegando, em última instância, à mera desilusão. Afinal, quem nunca se cingiu à profunda reflexão após uma experiência de extremo regozijo e indagou-se sobre o seu real significado, isto é, o que se aproveitou e o que foi efémero, ou melhor, o que se construiu e o que se destruiu? Após a repentina deceção tomada como resposta que, contudo, se encontra a esperança para uma mudança de atitude: permitiu-lhe lembrar, em meio àquela espetaculosa forma de agir, daquele hesitante sorriso, poderosa reminiscência simbolizante da essência do Ser Humano, que é capaz de se abstrair das atraentes ilusões, e de, em um passo não-trivial, erguer-se ao Mundo de forma consciente, sem deixar nada de lado*.
Portanto, agarra-te ao sorriso. Rebobina os teus momentos, vai ao início e recomeça! Ainda há tempo.
*Para um maior aprofundamento, ler “O Senso Religioso” de Luigi Giussani, uma abrangente interpretação do Homem.
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