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Ode à menina adolescente

Inês Brazão

Um dia acordei. Um dia que, à partida, se parecia com tantos outros. Um dia acordei e olhei-me ao espelho. À minha frente não se apresentava, ao contrário de todas as outras vezes, o meu rosto habitual, aquele que instantaneamente reconhecia. Em vez disso, pensei ter recuado no tempo, ao ver naquela superfície refletora uma versão mais jovial de mim. Olhei incrédula para a imagem que diante de mim se encontrava: exatamente as mesmas feições, mas menos marcadas pela passagem do tempo. Era eu, a mesma eu, com 13 anos.


O primeiro instinto foi tocar desesperadamente na minha própria cara. Verificar se, de facto, o que estava refletido tinha uma materialização na minha fisionomia. Levei as mãos à testa, tentando detetar as cordilheiras de erupções que me costumavam atormentar. Quanto mais percorria a minha pele em busca das montanhas e vales que nela costumavam existir, mais me afligia quando tudo o que encontrava era uma vasta e suave planície. Olhei nos olhos daquela criatura. Quem também pudesse contemplar aquela imagem não repararia de imediato nas regiões escurecidas debaixo dos meus olhos. Antes, seria presenteado com um brilho inofuscável irradiado pelas duas órbitas, que nem duas lanternas. O cabelo, apesar de manter o mesmo tom, havia alterado o seu comprimento. No espelho, estava substancialmente mais comprido, cobrindo parte da face daquela miragem. Eu sabia que na realidade atual, no eu atual, ele só ia até aos ombros.


Mais calma, decidi afastar-me do alcance do espelho, dando um passo ao lado. Depois, voltei ao sítio onde me encontrava inicialmente, mantendo o contacto com a superfície refletora. A figura voltou também. Repeti o processo mais uma, duas, três vezes. E de todas as vezes que me olhava, olhava para o outro eu. Saí daquela divisão. Fui procurar um espelho mais pequeno, que tinha guardado na mesa de cabeceira. Ao retirá-lo, esperava ansiosamente pela comprovação de que o primeiro espelho sofria de um qualquer problema técnico, para o qual eu não tinha explicação. Olhei, a medo, e confirmou-se: a reflexão mostrava uma adolescente. Confusa, e com o coração a mil, parti em busca de todos os espelhos que me lembrava possuir. Sem exceção, em cada um deles o resultado foi o mesmo. Desesperei. Dei voltas à casa. Toquei vezes e vezes no meu rosto e cabelo. O que as mãos sentiam não coincidia com o que os olhos viam - as mãos tocavam numa adulta de 23 anos e os olhos viam uma adolescente de 13.


A dada altura, olhei para o relógio, e apercebi-me que, com toda aquela correria e aflição, estava a atrasar-me para sair de casa. Vesti-me em frente ao espelho. Em pé, enquanto decidia se devia apertar ou deixar aberto mais um botão da camisa, refleti sobre a imagem bizarra que se formara diante de mim: a minha cara de puberdade no restante corpo adulto. Contemplei o ensemble que tinha escolhido. Além da camisa branca, vestia uma saia preta. Parei uns segundos para examinar as minhas pernas, e lembrei-me que quando tinha 13 anos acreditava que pernas não serviam para mais do que andar, correr ou saltar. Matutei sobre o momento em que esse pensamento foi substituído por outro, que consistia na análise obsessiva não da função, mas do aspeto daquele membro. Não o consegui descobrir. Acho que foi algo que se foi formando progressivamente na minha consciência, como um empilhar de tijolos na construção de um edifício.


Já no autocarro a caminho das aulas sentei-me num dos bancos do fundo, num lugar junto à janela. Conseguia ver-me através do vidro, e, mais uma vez, o reflexo não era o habitual. A dada altura do percurso, dei-me conta de que um sujeito, que não conhecia de parte alguma, olhava fixamente para mim. Desviei o olhar, e contemplei a vista da minha janela. Encarei o sujeito novamente. Este permanecia imóvel, com o olhar vidrado. Senti um desconforto percorrer-me o corpo, e uma questão inquietou-me: qual dos dois eus estaria ele a fitar? Aquele homem cravava os seus olhos de forma ininterrupta, invasiva, incómoda, sobre uma jovem no início da adolescência ou sobre uma jovem no início da idade adulta? Qualquer um dos cenários causava-me um aperto no peito. Agarrei-me à mala que trazia no colo, de tal modo que os nós dos meus dedos ficaram salientes. Receava que aquele simples ato de olhar escalasse para algo mais dolorosamente marcante. Algumas paragens depois, naquilo que me pareceu uma eternidade, o homem saiu. Até aí, sentia que carregava um saco cheio de pedregulhos às costas. No momento em que ele abandonou, permiti-me finalmente voltar a respirar normalmente.


Na faculdade tive a confirmação de que, de facto, para as restantes pessoas tudo estava como habitualmente, quanto à minha aparência exterior. Toda a gente com quem interagia tinha reações costumeiras, nada fugia ao exemplo paradigmático de um dia como outro qualquer. Exceto para mim. Enquanto estava nas aulas, imaginava vezes sem conta o cenário em que o meu eu de 13 anos tomava o lugar do meu eu atual, naquela sala de aula, com aquelas pessoas, a aprender aquelas coisas. Não conseguia evitar perguntar-me o que pensaria sobre o caminho que tomara, sobre as escolhas que fizera. Tinha agora a perceção de que, há 10 anos, não tinha a mais ínfima ideia das possibilidades efetivas que se poderiam revelar. Na altura trabalhava no domínio do abstrato, na consideração momentânea de que no futuro aquela coisa me iria trazer a máxima felicidade. Qualquer sonho parecia concretizável, estando apenas à distância da vontade. O mundo estendia-se aos meus pés como uma autoestrada. No presente, aproximava-se a passos largos o momento de entrada na verdadeira vivência adulta. Era intimidada pelo peso das decisões cada vez mais definitivas, e pelas implicações futuras das mesmas. À conta disso, vinha-me constantemente à lembrança a analogia da figueira da Sylvia Plath:


“Eu via a minha vida a ramificar-se à minha frente como a figueira verde daquele conto. Da ponta de cada galho, como um enorme figo púrpura, um futuro maravilhoso acenava e cintilava. Um desses figos era um lar feliz com marido e filhos, outro era uma poeta famosa, outro, uma professora brilhante, outro era feito de viagens à Europa, África e América do Sul, outro era Constantino e Sócrates e Átila e um monte de amantes com nomes estranhos e profissões excêntricas, outro era uma campeã olímpica de remo, e acima desses figos havia muitos outros que eu não conseguia ver. Vi-me sentada debaixo da árvore, morrendo de fome, simplesmente porque não conseguia decidir com que figo eu ficaria. Eu queria todos, mas escolher um significava perder tudo o resto, e enquanto eu ficava ali sentada, incapaz de tomar uma decisão, os figos começaram a encolher e ficar pretos e, um por um, desabaram no chão aos meus pés.”

Naquela noite, enquanto comia sozinha o meu jantar aquecido, pensava na minha avó, que utilizava os alimentos como veículos do seu amor. Fonte inesgotável de conforto, acreditava que, se desejasse muito profundamente, o prato que comia se poderia converter magicamente num dos que ela me preparava. Pensava também na minha mãe, na mão dela que jamais deixou de estar estendida para mim, e em como o amor dela foi transformador, tanto para a adolescente do espelho, como para a jovem que dava lentas garfadas na comida.


No dia seguinte acordei. Um dia que, à partida, parecia diferente de tantos outros. Corri para o espelho, esperando deparar-me com um cenário idêntico ao do dia anterior. Uma onda de desilusão instalou-se assim que me apercebi de que na imagem refletida já não se encontrava a menina de 13 anos, mas antes, eu mesma, no presente. Fui invadida por uma tristeza súbita quando cheguei à constatação de que não voltaria a ser ela, e, ainda pior, que nunca pude dizer-lhe adeus.

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