'Ser ou não ser, eis a questão?' - interrogou-se Hamlet durante o terceiro ato da peça. Mas não é apenas o príncipe da Dinamarca que se debate sobre os mistérios da essência do ser humano, daquilo que está dentro de cada um de nós.
Creio que não é um eufemismo afirmar que todos já nos questionámos sobre o nosso propósito para existir, seja nos momentos de desespero e perdição que enfrentamos durante a nossa passagem terrena, ou durante os instantes que nos enchem de felicidade e que nos deixam de coração cheio. Em qualquer um destes casos, acabamos sempre por pensar 'O que fiz eu para merecer isto?'.
A introspeção de Hamlet, como os amantes de Shakespeare devem estar cientes, leva-o apenas pelos caminhos mais obscuros do pensamento humano. Fá-lo concluir que a única razão para aceitarmos as dificuldades da vida é o medo do desconhecido, daquilo que a morte nos traz, algo para o qual não nos dão a mínima preparação, nem mesmo uma pequena palestra ou free-trial.
Mas é o medo que nos move? Talvez esta fosse a forma como o poeta encarava a vida. Ainda assim, a sua visão não representa a de todos os homo sapiens que vagueiam por este pedaço de pedra flutuante, e cada um de nós terá a sua sentença a proferir e a sua avaliação a dar quando for o momento para o fazer.
Aqui está uma forma diferente de ver o mundo, para inspirar os mais melancólicos que pensam e respiram como Hamlet: enquanto somos devíamos existir, só quando deixarmos de ser o que somos é que nos deveríamos preocupar com o não ser. Trocado por miúdos, foquemo-nos mais no 'ser' do que no 'não-ser'. Só podemos ser uma vez, mas dispomos de toda a eternidade para não sermos aquilo que outrora fomos.
Mas, afinal, porque 'somos'? Somos, ora porque Deus o ditou, ora porque a evolução nos fez, ora porque as decisões dos nossos pais, avós e bisavós nos trouxeram por este trilho. Somos um produto de outras gerações, histórias inacabadas que temem pelo seu desenlace, incompreendidos nas nossas diferenças, mas iguais naquilo que nos une enquanto desconhecedores do futuro. Somos profundos, somos aquilo que somos e nada mais podemos ser. Estamos limitados pelo nosso desconhecimento, e por isso não estamos autorizados a aventurar-nos além do que reconhecemos enquanto nosso.
Não é, por tal, o medo que nos move, mas a curiosidade e o desejo de saber o que acontece no nosso próximo capítulo. A morte nada mais é que a promessa de uma vida que cada um de nós decide como viver. Uma verdadeira conclusão que precede à derradeira premissa que tudo define.
Melhor não poderia dizer Fernando Pessoa quando escreveu “Tudo quanto vive, vive porque muda; muda porque passa; e, porque passa, morre.”. Aceitar a nossa condição de ser enquanto prequela do não ser, mas fazendo questão de deixar a nossa marca num mundo em que somos sem temer o futuro, para que nos recordem dessa forma quando já não o formos.
Espero que estas palavras sejam lidas com escrutínio, que mudem mentalidades, transformem Hamlet's em Pessoa's e interrogatórios interiores em afirmações convictas: 'ser ou não ser?' não requer obrigatoriamente o uso de um ponto de exclamação e muito menos o uso de uma conjunção disjuntiva. Fiquemo-nos apenas pelo 'e' e pelo simples ponto final, adequado para a conclusão de uma narrativa: 'ser e não ser.'
i* Pessoa, F. Livro do Desassossego, por Bernardo Soares. Vol. II. Mem Martins: Europa-América, 1986.
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