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Lápide

Blazer cor de mau gosto, ele era falso e tinha os pés gordos. Nos bolsos não lhe assenta sequer o desprezo, porque os vencidos nem a pormenores se dignam.


Com um sorriso de uma vida a outra, chegou ao local combinado, uma sala de chuto onde os cadáveres adiados vão gastar as pensões que já não têm. Estava fechado para férias dos clientes. Restou-lhe a alternativa, que não basta, mas sobra, de velar o tempo e o encontro.

Sempre chega aonde não procura, cede à precipitação da pontualidade e ao alprazolam, senta-se na cadeira dorida de costas para os sentidos dos outros. Pediu a bebida dos imaturos e só se levanta, encolhido e grande, para a cumprimentar com um abraço breve e volta a sentar-se com os botões do blazer ainda comprometidos.


Ouviu um silêncio e calou-se. O olhar dela falava-lhe às fraquezas e ele estava morto como os pobres e sem saber o que dizer como os mortos:


“Se ao menos Vénus não fosse tão pouco”


Puta que pariu os dicionários ilustrados de mitologia grega e romana que só servem para encher os Homens das banalidades orquestrantes, cheios de tesão, e, que não me perdoem o eufemismo, que se acreditam e são vendidos porque e porque se vendem.


Ele descrevia-lhe um passado sem presente que não se percebia a menos de uma vida de distância. Ela só ouvia divagações sobre a profundidade do raso. Eu ia-lhe vendendo umas vírgulas. Ela era fria, mas fresca. Tudo nela era enxuto, menos o verbo e o Verbo e eu tinha dificuldade em mascarar a cólera...


“Desculpa-me as incoerências, mas é a única coisa que tenho”


No amor todos os lugares são de pendura.


“Eu até te ajudava a ser feliz, mas não me calha em caminho.”


Ficou ela com as qualidades cheias de defeitos, mas nem isso. A rejeição é uma ciência obscura e eu, se pudesse, também me abandonava.


O tempo passa, mas só amassa as tentações. Ele enquanto não escolhe a dor com dor na escolha, vai todos os dias gastar a pensão que não tem ao café que nunca mais lhe deu férias. Vai fumando dois charutos de uma assentada para não dar ao cancro a ansiedade da demora: sou do tamanho da tua ausência.


“Devia deixar de fumar.”


Diz o diferido defunto, não se sabe ser por ser fariseu ou por ironia.


“Por que ordem de que el-rei?”


Ele não adjetivava as vinganças, especialmente as pequenas, mas o couro sabia-lhe mal.

A arte é uma derrota à partida, mas ainda tentou fazer de arquiteto da morfologia do mundo:


“Agora até as putas passam recibo, uma vergonha”


“Olha, sempre é mais uma despesa para meter na empresa”


Respondeu-lhe o adulto sensato e concretizado.

-Conforma-te.


A vida não vale a condenação, já é só Deus a rapar-me o fundo ao tacho.


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