O silêncio das gavetas
- Sara Schurmann
- Apr 29
- 5 min read
Acredito piamente que somos todos feitos de gavetas organizadas em cômodas. Afinal de contas, onde guardaríamos as nossas memórias e emoções?
Pensem nestas gavetas e cómodas como um grande arquivo organizado por secções, temas, cores, anos, meses… Eu, por exemplo, tenho uma cómoda onde nas suas gavetas guardo aquilo que me aquece a alma: numa gaveta, o cachecol de abraços da minha melhor amiga, noutra gaveta, luvas que já não me servem tricotadas de beijos na face da minha mãe antes de me deixar no infantário e noutra ainda, uma camisola de lã forrada a “gosto de ti”s trocados aos longos dos anos. Noutra cómoda, guardo o que me traz frescura e leveza: numa gaveta, aquela concha pintada de risos e de pôr do sol, noutra, lenços de cabelo cheios de salpicos de gargalhadas descontroladas entre amigos numa esplanada e naquela guardo uma saia bordada com as primeiras flores de primavera a desabrocharem naquelas calmas tardes de meados de abril quando o Sol passa a ser mais permanente e começa-nos já a beijar as faces do rosto.
Todas estas gavetas têm fragmentos de personalidade no seu conteúdo. Têm vida. Têm um bocadinho de mim. Volta e não volta, assim quando me apetece ser nostálgica, abro uma e lá vai ela: mal abro só uma esteirinha começa a libertar o seu sentimento, o seu ritmo melódico, uma das milhares de milhentas canções que correm no meu ser e soltam-se borboletas tingidas de sentimentos puros a refrescar uma sensação aconchegante no peito. E, assim, enche-se a sala rios de risinhos, de conversas arrastadas, de sessões de dança quando se achava que ninguém nos está a ver, de murmúrios doces carregados de nada…
Todas estas cómodas e gavetas se encontram em exibição em mim. Ora, não fôssemos nós fruto de experiências, sentimentos e lembranças. Portanto, quem me conhece é porque já viu muito desta grande exposição. Seja porque já me viu a abrir gavetas, seja por fazer parte do conteúdo de X gaveta ou, para os mais sortudos, seja porque eu já os deixei espreitar para dentro de alguma gaveta.
Mas desenganem-se se acham que isto tudo se trata de uma exposição pitoresca. Por entre as lindas e coloridas cómodas, existem outras não tão condizentes com a imagem se é que me entendem.
É que há gavetas que já não abro há anos. São aquelas ali que tento esconder no canto, aquelas nas cómodas de madeira cheias de mofo e a ranger. Não as abro, não porque me esqueça delas, mas porque sei demasiado bem o que lá está. Troféus de segundo lugar, um espelho partido, poemas nunca lidos pelos destinatários, palavras nunca ditas, pulseiras da amizade desfeitas, cartas de amor rasgadas, a carta do meu avô nunca lida, um metrónomo avariado que mais parece uma bomba em contagem decrescente...
Mas, contrariamente às outras, quando as abro, o espaço fica embebido em silêncio. Nada de festança, nada de rodopios, nada de música, nada de vibrante, nada de paz (antes tormenta), apenas e só silêncio. E o silêncio barulhento destas gavetas não é só o mero silêncio da sala, é mais denso e pesado. É o som abafado das palavras que não dissemos, das memórias que resistem mesmo sem serem tocadas, prontas a assombrar cada dia, hora, minuto, segundo daqueles momentos a sós. São vozes silenciosas e carregadas de remorsos, tristezas, vergonhas e até raivas imersas. Cada vez que passo por aquelas cómodas naquele canto, sinto um leve estremecer. É como se as gavetas quisessem falar, mas respeitassem a minha escolha de não ouvir.
Não é por isso que me deixam em paz. É nos supostos momentos de tranquilidade, só entre mim e eu, que as gavetas começam a esgoelar-se em silêncio. Deitada na cama, começo a ouvir os suplícios e o pesar. Choros mudos carregados de “Abre-me”, “não te esqueceste do que fizeste no dia…”, “Lembras-te da…, sim, essa mesma, a que te fez passar por…”, “esqueceste-te de mim?” Infelizmente não, não esqueci, é só que o pranto embatucado das gavetas torna-se em lágrimas gritantes minhas, martírios calados viram pedidos de piedade na minha consciência, e assim lá estou eu, a meter o dedo na ferida que teima em não sarar e a abrir uma perra gaveta de madeira sem cor e empoeirada, já inchada da humidade.
“Mas então porque ainda tens estas cómodas?”, “Porque puro e simplesmente não despejas as suas gavetas?” Pelo mesmo motivo de manter as “boas” cómodas e gavetas: Guardamos as coisas com o propósito de voltar a sentir a memória e sensações que lhes estão associadas, o problema é que há umas que não requerem vontade de as reviver, mas sim coragem. Além disso, não interessa quanta as vezes as tento abandonar, elas voltam sempre como um espectro: silenciosas, muitas vezes invisíveis, mas sempre a relembrar-me de que estão lá! Por muito que as negue, por muito que fuja, por muito que as esconda, por muito que me faça de cega e muda, elas ali estão: naquele canto cheio de pó, pouco ensolarado com paredes comidas de bolor. É que eu já mudei de casa mil vezes, e nessas mil vezes deixei-as sempre na casa antiga, abandonei-as (tentei). Então como raio, sempre que chegava a casa nova e começava a desempacotar as minhas lindas cómodas e a montar as gavetas, lá estavam elas? Essas feias e velhas, cheias de nada e de tudo, silentes mas berrantes, esquecidas ou lembradas, aparentemente as mais leves mas ainda assim as mais pesadas?
O que fazer então com estas cómodas, e sobretudo com as gavetas de interior sombrio e melancólico? Há dois caminhos: ou aceitamos a mobília triste ou aprendemos a restaurá-la. A verdade é que, com o passar do tempo e ousadia, se formos abrindo essas gavetas silenciosamente barulhentas com alguma regularidade, vamos ganhando uma nova perspetiva sobre o seu conteúdo: apercebemo-nos que o que lá está não é assim tão penoso como noutros tempos fora, ou seja, aquilo outrora lutuoso e penumbroso, com os certos tímidos raios de sol, ganha outra tonalidade, menos escura, menos funesta, menos angustiante, mais prometedora. Assim, a cada vez que se abre, remenda-se uma racha e um ego ferido; limam-se arestas e rancores; limpa-se as manchas de pó, bafio e mágoa; noutra vez, mudam-se os puxadores e as conceções e, o toque final, dá-se uma nova pintura em diversificados tons de esperança e cura.
Mas não se iludam. Não importa quantas restaurações façam, aquele canto permanecerá sempre com mobílias forradas a lamentações e mofo. Não importa quantas gavetas esvaziem e pintem, estarão lá outras carregadas de novos medos, inseguranças e tormentas.
Isto é a vida, eu acho. É tentar sempre melhorar e aperfeiçoar o nosso interior, por muito que as gavetas mudas teimem em gritar. E crescer talvez seja isso também: aprender a conviver com móveis cheios por dentro. E, de vez em quando, abrir uma gaveta, mesmo a medo, e encarar o que lá deixámos. É que há silêncios que só se quebram com paciência e bravura.
Comments