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- Poemas dos espinhos do amor - Parte I
“Quando amanhã não voltares” Senta-te ao meu lado e sorri, Prometo não te olhar nos olhos... Olha em frente e pergunta como estou, Prometo mentir na resposta. Ri devagar e fica envergonhado, Prometo ser eu a levar a conversa. Fala sobre tudo o que não importa, Prometo fingir o interesse. Conta-me aquilo que não quero saber, Prometo não perguntar mais nada. Brinca como fazíamos dantes, Prometo não sentir saudades. Irrita-me como só tu sabes, Prometo virar furacão por um segundo. Solta uma gargalhada e sorri, Prometo acreditar que foi verdadeiro. Finge que não queríamos ser sinceros, Prometo não insistir contigo. Pede desculpa mais uma vez, Prometo ignorar a minha intuição. Depois levanta-te, sorri, e desaparece... Prometo não esperar que voltes. Mas quando amanhã voltares, E eu já não me importar; Quando todos os outros forem, E eu tiver ficado apesar de tudo... Talvez nunca mais queira sentir o teu cheiro, E talvez não mais queira juntar as nossas vozes... Quando acordares e olhares em volta, E perceberes que estive sempre lá… Quando finalmente te olhar nos olhos, E tu já não quiseres desviar o olhar... Talvez eu não queira mais que voltes. Talvez nunca mais vá ter saudades. “Os espinhos da rosa” Magoaste-me como a água magoa o fogo... Devagar desfizeste o que construímos. Brincaste comigo como se um jogo fosse, E de um dia para o outro, já não rimos. Arrancaste a primeira página do livro Que pouco a pouco íamos escrevendo. Apagaste uma parte escondida de mim, Que agora sinto que não mais voltará. Dizias que as rosas têm espinhos, E que é bom picarmo-nos. Mas como poderei eu saber, Se nunca me deste um ramo?
- Faz todo o sentido
O surrealismo literário possui deveras potencial temático, dado eu poder escrever: “Hoje olhei para o céu e a Lua estava amarela, o que me indica que virou queijo ou, mais provável, esfolou a pele ao pai Sol Ámon-Rá por amor, ódio e inveja, mas se lhe pegares no cantinho e arrancares, ela esborra as pedras lunares juntos com os sete rins, cinco braços, três pianos a mais e nenhum cérebro, e quando te afogares nas suas vísceras desidratas-te que estás no deserto com as pirâmides de Gizé a mostrarem os dentes e a rirem-se da tua cara, cara com a qual lhes dás um pontapé, mas as gargalhadas não param mesmo porque nunca param, e dizem «Nós matámos demasiados dias para que não nos sejas verme» e viras mesmo verme, feito arqueólogo pelos cadáveres colossais que morrem melhor que tu vives, e passaram-se 7117 dias e ainda não encontraste o mijo dourado dos Faraós, deixaram-te pó, aquele Ozymerdas, porque nunca vais encontrar, sejamos honestos, não te enfiaram nos dentes ouro nem picaretas nem canetas nem afeto, não esperes receber nada do Nilo ou da Amazónia, e vai ver agora como ela arde, como um fogo que arde mas bem se vê, há gajos mesmo cegos mas chamam-se poetas na mesma, o teu peito não consegue respirar o ar das vacas que manjam nos olhos, orelhas e lábios dos índios e cagam Reais de carne, e atira-te à água que não é aqui que te vais afogar, e sentes o sal do rio a encher-te os pulmões até saber a bacalhau, porque estás no jantar de Natal e há oito nortenhos a olhar para ti, e depois olhar para a Estrela cadente de David que corre desde galáxia Andrómeda até à galáxia Eu Nunca Percebi Nada de Ciências o Que é uma Pena Porque Dizem que Pagam Melhor e São Mais Felizes, olham para ela, e para ti, para ela e para ti, para ela e para ti, e tu dás-lhes oito tiros com a motosserra que ficam todos vesgos e conseguem olhar para ela para ti ao mesmo tempo, e aí pedem o seu desejo; o desejo é que o David te caia em cima e te foda, mas os cornos e não o cu, e queres comer o peru e beber o binho e a cerbeja e o sangue das beias de cima, mais o bómito que há de aparecer porque tudo é bómito quando se está à mesa não é mesmo, devorar tudo até virares Ouroboros Azteca que consome o Sol que começou esta lengalenga toda não é verdade, portanto bem vistas as coisas a culpa é da vela não é, digam que é, ou fiquem mudos que tu também és surdo, mas até Sócrates sabe que a culpa é da vela que te acendeu portanto mais vale coser de volta e enfiar os bebés nos raios solares e dizer aos senhores doutores «Lamento mas Isto não está bom para existir, nunca esteve, nunca estará, não damos consentimento, nem batizamos, muito menos oramos, queimem e deitem abaixo esta Cruz.” E você pergunta-se “O que é que acabei de ler? O que é que significa?”, e eu posso-me a si agachar, estender os braços por detrás das costas e coração, colocar os lábios ao ouvido, e sussurrar: “Não digo, fode-te.”
- zona de conforto
Desde pequena que gosto de escrever e, desde então, que me dizem que sou boa nisso, mas mesmo assim, faço-o poucas vezes. Normalmente, faço-o só para mim, quase como se fosse terapia. Acho que não o faço tantas vezes como gostava porque sinto que escrever torna as coisas reais. Se escrevi algo que estou a sentir, então isso torna-se real e definitivo, não posso negá-lo mais. Não posso fingir que não dói ou que não me deixa triste. É por isso que para mim, escrever é das coisas mais assustadoras que há. Mas, é também necessário. Precisamos de nos fazer ouvir, porque quem sabe, pode ser que esteja lá alguém para o fazer. A verdade é que procuramos nas palavras dos outros respostas, uma explicação, um amigo, preencher um vazio que nem sabemos bem o que é. E, porque faz bem, talvez à alma ou a algo do género. Talvez seja por isso que decidi arriscar, sair da minha zona de conforto, porque se escrever já é assustador, então mostrar às pessoas aquilo que nos vai na cabeça é ainda mais. Há sempre tantas dúvidas - Será que está bom o suficiente? Será que as pessoas vão gostar? Será que vão sequer querer saber? Mas, sair da zona de conforto é necessário. Assustador, mas necessário (tal como escrever). Preciso de parar de dizer que quero escrever e começar a fazê-lo, pegar numa caneta e ver onde me leva, tal como estou a fazer agora. A escrita sempre foi algo que me fez sentir vulnerável, por isso quero aproveitar esta oportunidade e encontrar um sítio onde possa ser vulnerável sem ter tanto medo (porque ser vulnerável é, também, por vezes, necessário) e aproveitar esse medo para inspiração.
- Flytrap
starchild, are you listening? they can see me, they are coming, to in their forked leaves trap me. there's three, three of us, closing in below the scorching sun, massively grey and bloodied, hungry for my flesh and for the wretched son. my beloved, where do you hide ? drawing so near, I'm sorry i lied. pulling me close, wide-eyed, deep into the otherside. starchild, are you listening ? I died that day. below the star and below your heart, so far apart. three, magick number three, the kiss of death so close to my lungs, at the tender age of eighteen, the first of us lost in tongues. sunk deep into the maws of something great, larger than life itself, their sharp teeth filled with hate, forcing me to watch as you lose yourself. starchild, are you listening? as long as there is death, there will be hope. until one of us draws our last breath.
- Entrevista a Pedro Berjano de Oliveira
NOTA DO AUTOR: “És Nova no meu coração, és Direito até ao fim”. Isto nos diz a Juristuna, tuna da nossa faculdade, na música “Tens”, sempre que temos a felicidade de a ouvir. E claro, isto é tudo muito bonito, mas deixa em aberto uma questão: E depois do fim? O que fazemos depois de “gritar alegremente aos sete ventos Direito venci”? , como nos diz uma outra canção interpretada por este grupo. Nesta coletânea de artigos, os nossos leitores vão encontrar uma de três entrevistas a ex-alunos de Direito. A primeira entrevista é ao Árbitro do Tribunal Arbitral do Desporto, Pedro Berjano, que nos conta um pouco da área tão pouco explorada que é o Direito do Desporto. Agora, para explicar no que consiste este projeto, passo a explicar o porquê de o realizar. Sempre fui uma criança muito ansiosa, sempre focada no presente, mas com muito medo do futuro e, portanto, sempre a tentar descobrir o que vinha depois, para que não me apanhasse de surpresa. Assim, não é de estranhar se dissesse que antes de ingressar nesta aventura que é a licenciatura, já sabia exatamente que disciplinas iria ter este semestre, como me iria deslocar para a faculdade, que material escolar precisava, como era o campus e a vida académica. Como tal, redigi este artigo não só para os meus colegas finalistas, que irão ingressar no mercado de trabalho, e que querem saber o que lhes espera, mas também para satisfazer a minha criança interior e todos os leitores que tiveram uma parecida, sempre a dizer-lhes “Isto é bom, mas quero mais. Isto é giro, mas e a seguir?”. Antes de começar efetivamente o trabalho jornalístico, queria agradecer a todos os entrevistados, por me terem recebido no seu local de trabalho e dedicado o seu tempo para nos dar a conhecer a sua vida profissional. Queria também agradecer ao Professor Luís Duarte de Almeida, pela oportunidade de fazer um trabalho como este, e por não deixar morrer a criatividade. Por fim, queria agradecer ao Jur.nal, jornal da NOVA School of Law, por me dar a plataforma necessária para que este artigo possa efetivamente ajudar alguém, e não ser apenas um projeto pessoal. ENTREVISTA Pedro Berjano de Oliveira, informações : - Diretor de Serviços da Confederação do Desporto de Portugal - Árbitro no Tribunal Arbitral do Desporto - Professor de Direito do Desporto - Advogado - Treinador Francisco de Jesus (FJ): Licenciou-se em Direito pela Universidade Autónoma de Lisboa. Como foi o curso? Consegue destacar algumas disciplinas que o marcaram? Pedro Berjano (PB): A minha família não tinha condições para eu estudar, então tive de recorrer a bolsas e, portanto, tinha duas: uma da própria universidade e uma do concelho de Oeiras, onde vivia. E, portanto, isso acabou por marcar um bocadinho toda a experiência porque, se calhar, tornou as coisas um bocadinho diferentes do que seriam se não fosse essa a circunstância. Eu sempre valorizei muito as coisas fora da própria universidade, nunca fui um aluno de propriamente estudar muito. Quando digo as coisas fora da faculdade é, essencialmente, a parte desportiva, que sempre valorizei muito. Nunca gostei muito das borgas e por aí fora, e, portanto, a minha vida era muito relacionada com a universidade e com aquilo que eu vivia fora desta em termos desportivos. A universidade era sagrada para mim. Não faltava a uma aula, estava sempre a absorver o máximo possível, escrevia tudo e mais alguma coisa daquilo que era dito pelos professores, tentava aplicar-me verdadeiramente e acho que isso acabou por fazer alguma diferença. Exatamente por isto que estou a dizer, o que me acabou por marcar mais foram aquelas cadeiras onde tinha professores que gostavam de discutir e gostavam de conversar sobre as coisas, e não aqueles que, por muito conhecidos que sejam, chegavam e abriam um código e, “Vamos ao Artigo 124.º, e aquilo que o artigo diz é isto, isto e isto” e pouco mais. Nunca achei tão fascinante. Acabou por ser muito a experiência muita das vezes ligada não só ao que era a matéria, mas também ao que era o professor. Isto para dizer que acabei por ter boas notas a algumas cadeiras, como Direitos Reais, Obrigações, Direito da Família, Penal, que não eram à partida cadeiras fáceis, e que acabaram por me correr bem porque tive professores que me puxavam mais. FJ: A sua área sempre foi Direito do Desporto. Porquê esta área? Conte-nos um pouco sobre como é ser jurista neste ramo. PB: Eu acho que, hoje em dia, nós temos uma franja muito grande de pessoas que vêm para o Direito pelos motivos errados. Acho que devemos começar por aquilo que temos dentro de nós, aquilo que verdadeiramente é o nosso drive , aquilo que gostamos, e depois ir à procura daquilo que nos poderá fazer felizes profissionalmente, e eu acho que há muitas pessoas que começam ao contrário, porque “se for para ali tenho a expectativa de ganhar muito dinheiro”, de ter uma carreira dentro de certo tipo de padrões, e, portanto, na minha opinião, deveria ser completamente ao contrário. Para mim, aquilo que fazia sentido era eu estar ligado à área que eu gosto, ao Desporto, e tentar compatibilizá-la com a outra área que eu também gostava, que era o Direito. O meu caminho foi descoberto de dentro para fora, independentemente da altura, e estamos a falar do início dos anos 90, não se falava praticamente desta área. Não obstante, para mim fazia sentido, porque era o meu sentimento que me levava a isto mais do que uma decisão racional. Porquê o Direito do Desporto? Na altura tinha ainda esse fascínio extra por ser muito difícil, por não haver praticamente nada, e, portanto, ainda mais interessante, na minha opinião, era eu poder trabalhar e tentar desbravar um caminho, por muito difícil que fosse, que não era um caminho trilhado. O Direito do Desporto acabou por, lá está, me permitir começar a desatar nós e começar a perceber coisas que eu vivia no dia-a-dia desportivo, fosse como dirigente desportivo, fosse como atleta, fosse como treinador, e as coisas começaram a fazer sentido. O que é que faz um jurista ligado ao Direito do Desporto? Os campos são muitos de atuação. Podes ter uma área relacionada com, imagine, contratos profissionais da área do desporto, sejam treinadores, sejam jogadores; patrocínios e direitos de imagem associados; a nível das federações, pode falar de processos de utilidade pública desportiva, de processos de utilidade pública simples, da própria estrutura e organização dentro da federação, a nível de estatutos, a nível de regulamentos internos, a regulamentos disciplinares; pode lidar com ginásios, com quais são as obrigações legais de um ginásio, que tipo de situações é que têm de ser cumpridas em termos de que tipo de formação têm que ter as pessoas que estão a trabalhar no ginásio, que tipos de serviços é que podem ser oferecidos e por quem, quais são os limites a esses serviços, portanto é uma área muito prática, não é aquela coisa pesada e muito teórica, é uma área que sente que depois na prática lhe pode ajudar a resolver problemas das pessoas no dia-a-dia. FJ: Uma das suas principais funções neste momento é a de Árbitro no Tribunal Arbitral do Desporto. Quando é que assumiu este desafio, e em que é que ele consiste? Que tipos de casos lidam com? PB: O Tribunal Arbitral do Desporto tem, penso eu, 40 árbitros. Eu tenho a felicidade de estar lá desde que se constituiu, e estamos no segundo mandato, creio que começou em 2016. O TAD, no fundo, é um tribunal que só trata de casos relacionados com o desporto. Aquilo que nós fazemos são sentenças iguais às de qualquer outro tribunal, qualquer outro juiz, e, portanto, aparece-nos tudo aquilo que chega ao limite dentro de uma federação. Dentro de uma federação, existem órgãos próprios, como o Conselho de Disciplina, o Conselho de Justiça, por aí fora e, portanto, tudo aquilo que chegou ao seu limite salta, digamos assim, para o TAD. Chegam-nos desde, vamos imaginar, um atleta que não se conforma porque acha que é injusta a aplicação de determinada suspensão, porque foi expulso num jogo e portanto quer recorrer, recorre para nós; desde distúrbios de uma claque durante um jogo e, por isso, aquela equipa passa a ter jogos à porta fechada, recorre para nós para perceber se faz ou não sentido a aplicação daquela sanção; desde salários em atraso de jogadores, funcionários, situações dessas; portanto, lá está, mais uma vez são situações concretas do dia-a-dia, aí numa perspetiva diferente, que é a perspetiva de que nós podemos decidir fazer uma sentença sobre aqueles casos em concreto. FJ: Ou seja, no fundo acabam por lidar quase que com todos os “ramos” do Direito aplicados à área do Desporto? PB: Sim, ou seja, ainda que o tribunal seja específico e concreto apenas para o Desporto, aquilo que acaba por acontecer é que nos aparece de tudo, e isso é uma característica do Direito do Desporto: é muito transversal. Tem questões relacionadas com Direito do Trabalho, imenso Direito Administrativo, com normas constitucionais, com Direito Europeu, porque atualmente os atletas tanto podem ser portugueses como de outra nacionalidade qualquer, e isso traz-nos também jurisdições internacionais para aquilo que são as nossas tomadas de decisão no dia-a-dia. O Direito do Desporto, assim, acaba por abranger um bocado de tudo. É muito interessante por isso. FJ: Desde 2004, é regente da cadeira de Direito do Desporto, na UAL. Sente-se, no fundo, “o treinador” destes alunos? PB : O facto de eu, na altura, ter começado nesta área de Direito do Desporto, leva a que, na brincadeira, haja várias pessoas que me identificam como um dos “pais” desta área em Portugal, não por ser especialmente dotado, mas, porque fui um dos primeiros, e acaba por acontecer. Eu acho que faz todo o sentido essa analogia com o treinador, porque aquilo que nós queremos, de facto, e pelo menos na minha visão de como as aulas devem ser dadas, é que os alunos se sintam parte de algo e se sintam envolvidos, que tenham interesse em procurar por eles outros caminhos. O que fazemos é abrir horizontes, e eu acredito muito mais nisso, e na participação, e no sentido de equipa, do que chegar ali e pôr-me a ler algo... nunca acreditei nesse tipo de ensino. E, como tal, para mim faz todo o sentido que às vezes os alunos possam sair das minhas aulas até com mais perguntas do que respostas, para irem depois à procura dessas respostas, para depois voltarmos a discutir já com a resposta encontrada pela cabeça de cada um, acho que é muito mais divertido assim. Há sempre a tendência de procurar uma verdade absoluta, mas as coisas nem sempre são pretas ou brancas, muitas vezes há uma sombra intermédia, uma sombra cinzenta, e é isso o mais fascinante no Direito. Queria só deixar uma nota de rodapé a esta pergunta. Hoje em dia estou ligado à Universidade Autónoma, apenas em pós-graduações. Depois, estou também ligado à Universidade Lusófona, e dou também, neste momento, no Porto, Direito do Fitness. FJ: Uma outra vertente do Pedro é o seu cargo como Diretor de Serviços da Confederação do Desporto de Portugal. Quais são as competências da CDP? De que trata? PB: A CDP é, numa linguagem mais fácil, como se fosse um sindicato das federações, onde todas as federações, independentemente de serem olímpicas ou não, encontram uma casa comum. É como se nós fossemos o irmão gémeo do Comité Olímpico, mas, enquanto eles são apenas para as federações olímpicas, nós somos para todas. A Confederação trata de tudo o que é comum às várias confederações, porque há problemas que são transversais independentemente de estarmos a falar de federações grandes como a Federação de Futebol, ou de federações pequenas, como a da petanca ou a do xadrez. Por exemplo, estejamos a falar de um novo Decreto-lei, que abrange os seguros de Acidentes Pessoais/Seguros Desportivos, tanto têm de fazer seguros desportivos os atletas de uma modalidade grande, como da pequena, e o que é preciso encontrarmos é soluções para quando aquela pessoa se lesiona, haver mínimos independentemente daquela pessoa pertencer à federação A, B ou C, nomeadamente em termos do que é coberto, desse tipo de valências. Assim, há aqui uma dimensão política e legislativa, de formação a agentes desportivos, como treinadores, por exemplo, e, portanto, há um trabalho transversal da confederação não só em termos políticos, mas também no dia-a-dia das pessoas. Temos, por exemplo, a Gala do Desporto, que é conhecida como os “Óscares” do Desporto nacional. Há 25 anos que a CDP faz essa festa para ser eleito o melhor treinador do ano, o melhor atleta masculino e feminino do ano, a melhor equipa, entre outros. Para além disso, todos os campeões do mundo e da Europa na última época também são galardoados nesta gala e, portanto, é uma gala de grande prestígio, onde se junta o desporto português para homenagear quem, naquele ano, se destacou em termos de resultados. FJ: Ainda bem que referiu da Gala do Desporto, assunto ao qual iria chegar agora. No site da CDP, no âmbito da sua nomeação para o prémio de Melhor Treinador, e desde já os meus parabéns, pode ler-se que 3 palavras que o descrevem são: o Trabalho, a Dedicação e a Determinação. Assim sendo, queria saber se considera estas características fundamentais para todos os juristas. PB: Nós há pouco falávamos da importância que tem conhecermos mais mundo do que só o mundo da Academia, da Faculdade, e eu acho que quanto mais conhecermos por força de outro tipo de atividades melhor preparados nós estamos. Essas características são muito determinantes, quer na Academia, quer fora. Eu tenho alguns lemas na minha vida, um deles é “Que nunca seja por falta de trabalho e de empenho”. E isto aplica-se quer eu esteja a falar como treinador, como estudante, como professor, como jurista, o que seja. Na nossa vida, e acredito plenamente nisto, há determinado tipo de valores que são totalmente transferíveis nas nossas várias vertentes, até mesmo nas pessoais, e, portanto, fazem todo o sentido; sim, claramente esses são valores que fazem com que bons juristas possam ser melhores, porque isso leva a uma procura constante por tentar ser melhor, por tentar dar o seu melhor. Às vezes até pode não se conseguir os resultados, mas lá está, sabemos que o empenho estava lá e, por isso, podemos ficar descansados no final do dia. FJ: O desporto não está só presente na sua vida de mãos dadas com o Direito. Falo do seu cargo como treinador de uma equipa de Corfebol. Ora, eu já conheço a modalidade, mas queria que contasse aos nossos leitores o que é, e que nos falasse sobre o nosso clube. PB: O Corfebol é a única modalidade obrigatoriamente mista que existe no mundo, são 4 rapazes e 4 raparigas numa equipa. É um desporto obrigatoriamente de cooperação, ou seja, uma pessoa não pode driblar, não pode fintar toda a gente, depende sempre da colaboração com os outros. Só por estas características, já é um desporto que tem tudo a ver com a nossa sociedade, e também por isso ser um desporto muito bem recebido no seio escolar, porque facilita uma série de questões aos professores. Os rapazes são obrigados a jogar com as raparigas e não jogam sozinhos, o que pode acontecer com outras modalidades, e depois esta dinâmica de colaboração também tem outras vertentes que são muito ricas. Por exemplo, uma pessoa não pode ser espetacular a marcar e a fazer cestos, e depois não querer saber da defesa. Não, porque mediante aquele que seja o resultado, de 2 em 2 pontos quem está a atacar passa a defender, e vice-versa. E, portanto, são tantas vertentes onde o Corfebol espelha o que é a nossa sociedade, e tem muitas ferramentas educacionais de teamwork que são muito evidentes. Portugal tem, tradicionalmente, participado em campeonatos da Europa e campeonatos do mundo. Tradicionalmente, é também uma seleção muito competitiva, e temos seleção sub-15, sub-17, sub-19, sub-21 e sénior. É um desporto que tem demorado um bocadinho a ser conhecido, talvez até mais do que merecia, apesar de eu ser suspeito, e tem sido uma aventura muito interessante estar ligado a essa modalidade. O clube é o Clube Corfebol de Oeiras, um gigante adormecido durante muitos anos, um dos maiores de Portugal, mas acabou por passar por uma fase complicada e nos últimos anos, felizmente, tem conseguido se reativar: voltou ao seu lugar, um dos maiores de Portugal. E, principalmente, tem uma dinâmica muito intergeracional, temos pais que jogam com filhos, temos miúdos que começaram com cinco, seis anos e que agora têm quinze e dezasseis em equipas mais competitivas. Temos uma equipa em cada divisão (são 3), a equipa da primeira divisão está a lutar por títulos, e, portanto, tem sido uma aventura muito interessante, e tem tudo a ver com aquilo que nós estamos a falar. Tem tudo a ver com aquilo que se faz depois fora de campo, nas vidas profissionais e pessoais de cada um, tudo isto está interligado, os valores e os princípios são os mesmos. FJ: Queria agradecer-lhe imenso por esta conversa. Acho que foi extremamente esclarecedor, tanto para mim, como para os nossos leitores. Para terminar, um conselho de treinador para os nossos leitores. Como fazem para ganhar o jogo da licenciatura? PB: Acho que é um bocadinho o que já referi. Passa pelas pessoas olharem para dentro de si, acho que isso ajuda, porque há tanta influência exterior, direta e indireta, que muitas vezes me parece que há pessoas que acabam por seguir um caminho que não é bem o seu. Olhar para dentro, descobrir o seu caminho e, a partir daí é ir atrás dele com o tal empenho, a tal determinação e vontade, e acredito sinceramente que há sempre espaço para quem tenha esta visão. Hoje em dia, está tudo vocacionado nos resultados, na faculdade X, na nota Y, isso é importante, mas claramente não é tudo, e acredito que, no futuro, vai deixar cada vez mais de ser a única coisa que importa. É perfeitamente possível conciliar uma pessoa que tem vida académica, mas também pessoal, desportiva, com os amigos, e isso está um pouco esquecido hoje em dia. E esse tipo de atividades, ainda por cima em Direito, que é um curso extremamente competitivo, e que parece que as pessoas têm que pôr tudo na prateleira e tornarem-se quase robóticos para terem notas melhores do que as outras pessoas, serem melhores que as outras pessoas, e é possível fazer caminhos diferentes. Se há uma coisa boa que eu tenho na minha vida é, se calhar, provar isso. Eu não tinha dinheiro para estudar, não era um aluno fantástico, e depois comecei a ser, lá está, porque comecei a descobrir do que gostava, e, portanto, acredito verdadeiramente que há espaço para isso e um caminho para isso, cada um tem é que descobrir o seu, e dar tudo para lá chegar.
- Estudante em desespero
Enquanto escrevo isto, tenho um monte de coisas por fazer. Tenho documentos para analisar, tenho páginas para ler, sublinhar, estudar e decorar; tenho atividades às quais me quero dedicar, porque realmente as adoro; tenho chamadas telefónicas por fazer só para verificar que está tudo bem; tenho o jantar por fazer; tenho um almoço amanhã e ainda um convívio ao qual gostava de ir para desanuviar. Mas amanhã tenho teste. Um teste importante para o qual não me sinto, de todo, preparado. Tenho de fazer uma noitada? Talvez seja necessária para salvar a nota, mas sei que se o fizer não vou estar com a cabeça fresca o suficiente para dar o meu máximo amanhã…Penso nas avaliações depois deste teste. Penso no que terei de organizar, preparar e conciliar. Penso nos dramas entre amigos. Penso na vida em geral… Tento. Tento dar o meu melhor. Mesmo quando sinto que não serve de nada porque nunca chegarei onde quero. Tento fazer tudo. Tento dar atenção aos meus amigos. Tento não discutir, insultar ou passar-me com certas pessoas. Tento respirar… À beira da ravina. Constantemente à beira do choro. Lágrimas que não são exteriorizadas, mas que estão lá. Lágrimas que querem sair, mas que não se dão a esse luxo. Lágrimas que acordam comigo. Lágrimas que me vão rebentar. Saúde mental, onde estás? É de ti que eu preciso - estou consciente disso - mas não posso parar. A tempestade atual não se compara à que se avizinha. E agora? Vale a pena sequer continuar a tentar? Tu que devias estar sempre em primeiro lugar, onde te encontras? É de ti que eu preciso urgentemente. Quero a tua mão entrelaçada na minha. Quero viver sempre contigo a meu lado. Quero sair deste demónio para poder estar contigo a toda a hora. Sei que não me serve de nada esta idealização. Sei que não me compensa pensar no futuro. Sei que é uma perda de tempo no meio de tudo isto… No fundo da minha mente, estou consciente de que tenho de trabalhar para estar contigo. Por isso, tento inspirar e expirar. Inspiro, expiro. Inspiro, expiro. Inspiro…expiro…. Inspiro… inspiro… inspiro, não consigo expirar e não há mais ar para inspirar. Repito: inspiro, expiro. Inspiro, expiro. Inspiro…expiro. Ainda não está a resultar…. Inspiro, expiro. Inspiro, expiro. Inspiro, expiro. Noto os ombros a baixarem e tento continuar…. Começo a relativizar e a colocar-te onde sempre devias ter estado - sobretudo agora – em primeiro lugar. Quero que permaneças, mas sei que para isso me tenho de esforçar. Sei, no entanto, que não terei sempre tempo para te posicionar no topo da pirâmide. Estarás imediatamente a seguir, temporariamente em segundo ou em terceiro, com a garantia de que subirás assim que possível. Aliás, com a garantia de que subirás amanhã ou depois de amanhã. LOGO. Porque mereces e porque sem ti não consigo. PORQUE ÉS URGENTE E DEVIAS SER PERMANENTE. Porque te devia querer, aliás, porque te quero.
- As histórias esquecidas do Mundial da lavandaria
Muito já se disse, escreveu e discutiu sobre o Mundial de Futebol que há algumas semanas começou. Seja qual for a seleção que leve o título de campeã do mundo, esta competição será historicamente lembrada como aquela em que os interesses económicos de uma instituição e os interesses políticos de um Estado autocrático se sobrepuseram aos valores fundamentais que, enquanto comunidade, deveríamos privilegiar, e do próprio espírito do futebol, enquanto elemento que agrega as massas, exortando paixões e emoções. Desde 2010, ano em que foi atribuída a organização deste campeonato do mundo de futebol ao Catar, muitas vozes se têm levantado a propósito dos motivos que levaram a esta escolha, e da transparência da mesma. Ainda antes da atribuição em concreto, todo este processo estava já envolto em polémica. Começando na votação, a cargo do Comité Executivo da FIFA, organização essa que é a entidade máxima ao nível do futebol mundial, foram afastados dois membros deste Comité após uma reportagem do jornal inglês Sunday Times , que reportava que aqueles se dispuseram a vender o seu voto. A partir daí, as suspeitas de corrupção sucederam-se, num efeito bola de neve. No buffet de suspeições a propósito deste Mundial, foram servidas tanto denúncias de subornos de vários membros do Comité Executivo, como ofertas de investimento a troco de votos, bem regadas com influências políticas. No ano de 2013, foram ainda chamados à ficha de jogo de obscuridades, o então presidente francês Nicolas Sarkozy, Michel Platini (presidente da UEFA na época) e o emir do Catar, que segundo o jornal France Football , se encontraram para almoçar dias antes da votação. A investigação que, até ao momento, produziu mais informação, foi levada a cabo pelas autoridades norte-americanas, e ainda se encontra a decorrer. Esta resultou na detenção de 40 pessoas por suspeitas dos singelos crimes de enriquecimento ilícito, gestão danosa e lavagem de dinheiro no processo de atribuição dos Mundiais de 2018 e 2022. A verdade é que todas as investigações lançadas pelas mais diversas entidades ao longo dos anos, chegaram inevitavelmente à mesma conclusão: valores mais altos se levantaram no decurso do procedimento de seleção dos anfitriões destes dois campeonatos do mundo, nomeadamente o valor do dinheiro e do poder, que corroem as instituições de maior gabarito internacional. Como se as suspeitas de corrupção não fossem suficientes, ainda se vieram juntar à equipa titular deste campeonato do mundo as violações de direitos humanos que ocorrem no Catar, em particular, os direitos dos trabalhadores migrantes. O Catar, um pequeno país da península arábica, tem sensivelmente 3 milhões de habitantes, sendo que 88% dessas pessoas são estrangeiros. Estima-se que 2 milhões dessas pessoas sejam trabalhadores migrantes, constituindo 95% da população empregada. A maioria destes trabalhadores são homens originários de países como as Filipinas, a Índia, o Paquistão, o Nepal e o Bangladesh. Desde o ano da atribuição já foram gastos cerca de 19,3 mil milhões de euros na construção de estádios, estradas, hotéis, linhas de metro e outras infraestruturas necessárias para o torneio. Todas essas estruturas estão indelevelmente marcadas pelo sucessivo desrespeito pelos mais básicos princípios, que, em teoria, deveriam pautar a Humanidade como um todo, e que ocorreram debaixo dos olhares de todo o mundo. Na busca incessante por proporcionar melhores condições às suas famílias, estes trabalhadores foram subjugados a situações de autêntica escravatura moderna. Até ao ano de 2020, vigorava no Catar o regime da kafala , segundo o qual os trabalhadores ficavam dependentes de um tutor (o empregador, por exemplo), que lhes confiscava os documentos, impedindo a mudança de emprego, e até, a saída do país. A Amnistia Internacional, num relatório por si publicado em 2016, tornou público que os trabalhadores migrantes que estavam encarregues de construir os novos estádios "sofreram abusos sistemáticos, em alguns casos trabalho forçado". Dos 132 trabalhadores entrevistados por esta organização, todos revelaram ter sofrido algum tipo de abuso. A real dimensão desta tragédia ficou patente após uma investigação do jornal inglês The Guardian , publicada no ano passado, que chegou à conclusão de que, desde que o Catar foi designado como organizador do campeonato do mundo de 2022, morreram mais de 6.500 trabalhadores da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka. Todavia, o próprio jornal ressalva que estes números são, na realidade, superiores, porque não incluem as vítimas mortais oriundas de países como as Filipinas ou o Quénia, nem as mortes ocorridas no final de 2020. Dados do próprio governo catariano indicam algumas das causas de morte destes trabalhadores, figurando nestas os acidentes rodoviários, acidentes no local de trabalho e suicídio. No entanto, a mais comum das explicações é apresentada como “causas naturais”. De acordo com o The Guardian , 69% das mortes entre trabalhadores indianos, nepaleses e do Bangladesh e 80% entre os trabalhadores indianos são enquadradas nesta categoria. O jornal inglês acredita que estas classificações são realizadas sem que haja qualquer tipo de autópsia e não oferecem uma explicação médica verossímil para a causa das mortes. Como tão bem afirmou o jornal Expresso : “A estatística mais assustadora do Mundial 2022 é, na verdade, um número desconhecido. Ninguém o sabe determinar ao certo. Mas não são golos marcados, dribles realizados ou defesas efetuadas. Trata-se de abusos e exploração. São mortes.”. É importante nunca esquecer que estes números são mais do que meros algarismos, representam vidas, histórias de pessoas como nós. Foi com este intuito que a plataforma de jornalismo de investigação sueca Blankspot desenvolveu o projeto Cards of Qatar . Estes jornalistas decidiram dar um twist às tradicionais coleções de cromos de futebol, elaborando uma coleção dedicada aos trabalhadores que perderam a vida no âmbito da preparação para o Catar receber o campeonato do mundo. Estas cartas permitem materializar o lado humano dos números, ao exibirem uma fotografia da pessoa, o seu país de origem, a sua data de nascimento e morte e, no verso, uma breve exposição do contexto que rodeou a sua morte. Martin Schibbye, editor-chefe e cofundador da Blankspot , deslocou-se às terras-natais de algumas das pessoas por detrás das cartas - aldeias e vilas perdidas no meio de montanhas e vales - e falou com as famílias, mostrou-lhes as cartas. Numa comovente partilha, estas mães, pais, viúvas, órfãos, irmãos, amigos, contaram mais sobre os seus entes queridos que, sem que nada o fizesse prever, adquiriram um bilhete sem regresso para aquele pequeno estado da Península Arábica. Uma dessas histórias é a de Sita Kumari e dos seus três filhos, Sunita (19), Salina (11) e Manish (9). O marido de Sita, Kubir Singh, emigrou do Nepal para o Catar pouco depois de a primeira filha de ambos ter nascido. Kubir trabalhava na construção civil, era operador de equipamento pesado, e, mais importante, era o “ganha-pão” da família. Durante 19 anos, Kubir fez do Catar a sua casa, regressando ocasionalmente ao Nepal. Sita conta que nas suas últimas conversas com o marido, este mostrava desejo de voltar ao seu país. Ocasionalmente dizia-lhe que se encontrava doente, e os seus colegas de trabalho também. Sita relata que se eles faltassem um dia ao trabalho, ficariam sem dois dias de salário. Eram assim as regras. A narrativa começa a ganhar contornos trágicos quando, num dia de trabalho, Kubir sentiu-se mal e caiu do rolo compressor que conduzia. A viúva afirma que ele interpretou este momento como um sinal e comprou um bilhete de avião para casa. Infelizmente, Kubir não teve a oportunidade de concretizar o seu plano: na sequência de outro desmaio foi levado para o hospital. Dez dias depois, o seu corpo aterrou no aeroporto de Kathmandu, a capital do Nepal. Do seu certificado de óbito constava que a causa da morte era “hipertensão arterial, que afetou os rins”. Sita acusa a empresa para a qual o marido trabalhava de não lhe ter prestado os cuidados médicos adequados e de não ter tido em atenção o seu estado de saúde. A família recebeu, da empresa, uma indemnização no valor de 4.500 dólares. Kubir era a sua única fonte de rendimento, foi graças às quase duas décadas que este passou no Catar que os filhos puderam frequentar a escola, e que ambicionavam, no futuro, construir uma casa para toda a família. Agora, todas essas aspirações encontram-se comprometidas: Sita e os filhos viram-se forçados a mudar para uma casa com piores condições de habitabilidade (tendo sido danificada por um terramoto, a renda desta é mais baixa), e será praticamente impossível os filhos manterem-se a estudar. Este é apenas um exemplo, entre outros que ficaram registados para a posteridade nas cartas. A receita do bolo de polémicas confecionada pelo Estado do Catar e pela FIFA não estaria completa sem mencionar os valores retrógrados pelos quais se pauta este país. Poucos dias antes do início do campeonato do mundo, Khalid Salman, embaixador desta competição e ex-jogador do Catar, afirmou, em entrevista ao canal de televisão alemão ZDF , que a “homossexualidade é haram [proibido]”, e, antes de ser interrompido por um assessor, teve a oportunidade de completar: “E haram porque é um distúrbio mental”. Nesta senda, nunca é demais relembrar que a homossexualidade é prevista como crime no Código Penal catariano. Numa manifestação de apoio para com a hostilizada comunidade LGBTQIA+, capitães de várias seleções (Inglaterra, País de Gales, Bélgica, Holanda, Suíça, Alemanha e Dinamarca) planeavam utilizar a braçadeira “One Love”. Esta braçadeira, com um coração preenchido pelas cores da bandeira arco-íris e um 1, no centro, representa a luta pela diversidade, inclusão e pelos direitos sociais da comunidade. Porém, estas 7 equipas desistiram da iniciativa após a FIFA ameaçar que o jogador que entrasse em campo envergando a braçadeira em questão, seria punido com cartão amarelo. De acordo com esta entidade, os equipamentos das seleções não podem conter qualquer tipo de mensagens políticas, religiosas ou pessoais, nem imagens. Fica, então, bem patente a hipocrisia de uma instituição como a FIFA, e a sua dualidade de critérios. Se em fevereiro deste ano não hesitou, a par da UEFA (entidade máxima do futebol a nível europeu), em banir a seleção e os clubes russos das competições por si organizadas, na sequência da invasão à Ucrânia por parte da Rússia, agora, a FIFA vem, nem que de modo indireto, apelar a que não se faça do futebol um espaço político. Não questiono a pertinência e adequação da primeira decisão; ponho em causa, isso sim, o facto de existirem dois pesos e duas medidas quando se abordam este tipo de questões no âmbito futebolístico. Das duas uma: ou bem que se fazem campanhas publicitárias a incitar ao respeito e não discriminação, e se sancionam as equipas de futebol de determinado Estado pelas decisões tirânicas dos seus líderes, ou bem que se assobia para o lado e se diz que são 22 senhores a correr atrás de uma bola, e o que interessa é se a mesma entra ou não na baliza, sendo tudo o resto secundário. Fica o meu apelo à FIFA, através deste singelo texto, que escolha um lado. A poucas semanas da final, é visível a aderência da população mundial, num geral (e nesta me incluo a mim própria), a esta competição. O fenómeno de sportswashing , ou seja, o uso de um evento desportivo para desviar as atenções de problemas graves de direitos humanos, encaixa que nem uma luva no que tem sido o Mundial 2022 desde a sua raiz. Para a FIFA e para o Catar este é apenas um instrumento para atingir os seus fins. No caso da FIFA e da teia de interesses que nela habita, para se enriquecerem. Já o propósito do Catar, sendo um modesto território cercado pelos poderosos estados da Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Irão, deseja aumentar a sua exposição e relevo e demonstrar a sua abertura ao resto do mundo. O Catar, à boleia da FIFA, moldou astuciosamente uma imagem que quis vender à comunidade internacional, por forma a ser convocado para a equipa das grandes potências e a poder dialogar com os titulares da política global. Contudo, e apesar da popularidade deste torneio, a reputação do Catar enquanto país sofreu danos em função de todas estas controvérsias bem conhecidas, não se podendo afirmar que este plano foi bem sucedido na sua totalidade. É, por isso, imperativo garantir que nenhum outro acontecimento social, cultural, artístico ou desportivo tenha as implicações e antecedentes deste Mundial. Não poderia finalizar este périplo sem antes citar um dos grandes humoristas da nossa praça, Ricardo Araújo Pereira, que, na edição de 18 de novembro da Revista Expresso, com o humor mordaz a que nos habituou, escreveu o seguinte: “O Mundial do Catar tem ainda a vantagem de demonstrar uma teoria que formulei há muito: se desumanidades forem cometidas com uma bola de futebol por perto, ninguém leva a mal”. Para saber mais sobre o projeto Cards of Qatar : https://cardsofqatar.com/en/ Instagram: CardsOfQatar Twitter: CardsOfQatar Referências: https://maisfutebol.iol.pt/mundial-2022/qatar/como-e-que-o-mundial-2022-foi-parar-ao-qatar https://www.theguardian.com/football/2022/nov/27/qatar-deaths-how-many-migrant-workers-died-world-cup-number-toll https://www.tsf.pt/mundo/catar-diz-que-entre-400-e-500-trabalhadores-morreram-nas-construcoes-para-o-mundial-15398122.html https://www.rtp.pt/noticias/mundo/catar-mais-de-6500-trabalhadores-migrantes-morreram-enquanto-se-prepara-mundial-de-2022_n1299512 https://www.theguardian.com/global-development/2021/feb/23/revealed-migrant-worker-deaths-qatar-fifa-world-cup-2022 https://tribuna.expresso.pt/mundial-2022/2022-11-19-Alem-das-estatisticas-ha-cartas-manchadas-de-sangue-no-Catar-O-legado-deste-Mundial-sao-viuvas-a-chorarem-maridos-13c534ed https://blankspot.se/part-1-families-whose-dreams-were-crushed-in-qatar/ https://www.publico.pt/2022/11/08/desporto/noticia/mundial-futebol-embaixador-prova-homossexualidade-disturbio-mental-2026908 https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2022/11/entenda-o-que-e-a-bracadeira-one-love-e-por-que-a-fifa-a-proibiu.shtml https://www.publico.pt/2022/11/18/desporto/noticia/qatar-2022-soft-power-afinal-sportswashing-2028180
- O choque de estar conformado
“Só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde, educação” -Sérgio Godinho Em 1974, Sérgio Godinho escrevia estas palavras; hoje, os representantes de múltiplas Associações de Estudantes juntam-se para as concretizar. Na sequência do apelo ao Reforço da Ação Social comunicado pela Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, os representantes das Associações de Estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Faculdade de Ciências e Tecnologia e da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, da Faculdade de Letras e da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, da Escola Superior de Teatro e Cinema e do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território reuniram-se para discutir e apelar ao reforço da Ação Social no Ensino Superior, essencialmente no âmbito das bolsas, das cantinas e do alojamento. Porém, à concretização desta reunião opuseram-se os habituais problemas de uma Direção que nada pretende alterar: à última da hora, o auditório que compreendia centenas de estudantes foi substituído por uma pequena sala nos confins do edifício. Este reforço demonstra-se essencial para garantir uma verdadeira igualdade de oportunidades no ensino superior, pois, embora o concurso nacional de acesso seja isento de discriminações, a alienação dos estudantes com menos recursos é visível ao longo de todo o percurso académico. É clara e indiscutível a necessidade de combater estes problemas que preconizam uma elitização deste que é, supostamente, um direito de todos e, consequentemente, restringem a sua universalização. Estudantes de passados e presentes diversos, de Universidades diferentes e de áreas distintas, mas com problemas e reivindicações comuns; a falta de qualidade nutricional das refeições servidas, a falta de cantinas sociais e, quando existentes, as longas filas destas, a insuficiência de lugares para todos os estudantes, o apoio psicológico inexistente ou insuficiente, as más condições das estruturas, a falta de alojamento e a situação precária das residências, os atrasos das bolsas e o subfinanciamento das mesmas, a negligência das necessidades dos estudantes com necessidades especiais e a falta de professores são protestos coletivos destes estudantes. Numa nota mais pessoal aos estudantes de Direito, o Presidente da Associação de Estudantes, Luís Miranda, aponta as precárias condições do alojamento em Campolide, com 180 camas para milhares de estudantes, que se viram obrigados a viver 3 dias sem água quente e aquecimento, em quartos diminutos; reforça também a necessidade de mais salas de estudo, lamentando a substituição do conhecido “Aquário” por duas salas muito menores sem as condições essenciais para um dia de estudo prolongado, especialmente noturno; adicionalmente, destaca as pobres escolhas alimentares presentes na cantina social, que impossibilita uma alimentação nutricionalmente completa e deixa dezenas de estudantes vegetarianos sem um prato que os sacie. Ainda nesta nota, refere que o bar da faculdade encerra às 18h, não obstante o facto de múltiplos estudantes continuarem em aulas até às 22h, vendo-se estes forçados a alimentar-se de café e bolos das máquinas automáticas. Referindo uma das principais medidas do programa eleitoral, salienta o facto de apenas existirem 2 psicólogos, que não estão em regime de exclusividade, para 1300 estudantes; realça também a falta de representação dos estudantes nos órgãos da faculdade e a consequente necessidade de revisão do RJIES e do regime fundacional. Assim, apela a que se deixem as meias soluções da Direção, apoiadas na transferência para Carcavelos (a qual ainda não foi discutida com os estudantes que serão alvos da mesma), que em nada resolvem os problemas atuais dos estudantes, e que estes se mobilizem contra as condições existentes, não se conformando com as mesmas. Mas, no meio de tantos problemas, quais são as soluções? Ora, para todos os representantes presentes aparenta não existir uma poção mágica que os elimine, o que funciona e tem funcionado ao longo dos anos é a resistência e a persistência dos estudantes; é através de abaixo-assinados, protestos e concentrações nas respetivas faculdades, é através da consciencialização e mobilização dos colegas e através da manifestação das exigências nas ruas, especialmente no tão acarinhado 24 de março, o dia em que milhares de estudantes se juntam e saem às ruas para relembrar que, tanto em 1962 como atualmente, a verdadeira mudança só é conquistada quando não nos conformamos e exigimos o que é nosso por Direito. Mafalda, presidente da Associação de Estudantes da FCSH, brinca com a expressão “o choque de estar conformada”, ou seja, com o facto de ficar chocada quando se apercebe que ela, tal como muito outros estudantes, se tornaram indiferentes e normalizaram as más condições; brinca que chocante não é ter uma barata na cantina, mas sim estar habituado ao ponto de já considerar isso algo normal. Vemos um paralelo na nossa própria faculdade, "Mais uma da nova escola da lei" tornou-se um lema acarinhado e jocoso para definir as condições precárias que nos são opostas diariamente. Esta expressão prevê a normalização de sucessivos infortúnios e situações, que não são meras peripécias de uma instituição de renome, mas sim a divulgação da indiferença para com as necessidades basilares dos estudantes e a consequente preterição das mesmas. Perante toda esta conjuntura, o que nos resta fazer? A História já comprovou que só as vozes, em uníssono, de todos os estudantes são capazes de produzir mudança efetiva e duradoura, assim, resta-nos continuar a lutar e a resistir para que mais nenhuma destas ocorrências se normalize e para que o ensino possa ser de todos e para todos.
- A União Europeia
A atual União Europeia teve a sua origem em duas comunidades: a Comunidade Económica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), com 6 países fundadores, em 1958 - Alemanha, Itália, os Países Baixos, França, Bélgica e o Luxemburgo. Portugal entrou apenas em 1986, e alguns países ainda estão em processo de entrada, como a Ucrânia (este processo é demorado e complexo). Desde a sua formação, a UE tem vindo a sofrer alterações, não sendo, atualmente, apenas uma organização económica. É composta por 24 idiomas oficiais e 27 países membros (até 2020 era composta por 28 membros, no entanto, nesse ano, deu-se a saída do Reino Unido da organização). Numa simples primeira análise, podemos dizer que existem três poderes dentro da mesma: o poder executivo, o legislativo e o judiciário. Ao nível do poder legislativo, existem 705 deputados europeus distribuídos por todos os países membros de forma proporcional à sua população (com a saída do Reino Unido, este número diminuiu, sendo, anteriormente, de 751 deputados). Portugal, por exemplo, tem direito a 21 deputados; já a Alemanha tem 96 deputados. Existem 10 partidos europeus. O maior partido é o Grupo do Partido Popular Europeu, com 179 deputados, e o segundo maior é o Grupo da Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas no Parlamento Europeu, com 146 deputados. É importante referir que apenas o Parlamento Europeu é nomeado diretamente, os outros órgãos não o são. A atual presidente do Parlamento Europeu é Roberta Metsola, e tem como funções dirigir os trabalhos e representar o Parlamento nas outras instituições da UE. As eleições para este órgão ocorrem de 5 em 5 anos, através de sufrágio universal. Contudo, cada país detém as suas próprias regras para a realização destas eleições: por exemplo, a idade mínima para votar é de 18 anos, mas para concorrer ao Parlamento varia de país para país. O parlamento só aprova ou desaprova as leis propostas pela Comissão Europeia (executivo), não tendo a seu cargo propor leis. Ainda dentro deste poder, existe o Conselho da União Europeia. Este órgão é composto por 27 membros (cada um dos países indica alguém para o órgão, dependendo do assunto que será debatido), e tem como principal função votar aquilo que o Parlamento já votou. Ao mesmo tempo, o correspondente ao poder executivo é dividido em dois órgãos: a Comissão Europeia e o Conselho Europeu. A atual presidente da primeira instituição referida é Ursula Von Der Leyen. Esta comissão tem como principais funções elaborar leis, tratar dos tratados internacionais, e da entrada ou saída de um país da UE. Tem 27 assuntos e a cada país é atribuído um. O seu mandato tem uma duração de 5 anos. Paralelamente, é o Conselho Europeu (composto pelos chefes de Estado) que define que país fica com cada assunto. O atual chefe deste órgão é o Charles Michel. Por último, a nível do poder judiciário, existem 2 órgãos: o Tribunal de Contas, que fiscaliza o Orçamento, e o Tribunal de Justiça Europeu, composto por um juiz de cada um dos 27 países, por um mandato de 6 anos. Em suma, numa época de tanta instabilidade política a nível mundial, é importante percebermos o funcionamento das instituições, especialmente da UE, por ser uma instituição em que o nosso país se insere e em que opera de forma ativa.
- Teia de Mentiras
Foi uma mentira. Uma ilusão que tu com muito prezar criaste. Era tão perfeita. Até mesmo inacreditável. Fizeste a tua teia com muito cuidado. Demoraste os teus dias para que cada detalhe estivesse sublime. Esperaste que eu, a mosca, a presa, se encantasse com o brilho dos fios de seda, molhados pela orvalhada. O sol ao refletir neles deixou-me cega. Cega de alcançar aquele tesouro. Era tão lindo, tão brilhante. Pensei que finalmente tinha encontrado uma mina de diamantes. Estava rica. Quando afinal não conseguia sair. As minhas asas ficaram de imediato agarradas aos filamentos luzidios. Quanto mais tentava sair, mais ficava embrenhada nos cordões viscosos. Já estava a ficar sem ar, apertada, com o desespero de procurar uma saída rápida. Os dias, que aqui foram minutos, foram de verdadeira cólera. Apesar do pânico, ainda estava encadeada por tanta luz. Mas, o pavor foi muito maior quando toda esta claridade desapareceu. De repente, puseste-te à minha frente, deixando-me na escuridão. O que consegui ver eram os teus olhos. O teu olhar fixo, gélido e apático que me mortificou. A imposição da tua altura colocou-me num lugar de inferioridade. Quando te aproximaste apercebi-me do quão monstruoso eras. Pavor e nojo era o que sentia quando olhava para ti. Comecei a sentir o teu bafo quente e percebi que seria o fim. Porém, não o fizeste depressa, como a luz que se apagou quando eclipsaste o sol. Ficava cada vez mais e mais apertada. Enrolaste-me em correntes sobre correntes, até estar bem amarrada, presa, sem qualquer escapatória. Afastaste-me da luz quente dos dias, do toque fresco das madrugadas e do vislumbre da própria vida. E foste-te embora. Eu ali fiquei à espera que voltasses. Enquanto agonizava, tu desfrutavas da tua refeição anterior. A seguir, era eu, já fria, sem qualquer sopro de vida.
- sonhos de elefante
Limpo as lágrimas com a mão esquerda, dígito o número de telemóvel com a direita e ando em passos largos pelo passeio. Tenho o rímel borrado por causa do choro e a franja despenteada. As palavras do Afonso parecem vir com o vento, como ecos: “Catarina, vou ser sincero. Não acho nada de especial, sinto que já vi isto em algum lado. Parece que as tuas pinturas não estão vivas e que as enterraste antes sequer de lhes teres dado vida.” Se os meus quadros tivessem sido pintados a partir de um ponto de vista “típico” masculino, marcados por um heroísmo entediante, por uma vitimização desmedida e por um aborrecimento mascarado de tristeza, então, o Afonso amá-los-ia. Que tolo, ele não passa de um homem tolo! Que sabe ele sobre a minha arte? Que sabe ele sobre mim? Só sabe aquilo que eu deixei que ele soubesse, o que corresponde a absolutamente nada, sou tão camaleónica como uma bola de espelhos. A minha relação com o Afonso resumia-se a isto - ele punha sal nas minhas feridas, enquanto me dava beijos na bochecha. Encosto o telemóvel à cara molhada e ouço uma voz enfurecida: “Onde estás? Estás atrasada! O jantar está a arrefecer! Catarina? Catarina, querida, estás a chorar? Passou-se alguma coisa? Está tudo bem?” Suspiro e começo: “Acho que não está tudo bem, mãe. Às vezes, sinto que o meu cérebro não acompanha a velocidade do meu coração. Como se estivessem os dois a jogar à apanhada e o meu coração fosse tão veloz como o Aquiles e ninguém o conseguisse apanhar. Hoje, alguém por quem tenho carinho disse-me que não gostava dos meus quadros. Eu não sei ser sem os quadros que pinto, mãe. O que quero é que todos me digam “Catarina, querida, está tão bonito. És tão bonita. Amo-te”, tal como tu dizias quando eu te desenhava com braços e pernas palito. Mãe, eu adoro-te, mas a culpa talvez seja tua por me habituares sempre à tua devota aprovação. E, agora, quando não a recebo dos outros, apetece-me rasgar-me, colar os pedacinhos de outra forma e fazer um puzzle novo. Antes, a Mafalda ajudava-me sempre a fazer o puzzle no chão da sala. Ela insistia em pôr juntas peças que, notoriamente, não encaixavam, mas, de alguma forma, a imagem final ficava muito mais bonita do que a de referência que vinha com a caixa do jogo. Agora, não partilho com ela qualquer responsabilidade artística. E, caramba, ela acabou de comprar um casarão e aposto que está grávida, porque não bebeu uma gota de vinho no último jantar que tive com ela e eu sei que ela adora vinho. Mãe, a Mafalda que eu conhecia odiava crianças, sabias? A Mafalda que eu conhecia queria viajar pelo mundo, enquanto me dava permissão para ser minha musa, por um prazo indefinido. Eu acho que ela sempre adorou o estrelato que os meus quadros lhe davam, orgulhava-se de ser o epicentro de quase todos os meus terramotos artísticos. Quando chegava à altura da inauguração da exposição do meu trabalho de fim de semestre na faculdade, a Mafalda era o centro da sala. Todos os olhos se viravam para a rapariga com roupa eclética e com um sorriso maior do que o mundo. Ela fingia não gostar da atenção e, então, como por caridade, pegava-me no braço e forçava-me a falar com as pessoas sobre as pinturas. É certo que as conversas eram, geralmente, controladas por ela, mas eu deixava, deixava-a controlar tudo. Funcionávamos assim e não havia nada de mal nisso, eu estava feliz com o que pintava e ela juntava “ser musa de uma semi-artista” ao lado de “ter uma cara de boneca” à lista de coisas que faziam dela uma mulher fatalmente atraente, não dando hipóteses a qualquer pessoa que se recusasse a apaixonar-se por ela. Lembro-me de ela me dizer, enquanto pintava as unhas dos pés com uma mão e mudava de canal com a outra, com o rosto iluminado pela luz da televisão: “Catarina, vamos para a Tailândia, vais pintar-me enquanto eu estou agarrada a um elefante e te sorrio com os dentes todos!” Eu sabia que não havia dinheiro para irmos à Tailândia, nem para viajarmos pelo mundo, a Mafalda estudava teatro e eu estudava pintura, não estudávamos uma engenharia qualquer, que nos desse um bom ordenado. A Mafalda sabia disso, a Mafalda sabia que nós nunca iriamos à Tailândia sozinhas e que eu nunca a pintaria agarrada a um elefante, enquanto ela me dizia, aleatoriamente, que cores utilizar para a pintar a ela ou ao animal e me sorria com os dentes todos. A questão é que, para ela, o sonho bastava e para mim também. A Mafalda tinha consciência de que só a proposta de tal ideia me faria feliz, ela sabia que eu adorava sonhar acompanhada, aliás, que eu vivia para ser arquiteta de sonhos, independentemente deles se transformarem numa coisa concreta ou não passarem de bolinhas de sabão que pairavam aqui e alí. Agora, eu e a Mafalda deixámos de fazer isso. Deixámos de partilhar sonhos. Ela faz o que todos os outros adultos fazem, fingir. A maior parte de vocês brinca ao jogo da vida a fingir. Vivem em casas a fingir, com pessoas a fingir, fazem sexo com o vizinho a fingir, têm um emprego a fingir… Sabes o que está presente em todos os meus quadros, mãe? Sede pela vida. Eu pinto para que os outros gostem de mim, acho que tudo o que fazemos é uma forma de nos amarem um bocadinho mais, mas também o faço para provar a vida vezes sem conta, como se ela fosse um fruto infinito. No final de contas, as duas coisas podem coexistir. Pintar é saborear a vida de diferentes formas, das formas que eu conseguir sonhar, até não der mais, até o meu cérebro, finalmente, conseguir apanhar o meu coração e lhe dizer, com uma voz autoritária: Acabou. Para de andar em círculos. Já foste todas as Catarinas que quiseste ser. Já colheste todos os figos e já os comeste todos. Para de pintar telas e a seguir de as cobrir de branco. Começa a usar outros sapatos mais confortáveis que não aquelas botas horrorosas que a Mafalda te deu nos anos. Vai descansar, leva os teus sonhos até ao fundo da piscina de alguém e enterra-os lá, entrega-os a outras pessoas, como se fossem presentes. Continua a decorar as caixas dos teus cérebros (que são tão teus como das pessoas às quais os roubaste), trata bem deles. Mas, vá lá, Catarina, está na hora. Vai fingir como os outros fingem.”
- A (des)proporcionalidade do poder
Parece ser exatamente numa faculdade de Direito, o sítio que deveria inspirar uma maior democracia, que os pratos da balança se começam a desequilibrar. Os dias são longos, as aulas são duras e, mesmo assim, parecemos viver num ambiente que expira o oposto de empatia. Quem mais deveria lutar pelo equilíbrio social e justiça, é quem mais facilmente esquece a doutrina dos “freios e contrapesos”. Lutamos tanto pelo nosso mérito pessoal, pela chance de sermos alguém, que nos esquecemos que sozinhos nada somos, que sem a comunidade à nossa volta nada acontece, que sem pessoas o mundo não se mexe. Quando as hierarquias se sobrepõem ao bom senso e aos trâmites das relações interpessoais estamos perante uma das maiores perdas da humanidade, quando os agentes da mudança escolhem apenas mudar o que ajuda os próprios e esquecer que a mudança só serve se beneficiar todos, quando as “antíteses do burocrata” dificultam os seus próprios processos para impedir que estes sejam atingíveis pelos demais, quando não olham a meios para atingir os fins, quando abusam do seu poder – algo está seriamente errado. Deixarmo-nos levar pelo poder que, por um meio ou por outro, nos dão, não só constitui um abuso de confiança como é precisamente o oposto daquilo que todos devíamos ambicionar atingir num mundo democrático e num mundo em que todos podemos viver em harmonia e com iguais oportunidades. No mundo em que, em princípio, todos queremos viver. Para se garantir o respeito pelas instituições, não precisamos de autoritarismos despropositados, nem de ações desmedidas. Não precisamos de viver em medo constante em ambientes que deveriam ser de leveza, colaboração e partilha. As regras são fundamentais. Mas nunca podemos deixar para trás os tão conhecidos “freios e contrapesos” que devem vir com elas. No universo do Direito, o princípio da proporcionalidade é o mais parecido que temos com bom senso e equilíbrio. Por isso, deixamos um apelo a que todos comecemos a aplicá-lo no nosso quotidiano. Antes de agirmos, pensemos: é adequado? é necessário? Existem mais vantagens nesta atuação do que desvantagens? E, ao fazê-lo, não pensemos apenas no que é mais benéfico para nós mesmos. Retiremo-nos da equação por alguns momentos. Será que é proporcional agir desta maneira neste momento? Talvez nos surpreendamos com a quantidade de vezes em que, ao pensar desta forma, agiríamos de forma diferente… Talvez o mundo fosse um lugar melhor, mais feliz, com mais humanidade. Talvez todos o quiséssemos habitar sem receios. Numa altura em que tanto falamos (e bem) de saúde mental, por que é que escolhemos tantas vezes pôr de lado a empatia, e nos esquecemos de pesar os reais benefícios de agirmos de certa forma, muitas vezes sem efetiva justificação? Por que é que gritamos aos sete ventos que nos preocupamos com os outros, que sentimos as injustiças do mundo e as tentamos resolver, que amamos aqueles que nos são mais próximos, se depois nem eles sabemos tratar com a empatia necessária? Se nem por eles pomos de lado as nossas ambições invencíveis? Numa sociedade que já aspira a tanto mal, num mundo que já transborda de crueldade, numa faculdade que já propende para o desespero, não sejamos mais um veículo de malignidade, mais um tubo de escape de truculência. Não. Sejamos antes uma mão amiga, uma cara conhecida, um rosto familiar. Sejamos aqueles de quem o mundo precisa, por muito difícil que isso seja, e não aqueles que o mundo já tem em excesso. O verdadeiro desafio que a vida nos apresenta não é alcançar as posições de destaque, essas são atingíveis com mais ou menos suor; a dificuldade não está em construir uma casa, está em fazê-lo sem deixar pedras para que os outros tropecem, está em limpar à medida que avançamos para que os outros não tenham de sofrer com o pó que fica no ar, está em não cobiçar o andar extra que o vizinho tem. A dificuldade está em distinguir entre a própria ambição e os meios usados para atingir o que tanto ambicionamos. Muitas vezes, temos de ter cuidado para que a linha ténue não se apague… Não nos deixemos enganar pelo que vemos os grandes líderes a fazer, não nos enganemos com o modo pelo qual os vemos a chegar ao poder… O mundo não precisa de mais hipocrisia e traição. O mundo precisa, agora e desde sempre, dos “grandes de alma” – aqueles que estão sempre prontos a ajudar, aqueles que se esforçam para nos deixar com um sorriso na cara, aqueles que partilham o guarda-chuva, e não os que rezam para que fiquemos constipados…
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