Quando o laço cai
- Mariana Carrilho
- Oct 21
- 2 min read
Nem sempre posso fazê-lo. Mas quando tenho a possibilidade de desamarrar o laço e vê-lo lentamente a tornar-se num só fio contínuo, enquanto anseio rasgar o embrulho de forma a preservar, ainda que mal e porcamente, a sua integridade, os meus olhos viram estrelas, mesmo aquelas que já morreram, mas que para nós continuam a brilhar. O que vai ser desta vez? Os meus pais mantêm a cara vazia de sempre, provavelmente para eu não descobrir o que se esconde por detrás dos quilos de papel que vão diretamente para o lixo (ou, com sorte, para a reciclagem). Começa a aparecer um fio de cabelo, parece-me algo familiar. Com nuances castanhas, mas despenteado, nota-se que andou bastante tempo a abanar dentro da embalagem. Um rosto sereno sobressai, como de quem se encontra agora em paz. A roupa dela era perfeita, exatamente aquilo que eu estava à espera. Rosa, cintilante, vinda diretamente de um conto de fadas – ainda que a minha fada madrinha se tenha esquecido do dinheiro debaixo da almofada, continuo a acreditar nela. Agora que a vejo por completo, tenho de ter muito cuidado para não a estragar. Seguro-a bem perto de mim e peço baixinho que me proteja, que nos proteja, a mim e à minha família. Espero. O silêncio devolve-me apenas a respiração dos meus pais. Espero mais um pouco. Nada. Só me resta imaginar um “vai ficar tudo bem” da parte dela. Mas já ouvi essa frase antes, e sei que nem sempre é verdade. Ainda assim, ela é tudo o que sonhei. Há tanto tempo que pedia uma boneca. Agora está finalmente aqui, comigo. Mas, por mais que tente, a minha imaginação não consegue enganar os sentidos. Primeiro é o cheiro. Não é perfume doce de loja, não é o aroma plástico das bonecas das revistas. É um cheiro a terra húmida, a pó entranhado, a palha seca. Tento afastar esse detalhe, mas o toque confirma o que o nariz já sabia: a pele dela é áspera, feita de fibras e cordas que me arranham os dedos quando tento entrelaçar os meus nos dela. O meu coração aperta. Levanto os olhos à procura de uma explicação. Mas os meus pais não se movem. Continuam a olhar-me com aquele rosto gasto, cheio de rugas que parecem histórias não contadas. Histórias que eu não sei se quero ouvir. É nesse instante que compreendo, talvez isto é tudo o que resta de um mundo onde ainda se oferecem presentes. E então decido: ela é perfeita porque tem de ser. Abraço-a com mais força contra o peito e digo-lhe em segredo o nome que escolhi. Porque, se eu acreditar o suficiente, ninguém me poderá convencer de que esta não é a boneca mais linda que já existiu. E talvez, se eu acreditar ainda mais, ela me consiga devolver aquilo que o mundo insiste em tirar: a esperança de que, um dia, vai mesmo ficar tudo bem.

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