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Maria Leonor Simão

Sem título


Corro atrás do tempo. Ele foge.


Corro tanto que fico cansada. Neste jogo das apanhadas incessante e perpetuamente circular que é a vida, o tempo ganha sempre. Nunca o apanho. Ele vira-se para trás e vê-me aflita. Então abranda. Deixa-me aproximar. Tudo para depois me despistar. E perco-o de vista outra vez.





No dia a seguir meto-me no comboio rumo a casa. E assim que chego, o tempo senta-se comigo. Não há pessoas a ir e a vir, nem carros a arrancar. Não tenho medo de adormecer e perder o autocarro. Nem tenho de contar os minutos até ao intervalo. Nos primeiros momentos em casa o tempo dá-me um desconto. Há silêncio. Há calma. Há paz.


Mas, como se o tempo me quisesse mesmo atraiçoar, de repente estou outra vez no comboio, rumo a um sítio onde ele não pára. Tento esticá-lo, pedir-lhe para me deixar ficar mais tempo. Onde há conforto, e família, e tanto tanto verde. Onde o cheiro da comida se espalha docemente pela casa. Onde cantam comigo as músicas que oiço desde pequena. Onde os abraços são mais aconchegantes. Mas o tempo não deixa.


Leva-me dali para fora, como outrora me arrancou do escorrega do infantário onde aprendi que as feridas nos joelhos se curam, um pouco como as feridas do coração; como me puxou da carteira da primária onde aprendi a ler; como me levou da madrugada do meu baile de finalistas.


Leva-me dali para fora como noutros momentos acabou com as tardes de praia ao fazer o sol pôr-se, ou com as vésperas de Natal quando fazia com que soassem as doze badaladas.


O tempo traz-me para o sítio onde ele adora correr. Aqui os minutos são contados aos segundos para que tudo encaixe nos vaivéns rotineiros dos transeuntes que agora passam por mim.


Levanto o pulso esquerdo para ver as horas num gesto automático, apesar de hoje não estar com pressa. Não ter nada para fazer parece anormal, ao ponto de me pesar na consciência. Mas não penso nisso. Se o tempo insiste em correr, eu insisto em estar parada. Quero, nem que seja por um dia, que seja o tempo a correr atrás de mim.


Por isso, começo a medir o tempo não em horas, mas em lugares. Meço-o em palavras, em gestos. Meço-o em canções que me transportam para diferentes momentos. Meço-o em pessoas.


Deixo de olhar para o relógio. Tomo um café com uma amiga e só me levanto quando me dói o rosto de tanto rir. Almoço às cinco da tarde no jardim, deitando-me na relva a ouvir a minha música favorita vezes sem conta. Abraço alguém de quem gosto até sentir as pernas dormentes. Tiro fotografias mentais à flor bonita na berma do passeio, ao casal de mãos dadas que passou por mim, e à cor dourada dos pastéis de nata que acabaram de sair do forno. Recuso-me a deixar o tempo apagá-las. Só saio do metro no fim da linha, já noite caída. Faço conversa com o senhor que parece stressado para que ele tire um tempinho para pensar noutra coisa que não o tempo a esgotar-se. Leio o meu livro sem pensar na hora a que tenho de parar para ir dormir.


No dia seguinte coloco o relógio no pulso, obrigada a mergulhar na minha rotina. Ao longo do dia tenho pressa muitas vezes, mas a certa altura estou sentada a almoçar com os meus amigos e apercebo-me que não existe qualquer preocupação dentro de mim. Apercebo-me que consigo apanhar o tempo de vez em quando, em instantes particulares.


E penso: talvez nestes momentos ele pare de correr. Ou talvez seja eu a forçar-me a não correr atrás dele, porque, apercebendo-me de que ele se esvai por entre os meus dedos de cada vez que tento fechar a mão, decido que quero tornar esses momentos eternos dentro da sua inevitável efemeridade. E então, retenho-os ao máximo, guardando-os para sempre na minha memória. Guardo-os com todos os sorrisos e olhares e sons e cheiros e sentimentos que consigo absorver. Tiro fotografias e coleciono objetos que me façam mais tarde abrir gavetas de memórias. Vivo-os intensamente; para não esquecer.


Estes momentos são microcosmos em que o tempo cessa, em que “para sempre” não tem rasteira. Momentos a que posso sempre voltar, porque são perpetuados em mim. Na memória, no coração, na alma, o onde fica à escolha de cada um – só sei que os encontro algures cá dentro.


E se passo grande parte do tempo a correr, concluo que é por isso que valorizo mais os tais momentos em que estou parada. A brevidade é o que me faz querer memorizá-los. A raridade é o que os torna únicos. E eles, os mais experientes passageiros, são parte da minha felicidade. Concluo que construo o meu caminho entre a corrida e a paragem, num equilíbrio que me faz ir avançando. Concluo que não posso estar sempre a correr. Concluo que sessenta segundos podem ter dentro de si uma eternidade. E que dentro dessa eternidade eu posso estar parada.


Não corro atrás do tempo. Ele que fuja se quiser.




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