Nunca provei mel. Nunca diretamente do pote, nunca com uma colher, nunca na ponta dos dedos. Mel sempre esteve barrado em excesso sob cacos de um pote de vidro, no chão da minha casa de banho. Pote de vidro esse que, depois de ter insistido ficar cerrado à força das minhas mãos desesperadas, caiu no azulejo e criou uma pintura semelhante às de Kandinsky. Pego nos pedaços maiores daquela mistura contranatura, para tentar reter o maior doce possível nas minhas papilas gustativas, mas fico com a língua em sangue imediatamente após a primeira lambidela. Acabo por provar o meu próprio sangue, por diluir a saliva que me resta na textura do vidro. Nunca provei mel. O mel que eu melhor conheço está no fundo da arma com que disparo um tiro no meu pé direito. Só depois de soltar a bala, no único alvo possível, é que ele escorre. Pinga para o chão que piso, e ainda assim, tento deitar-me de barriga para baixo, e lamber o que consigo. Torno a minha casa de banho um local de crime horripilantemente açucarado.
Há dias sonhei que tinha provado um dióspiro sem fios. Que tinha vindo parar ao meu prato a fruta perfeita. Que podia abri-la, desfia-la, tirar uma colher da gaveta e espeta-la no seu interior carnudo e alaranjado. Levar à boca e perder-me. Sonhei que estava ali mesmo, à minha frente, que bastava arrastar a cadeira para mais perto e pegar-lhe. Riscar o chão de madeira com os pés da cadeira, para alcançar a perfeição. Espernear-me, inclinar-me para a frente e para trás para tentar ganhar balanço. A cadeira não é o baloiço do parque infantil, fico sempiternamente estagnada na iminência de estar tão perto, mas tão longe. Ver trilhos e trilhos de tentativas nas tábuas de madeira que piso e repiso, em vão de me aproximar da mesa. Reparar na quantidade de linhas aos zigue-zagues que tenho em volta das meias às riscas, e perceber que já tentei todas as combinações e que talvez precise de alguém para empurrar as costas da cadeira em que me sento. Juro partilhar o dióspiro.
Hoje, a cama abraçou-me com mais força, desde o amanhecer ao anoitecer. Fiquei presa no conforto, sem coragem de dele sair. Tive direito a piedade e empatia, e jantar levado num tabuleiro. Tinha esparguete com bastante cenoura, raspada das profundezas do tacho de propósito para mim. Tinha uma taça com banana cortada e outra com uma pera rocha fatiada, da mais rija. Tinha amor em cada pedaço de vidro amolecido. Tive um conforto maior no coração, do que em todo o corpo, que repousava na cama desde o dia anterior. Quem me arranjou o tabuleiro queria que eu provasse mel. Sabe bem saber que há quem saiba o que me sabe bem.
Nunca provei mel. Mas uma vez, ao andar à chuva com a pessoa que mais admirava, vi como as gotas de água se depositavam nas suas pestanas, e como, distraída, pouco ou nada se importava com o facto de dar casa à chuva foragida das nuvens, do conforto de uma almofada fofinha. Os seus olhos eram os mais bonitos que eu alguma vez tinha visto, tanto que me lembro de invejar a posição daquelas partículas alcalinas. Falávamos sobre o que faríamos mal viesse o verão, porém, eu dava tudo para estarmos impotentemente presos a um inverno chuvoso. Ali, naquela calçada escorregadia, e com um corpo caminhante a meu lado, jurei ter provado um pingo de mel.
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