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  • Errância

    Todos os anos se escrevem textos sobre este dia. Nada do que escreverei aqui será novo, talvez a maneira como o farei estará ligada intrinsecamente à forma própria da minha escrita, mas nem isso considero especificamente inovador. Mesmo assim, sinto necessidade de escrever algo. Anteriormente, disse que o ato da escrita me era uma questão de imposição. Uso-o para me impor. É talvez uma jogada sádica, mas é a única coisa que sinto que consigo agarrar realmente pelas mãos. Atrevo-me a adivinhar que a impotência que sinto perante certos aspetos do mundo que não a escrita se deve um pouco/muito ao facto de ser mulher. Reconheço que o meu síndrome de impostor tem laivos de misoginia internalizada. Contudo, ambiciono fazer da escrita a prova de que é possível encontrar poder na minha feminilidade e não numa versão distorcida de masculinidade. Não pretendo copiar dicionários do léxico da típica liberdade masculina tóxica, traduzi-la, estudá-la, aproveitar o que me interessa e deitar fora o resto. Não pretendo apagar a minha Mulher para poder sentir um vestígio de poder fictício momentâneo, coisa na qual o movimento feminista cai vezes e vezes sem conta. Chega de justificações e introspeções. Vamos ao que interessa. Em Portugal, em termos normativos, legislativos, penso que o caminho tem sido feito. A maior parte da mudança está feita (sim, é importante pensar acerca de como a lei do aborto está feita para promover o contrário do seu propósito. Há problemas.), mas o machismo parece estar mais presente na nossa cultura em si. A sociedade parece não acompanhar a lei. É percetível a olho nu que o Patriarcado, para além de ser um sistema em termos institucionalmente ditos, perdura em micro-agressões, em misoginia internalizada, em condescendência, em apalpões, em um homem explicar o que é percetível a uma mulher, em vitimização masculina desmedida, em trabalho doméstico feminino excessivo, na tendência de encaixar mulheres brilhantes na categoria de “mulher brilhante” e não “pessoa brilhante” (o masculino sempre pareceu o padrão de excelência e normalidade, será a mulher constantemente o “outro”?)... Mudar mentes demora mais do que aprovar legislação. O nosso trabalho mais doloroso é esse. E é o trabalho mais doloroso, porque é o que apresenta mais resistência. Atualmente, acompanhando também o crescimento do Fascismo na Europa, têm surgido discursos retrógrados e bafientos no que toca aos direitos das mulheres na opinião pública, como reação aos progressos feitos até agora. Atrevo-me a dizer que esta resistência, não só se deve ao facto da forma não tão certa como temos adotado o movimento, não só se deve à falta de educação prestada aos homens relativamente a este tema, mas também à inevitável ideia de que a defesa pelos direitos das mulheres ameaça a ideia de superioridade masculina, tão psicologicamente intrínseca na maior parte dos homens, que, se já mudada institucionalmente, como se tem feito, muito facilmente poderá também ser ameaçada nas relações interpessoais. Quando certos homens insistem na inferioridade da Mulher, estão mais focados em sustentar a sua superioridade do que na suposta crença de que a feminilidade é algo inferior. Escreve Virginia Woolf: “A vida para ambos os sexos – e olhei para eles seguindo lado a lado no passeio – é árdua, difícil, uma luta perpétua. Exige coragem e força gigantescas. Mais do que tudo o resto, talvez, sendo nós criaturas de ilusão, exige confiança em nós mesmos. (...) E qual a maneira mais rápide de gerar esta imponderável qualidade, que no entanto é tão inestimável? Pensando que os outros são inferiores a nós. Sentindo que temos uma qualquer superioridade inata – pode ser riqueza ou estatuto ou um nariz direito ou o retrato de um avô pintado por Romey – (...). Donde a enorme importância para o patriarca, que tem de conquista, que tem de dominar, que tem de sentir que um grande número de pessoas, nada menos do que metade da raça humana, é por natureza inferior a ele.”. Para os nossos companheiros masculinos rejeitarem o próprio sistema que os beneficia em desproporcionalidade face às mulheres, têm de encarar a dura realidade de que são o que mais temem ser – “um bicho da terra tão pequeno”, um mero ser mortal. Chega de heróis. Ouçam-nos. Procurem conhecer. Quanto a nós, há que matar o homem machista que vive dentro das nossas cabeças. Resta-nos ser mais compreensivas umas com as outras. Resta-nos não julgar a roupa que outras têm vestida. Resta-nos não ser cúmplice de comentários misóginos por parte dos homens que fazem parte da nossa vida. Resta-nos revoltar-nos quando uma amiga nossa é violentada. Resta-nos tentar ignorar a voz dentro da nossa cabeça que nos diz a todo o custo que não merecemos fazer o que fazemos, trabalhar onde trabalhamos, ganhar o que ganhamos. Pratiquem feminismo como acharem ser o mais correto. Manifestem-se. Mudem leis. Eduquem. Votem. Deem um abraço gigante à vossa avó. Discutam com o vosso pai à mesa. Leiam. Conversem com um bom copo de vinho (as discussões feministas mais complexas e interessantes que tive foram em jantares banais com as minhas amigas). Escrevam. Façam-no como quiserem, mas não se deixem ser convencidas de que isto acabou. De que já não vale a pena. O anseio pela liberdade, ainda que sempre bem retratado em teoria de género, encontrará a sua rebeldia, o seu maior teor revolucionário, entre as estrelinhas, entre a saia de uma avó, entre tintas de uma tela, entre o vermelho de uns lábios, entre o dançar frenético num bar. Entre a errância. Entre a errância sobretudo. (Que palavra bonita!) E, na minha forma preferida, entre um A e um B.

  • Um 5 será sempre um 5!

    Se há algo garantido sobre a época de exames é que no final de janeiro vamos estar todos pelos cabelos com palavras. Em janeiro, palavras não faltam. Principalmente num curso como o nosso, onde há palavras em todo o lado, seja na constituição, nos códigos, na lei X, no acordum Y (cursos muito teóricos é o que dá) …, e números? Bom esses só mesmo nos artigos – e ainda bem.  Eu sempre preferi palavras a números. Sempre as achei mais interessantes do que aquelas coisas matemáticas, daí ter vindo parar a um curso de Direito e ter evitado qualquer forma e feitio que a engenharia pudesse assumir. Mas não é sobre isto a reflexão, é sobre as palavras serem como tintas ao dispor de cada um de nós pintores. A verdade é que cada um de nós, assim como os pintores com as suas tintas, podemos ser criativos e brincar, extrapolar, rir, pintar com as palavras, pois é certo que com certa palavra e a pincelada certa podemos pintar todo um quadro às pessoas a que nos dirigimos e o melhor é q esse quadro pode assumir várias formas, feitios... Está aberto a todo um mundo de interpretações. Ao dizer, por exemplo, bola, há quem pense em bolas de neve, outros em bolas de futebol, outros em bola de carne, etc. Ademais, com cada toque do pincel na tela podemos aprofundar o que pretendemos transmitir ou borrar a pintura por completo… ...Mas números? Esses não mudam. Não tomam forma. Não são dissecados. Não são interpretados. Não são fabricados. Não são imaginados. Criatividade, aqui? 0, zero (perceberam?) Um número 5 é sempre um número cinco independentemente do contexto, é sempre 5: 1,2,3,4,5... 5! Há 10 anos (10 ou seja 10, dez, d e z - mais nada) um 5 era um 5, hoje, em Portugal um 5 é um 5, na China 5 é 5, 5 maçãs é igual a 1,2,3,4,5 maçãs. E amanhã, provavelmente, 5 continuará a ser isso mesmo: 5. Que aborrecido, não é? (Não admira que a malta do técnico ande sempre depressiva). E mais, com meia dúzia de palavras consigo montar uma obra prima, um cenário, um conto de fadas, um mundo novo, um romance, uma fantasia, paisagens nunca antes vistas, criaturas nunca antes vistas, pessoas nunca antes vistas, apenas existentes na imaginação montadas como um puzzle. Não sei quanto a outros, mas a única realidade que pude montar com o 5 foi a referida contagem até ao 5 e flashbacks (traumas) das aulas de matemática. De facto, é um tanto chocante como simples aglomerados de letras, e um simples aglomerado de simples aglomerados de letras pode causar um colossal impacto num amigo, num conhecido, num desconhecido, numa nação e, talvez quem sabe, no mundo. Sim, porque as palavras, apesar de se tratarem só de letras coladas, têm o poder de mudar corações, de penetrarem neles, de fazer a diferença, de ajudar pessoas, de curar um coração partido, de abraçar alguém, de consolar alguém, de relembrar alguém … Então e os números? Consolam? Não, mas calafrios dão. Já alguém fez alguém sorrir com o uso de números? Não, mas, certamente, muitos exames de matemática já fizeram alguém chorar. Mudam o mundo? Meh, mas, certamente, tornam-no mais secante e rígido, ou como os catedráticos engravatados gostam de dizer: mais “objetivo e racional”. Termos este dom, este privilégio de ter acesso às palavras, seja de que língua forem, e sermos capaz de as usar, é algo invejável por outras formas de vida, principalmente o facto de, muitas vezes, nos expressarmos através delas. Não é à toa que o fazemos através das palavras, que eu saiba um 5 não consegue exprimir nem um milésimo da complexidade das emoções humanas, mas já as palavras… palavras por si, sozinhas, isoladas, não, mas para isso existe a poesia. Estas coisas com letras, quando postas de uma determinada maneira, numa determinada ordem, em perfeita sintonia, chegam o mais próximo, daquilo que é possível, das emoções humanas. Por isso é que as maiores demonstrações e formulações sobre o Amor, por exemplo, são sempre em formato de poesia. O mais irónico é que algo assim tão poderoso como as palavras está completamente dependente de nós. Somos, além de pintores, arquitetos, na medida em que não são as palavras que se fazem, somos nós que as fazemos.  A meu ver, além de pintores e arquitetos, ainda podemos ser considerados Deuses pelas palavras, porque não só somos nós que lhes damos vida e sentido, como elas se movem, existem, andam de acordo com a nossa vontade. E acima de tudo: obedecem-nos. Já os números… aquelas pestes estão se pouco marimbando para a nós, para a nossa vontade, o que seja. Que atire a primeira pedra quem, num exercício de “mostre que X = 5”, fez todas as continhas, e, pasmem, no final, X deu 7, e por mais que tentessem obrigar o 7 a passar a ser 5, ele não se demovia. Gritaram e o 7 não se mexeu. Atiraram com o lápis e o 7 nem para o lado andou. Choraram e nem um cabelo do 7 se moveu. Viraram a folha ao contrário e, nop, continua a ser 7. Solução? Refazer o exercício TODO (francamente…). Isto com as palavras era inconcebível! Era só preciso pegar na frase, chegar umas vírgulas para lá, mexer numas letras, trocar um ou outra palavra (e elas, educadas como sempre, não se importavam de chegar para o lado para receber uma nova palavra, ou até mesmo desaparecer) e cá está: uma frase com um sentido completamente diferente. Tudo isto para dizer que devíamos ser mais gratos pelas palavras existirem e por as encararmos no dia a dia no nosso curso, porque podíamos estar piores, acreditem, podíamos estar à procura de X ou a multiplicar 5 por números que nem existem, ou a encontrar o cubo do quadrado da hipotenusa, sei lá.  Ou talvez não, dado de que tudo isto dito aqui é produto de um cérebro já esmiuçado e feito em papas por estar a olhar para palavras há demasiado tempo.

  • Em Amora era tudo mais fácil

    deixas-me perder na tua tempestade em mares perigosos em pequenos copos cambalhotas no sofá a medo, saio na tua paragem é-me mais familiar o gato de rua cumprimenta-me vejo as árvores e flores ao andar ofereço-te ponto de desembarque estrada para ponto morto gotas de baunilha na massa do bolo agulha e linha para a bainha das calças deixo que saltes na poça enlameada que me descubras sempre nas escondidas que trauteies a tua melodia favorita e que te surpreendas sempre que a completar sol que derrete os teus fios de caramelo cócegas no nariz, café a 45 cêntimos chávena de chá preto maço de tabaco no bolso de trás ergues aos sete céus o garfo de quatro pontas da minha casa à tua são três morangos e de mim a ti são duas romãs e eu aceito que me alimentes à colher deposita no mapa as tuas palavras mostra que não precisas de escalas que a tua régua se mede às frutas contornando as formigas que se aproximam evito dizer as palavras concretas “ia embora e era tudo mais fácil” corrijo a banda, alinho as nuvens no céu “em Amora era tudo mais fácil” lábios pintados de framboesas camisolas tricotadas de bolachas restos da tua presença enfim, pestanas alagadas caneta que nunca foi tua sala de espera do escritor abandono do banco de jardim escuridão lateral no mindinho direito  praga dos deuses do olimpo absolvição dos átomos da madeira destruição da lenga-lenga do resumo de paixões a figos secos candelabro que se funde acima da minha cabeça desvio de olhar inerte toca e foge do teu perfume panos húmidos empregues cacos de vidro espremidos na pele pegadas das tuas mãos nas minhas água que ainda ferve para o teu chá ofereces-me fósforos imploras para que ateie fogo à única casa que conheceste prevejo queimaduras nos braços

  • Lu & Gomitas

    (Esta carta é resultado de profunda manipulação emocional ocorrida em território espanhol mediante queixas de insuficientes discursos acerca das minhas melhores amigas no meu aniversário. Portanto aqui está, de forma ainda mais pública do que a que ocorreu na minha garagem acompanhada de bolo de chocolate, a minha grande declaração de amor). Lu e Gomitas, Há uma cena no fim do “Harry Potter: a Pedra Filosofal”, em que o Harry está a sair de Hogwarts e diz que não está a voltar para casa, não verdadeiramente. Eu - fã a um nível pouco saudável da saga - penso muitas vezes nessa cena quando penso em vocês. Cheguei a Lisboa há três anos, sozinha, no auge da minha condição de estudante deslocada, meio desamparada e com o meu pequeno coração a agarrar-se à esperança de encontrar algo, alguém, que o acolhesse e o protegesse. E o que eu encontrei – através de nada mais nada menos do que uma marosca para fazer as leituras de IDPJ – foram duas miúdas que mais do que acolher e proteger, lhe deram uma nova casa. Sinto-me um pouco como o Harry sempre que me despeço de vocês – e sabemos bem o quão frequente isso é, porque “lá vai ela para a Covilhã” – já que sinto sempre que, ainda que esteja a voltar a casa, ao mesmo tempo me afasto de uma outra que entretanto encontrei. Não há palavras que possam explicá-lo nem discursos que alguma vez sentirei serem suficientes para vocês as duas - o vocabulário português, ainda que imensamente bonito, não contém as palavras necessárias para explicar o quão casa vocês são; para falar dessa casa tudo parece pouco, tudo parece fabricado, e vocês merecem a magia do real – aquela que só se sente com um abraço, um olhar, ou um sorriso – palavras para quê? De uma maneira ou de outra, se eu tivesse de escolher de entre as palavras, escolheria para vocês a palavra “saudade”. Enquanto seres humanos invariavelmente condenados à tristeza, nós não costumamos associar a palavra saudade a bons sentimentos. Costumamos associá-la a sofrimento, e a vazio, e a luto. Mas vocês não são esse tipo de saudade. Vocês são a saudade que se sente quando estamos à mesa de um café e nos apercebemos de que o tempo que temos com as pessoas com quem estamos sentados é finito. São a saudade de uma noite longa com bochechas rosadas e olhos brilhantes e muita música. São a saudade de uma troca de olhares cúmplice que não exige uma pergunta. São a saudade de andar pelas ruas de braço dado e de chamadas noturnas sem minutos. São a saudade de rir até doer a barriga e de falar até o sol nascer. Vocês são a saudade de tudo o que passou, a saudade de tudo o que agora há, a saudade de tudo o que ainda virá. São o desejo do para sempre, o antónimo da efemeridade; a completude do tudo, a negação do nunca. São a saudade de casa. Se houver um bom tipo de saudade - aquele tipo de saudade que sentimos num pôr do sol de fim de verão - vocês são a sua materialização. E eu sei - o Harry Potter ensinou-me - que toda essa saudade, que é só amor em forma de balão de ar quente, faz com que vocês nunca me deixem, com que estejam sempre comigo. A vossa presença na minha vida é astronómica e é completamente inconcebível para mim existir sem vocês, que se alojaram irreversivelmente em todas as partes de mim que são melhores por vossa causa. Por isso, mesmo que eu tenha falhado catastroficamente no discurso de garagem, e mesmo que não o diga tanto quanto devia, eu espero que vocês saibam o quão inumanamente feliz eu sou diariamente por poder ter o privilégio de vos encontrar em áudios de 8 minutos, na minha caneca favorita, em qualquer comida sem queijo, em conversas com os meus pais, na paz do mar e na serenidade das montanhas, em sombras de olhos brilhantes, em chamadas recentes do atendedor, em reclamações matinais, e em todas as conversas sérias e menos sérias, confianças e inseguranças, sentimentos confusos e claros e memórias exponencialmente mais caóticas e bonitas e inesquecíveis por serem completamente nossas e que vão existir indefinidamente no universo - porque o amor nunca morre, espalha-se pelas estrelas que são tuas, Leonor, e reflete-se na tua lua, Luana. Falham-me de novo as palavras, por isso manter-me-ei por algo simples: gosto mais de vocês do que de Harry Potter. E se isso não for suficiente, então acrescentarei: eu abdicaria de toda a magia do mundo em troca de uma vida de muggle em que vocês estivessem sempre comigo. Porque, na verdade, eu experiencio magia todos os dias, então sei que ela existe. Sei que tenho a sorte de ser um terço de uma amizade mágica. De um amor universalmente mágico que me faz sentir saudades vossas mesmo quando estão pertinho de mim. E deixem-me que vos diga: que universo tão real e perfeito (afinal é possível) em que existe magia no mundo, e essa magia são vocês.

  • Em ti eu penso 

    (Desabafos de uma corna) Penso logo existo Por isso preferia não existir Porque quando penso, sinto E quando sinto, sinto por ti E sentir é um peso no peito É um ardor e uma mágoa sem fim Quem me dera a mim ser como tu Que nada sentes por mim Mas eu finjo que não reparo (Com doces palavras já te menti) Mas viver neste desamparo É de longe demasiado ruim E eu tento remediar este defeito Consertá-lo, juro que sim! Bastava que não me olhasses desse jeito Que já não precisava de agir assim… E tu em nada reparas Recusas-te a ler nas entrelinhas E por isso nunca te deparas Com as minhas pequenas mentiras E mesmo assim eu aceito Aceito mesmo! Já desisti… Sei que nem todos temos um final perfeito De todo espero isso de ti Pena: porque em ti eu penso Penso até estar fora de mim Penso até sentir aquilo Que gostava que sentisses, mas enfim... 31/08/2023

  • Troca-pés

    à mesa de jantar estou com o meu apetite pelo meio mas é a fome do teu olhar que me prende e me faz erguer a boca do prato para poder em ti repousar por ti não me importo que o tempo nos escape ou que o frio nos congele sei que no teu conforto tenho todo o tempo do mundo e todo o calor do teu amor nunca pensei que as cores se pudessem avivar ou que o sol pudesse brilhar tanto mais com a tua presença que um perfume me pudesse cativar ou que uns lábios me pudessem enclausurar tanto quanto é bom te amar aos poucos vamos despertando enquanto aos poucos vou percebendo que o meu sonho bom continua a meu lado que não foi uma ilusão dos meus olhos cansados eis a minha eterna benção poder cair, esfolar os joelhos como uma criança apaixonada sabendo que tu desinfetarás com doces beijos as minhas feridas tontas de amor em cada morango te provo em cada chocolate te sinto como é tão doce te ter derreter me em ti mergulhar nos teus olhos e de lá não sair abro a janela gosto de ver os teus cabelos ao vento gosto de sentir o teu perfume gosto de acordar e voltar a sonhar só por te ver só por te cheirar só por te amar

  • Políticarelle

    (Debates eleitorais 2024) Toca a despachar! 30 minutos a desfilar, Pois que a Cristina quer ir dançar! É pegar ou largar! O primeiro entra com o pé esquerdo Ou direito? (Não dá para distinguir) Vem com o gato a acompanhar E o feminismo para arguir. Com foice hasteada, vem aí camarada, mas “há aqui uma coisa fundamental. Fundamental.” Não havia melhor No Comité Central? Pois que no escorrega Do palco mais importante de Portugal, Anda o liberal. Contudo, não há contas Para justificar o corte fiscal. (são 5 mil milhões no geral?) Caiu do escorrega, Mas não há que preocupar, A mão invisível as feridas vem curar. Gémeos siameses vêm a passar, Só não tragam a Europa cá para os separar. Para estes dois, o desfile é para todos, Todos o devem integrar, Até as avózinhas vêm as rendas mostrar. Alto lá! Conseguem ver? Pelo zoom decidiu aparecer O líder da oposição a valer. Vamos ver se agora o pc não o faz esquecer O que tem para dizer. “Olhe, posso interromper?” “Não, não pode” “Poder posso, outra coisa é querer.” Na AD não vale a pena esconder, Sabemos que o machismo é para manter, Já dizia o monarca em direto na TV. Falta-nos alguém? João Adelino Faria, será? É que já o ouvi tanto falar… Oh! Não há que enganar! VEJO A NUCA DE VENTURA! A música da Lena d’Água pode tocar. Vamos pensões aumentar, (Não se pode ser fuinha) Mais cedo reformar E polícias masturbar. Para tudo isto pagar, Corrupção tem de acabar E banditos vamos exterminar. Isto custa a crer, para tudo acontecer, Não tem de se o Chega investigar? Ora, basta ver quem o anda a financiar. A fechar o desfile, de alto gabarito, Chega o garanhão, Porque pelo whatsapp teve a reunião Que lhe permitiu vir de avião. Pronto para os foguetes lançar, Teve de a avioneta pousar. “Miúdo imprudente, pare tudo!” Disse o designer da marca que se quer apresentar. Todos dos lugares levantar, Vamos aplaudir sem parar Quem isto tem andado a orquestrar. Em alto e bom som, diz sem pesar: “Vamo’ la ver, fiz ou não fiz bem em bazar?”

  • Imóvel

    Parece-me que o mundo anda depressa demais.  Os dias passam todos numa euforia de movimento, sem uma pausa para respirar, sempre a andar, sem parar, porque há sempre mais.  E assim, o mundo anda, como se estivesse a fugir de algo que o perseguisse eternamente. Mas eu, eu estou parada. É como se o meu relógio estivesse suspenso , obrigando-me simplesmente a existir no meio do caos e da loucura que é o dia-á-dia.  E que agonia é esta que me prende. Não me consigo mover, não tenho força para tal, e a inércia de qualquer movimento que eu faça não me move nem um milímetro. Portanto estou parada. No espaço, no tempo, simplesmente parada. Pergunto-me se alguma vez irei mover-me de novo. Viver a vida.  Não na azáfama e correria que uma vez vivera, mas com calma, a apreciar os momentos mais insignificantes.  Ou talvez fique por aqui, uma estátua num pedestal a ver a vida passar-se à minha frente enquanto eu, imóvel, não consigo fazer nada além de assistir. Este triste futuro parece-me cada vez mais real, tão sólido que quase lhe consigo tocar. Mas o mundo continua a andar e eu imóvel.  Esta parálise parece-me fomentada pela velocidade do resto do mundo. Porque é que as semanas passam a correr para todos menos para mim? Um estalar de dedos, acabou. Para mim, uma semana parecem anos que passam lentamente, de forma agoniante. Será um sintoma desta estagnação em que me encontro? Será este um problema só meu? Estarei renegada a observar a vida a desenrolar-se à frente dos meus olhos sem ter força, capacidade, de realmente vivê-la?

  • Os Estudantes disseram não, mas...

    Começa um novo semestre letivo nas Universidades. Neste novo semestre, os alunos do ensino superior, já desgastados, já de bolsos rotos e carteiras vazias, deparam-se agora com mais obstáculos e maiores dificuldades.             Chego à Faculdade, e deparo-me com um Bar que, apesar de recentemente ter passado a ser explorado pelos Serviços de Ação Social da UNL (SASNOVA) – o que implica preços sociais e mais baratos, subiu transversalmente os seus preços , tal como outros bares explorados pelos SASNOVA ao longo das diferentes Faculdades.             No entanto, repetidamente se vê a tentativa de órgãos diretivos da Universidade em alargar este aumento de preços a todas as áreas de atuação dos SASNOVA. Não é segredo nenhum que o Reitor e a Universidade NOVA de Lisboa têm sucessivamente tentado implementar este aumento de preços , o que se pode ver, por exemplo, no aumento de preços na Residência Universitária Alfredo de Sousa, também gerida pela mesma entidade. A novidade é a mudança do sentido de voto dos órgãos que têm algo a dizer nestas matérias , seja de forma figurativa ou vinculativa. Falo nomeadamente nos órgãos que compõem o Conselho de Estudantes da UNL (CE) – as e os presidentes de todas as Associações de Estudantes, a Administradora dos SASNOVA e o Reitor da UNL.             No dia 8 de janeiro de 2023, é emitido um comunicado assinado por várias das associações que compõem este Conselho: AEFCT (Faculdade de Ciências e Tecnologias da UNL), NIMS SU (NOVA IMS), AENMS (NOVA Medical School) NLSU (Faculdade de Direito da UNL) e AEENSP (Escola Nacional de Saúde Pública), informando a todos os estudantes que no final do ano letivo passado, deu-se uma reunião de Conselho de Estudantes, em que a proposta de aumentar a refeição social para 3,00€, tal como já aconteceu, por exemplo, nas cantinas da Universidade de Lisboa, foi chumbada por todas as associações presentes. No comunicado, pode ler-se que as Associações “acreditam que este aumento é mais uma barreira à manutenção dos estudantes no Ensino Superior”. Acontece que, apesar do Conselho de Estudantes ser um órgão consultivo, a proposta foi chumbada em Conselho de Ação Social (CAS), órgão deliberativo, pela força das 2 estudantes que o compõem, contrapondo os seus votos contra o voto a favor da Administradora dos SASNOVA. Note-se que o Reitor João Saágua não compareceu a esta reunião, pelo que não votou.             Ainda assim, no dia 7 de fevereiro de 2024, vem a público um comunicado da AEFCSH (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas), onde se pode ler que após a convocação de uma nova reunião de Conselho de Estudantes da NOVA por parte dos Serviços de Ação Social, as Associações presentes a provaram uma proposta que aumenta o preço do prato social, com um único voto contra , o da AEFCSH.             Na sequência deste comunicado, vêm as associações emissoras do primeiro comunicado emitir um segundo, no dia 8 de fevereiro, que justifica esta votação pelo facto de que se viram obrigadas a negociar um aumento de preço  que fosse menos radical que os 3,00€ por refeição, já que previam que a não negociação do preço levasse a uma aprovação por parte do CAS, previsivelmente com o voto contra das estudantes que o compõem, e com o voto a favor da Administradora dos SASNOVA e do Reitor, que neste caso possui voto de qualidade. Apesar de haver mérito na atuação das Associações nesta primeira reunião de CE, e maior mérito ainda nas estudantes que pertencem ao CAS, não sou capaz de compreender dois pontos essenciais nesta atuação: o primeiro sendo a incoerência na atuação destas AE’s, especialmente as subscritoras do comunicado acima referido, e o segundo sendo conceber a possibilidade de haver Associações de Estudantes, o órgão que representa todos os Estudantes e, acima de tudo, os protege e lhes dá voz, a votar uma proposta que faz aumentar o esforço financeiro dos estudantes  e das famílias a que pertencem . Sobre a primeira questão levantada, tendo em conta que as decisões foram tomadas em anos letivos diferentes e ainda que o comunicado tenha sido publicado já no ano letivo subsequente, só podemos supor que serão mandatos diferentes, e que as motivações de cada Associação, mudam consoante a sua Direção e consoante a sua Presidência. Ainda assim, parece existir, no que toca ao primeiro comunicado, um certo aproveitamento de ações e mudanças conseguidas por mandatos anteriores , que são agora reivindicados pela nova direção em funções. Isto torna-se ainda mais visível quando existe agora uma mudança no que é a atuação e na posição das Associações em sede de Conselho de Estudantes. Sobre o segundo ponto, não é admissível que uma Associação de Estudantes ponha à frente dos próprios estudantes a tentativa de lucro de um Serviço que não foi criado para dar lucro. Ainda que estas Associações afirmem que agiram da forma que agiram com o bem-estar dos estudantes em mente, não me parece que partamos do princípio certo se um órgão, que ainda por cima é meramente consultivo, não participando ativamente nesta decisão, que é da competência do CAS, abre a porta a estes ultimatos unilaterais por parte dos Serviços de Ação Social da Universidade. Acredito veementemente que é direito, mas também é dever, de questionar e responsabilizar as direções das Associações que agiram neste sentido . Sobre o segundo comunicado emitido, não é satisfatório mostrar que encontraram uma solução que é “o menor de dois males”, e afirmar que “os estudantes disseram não”. Os estudantes, de facto, dizem que não. Dizem que não nos corredores, quando se queixam dos preços. Dizem que não nas manifestações do Dia do Estudante e outras tantas. Dizem que não quando escrevem estes textos, e exigem mais e melhor das suas Associações. O que a NOVA Law SU e restantes Associações presentes em CE (à exceção da AEFCSH, cuja ação é de louvar) fizeram foi dizer “não, mas...”. Os Estudantes precisam de Associações fortes, que se batam e travem as suas posições e que não cedam no que toca aos seus direitos. Não é admissível, face ao contexto socioeconómico e financeiro do país, onde há cada vez mais dificuldades e onde cada estudante sofre mais e mais com o peso financeiro do Ensino Superior, que os Serviços de Ação Social, criados para mitigar as desigualdades e proteger especialmente os mais desfavorecidos, procurem a cada oportunidade esmagar qualquer alívio que os estudantes possam ter , alívios esses que são dados por obrigação legal e pelas respetivas imposições de tetos máximos, o que também se vê, por exemplo, na propina de licenciatura ou mestrado integrado, que na grande maioria dos cursos corresponde sempre ao teto máximo imposto, ou nas propinas de mestrado e doutoramento, que por não terem teto máximo, veem-se duplicadas ou triplicadas face ao preço da licenciatura. Claro está que estas tentativas hostis têm uma raiz comum: o subfinanciamento crónico do Ensino Superior e respetivo regime de financiamento , que se manifesta em todas as vertentes do ensino superior e que lhe são análogas: refeições sociais em cantinas universitárias, alojamento estudantil, entre outros, e que obriga os estudantes a suportar os seus próprios custos, não lhes permitindo estudar num ensino superior gratuito, e verdadeiramente livre ou, pior ainda, impedindo-os de o frequentar. No ano em que o acontecimento mais importante da nossa democracia celebra o seu quinquagésimo aniversário, não podemos deixar descurar o que ele nos conquistou: entre outras coisas, a luta, a liberdade. Não esqueçamos também a luta estudantil, que começou antes do 25 de abril e que até hoje continua, pelos estudantes.  Não nos contentamos pela luta da conveniência, da cedência, sem substância. Não nos contentamos pelo “mal menor”.

  • Clube de Leitura - “Cidades Invisíveis”, Italo Calvino - textos

    Okänd - Letícia Paes É com fascínio que se descobre Okänd, a pequena cidade perdida, em que tudo é nada, e o nada é tudo. Ao atravessar a divisa do infinito, há cheiro de canela dos cafés e padarias e flores dos jardins e campos. Dizem que experiência mais confortante só se vê unicamente na casa dos avós, que moram no seu centro. Todos os habitantes são praticantes da religião hyggecismo, esta é praticada nas grandes bibliotecas e florestas que deságuam em prósperos rios. Cedo ou tarde descobrimos o famoso magnomanual, descrito em linhas de Times New Roman em papiro, escritos com lápis e acompanhados de uma borracha, sempre que necessário. Sua capa macia tem escrita: Janteloven. Esta cidade soa como uma canção do Sinatra, profere como o Jorge Amado sem a violência dos Capitães da Areia, é mais luminosa que Paris e mais romântica que Veneza. Suas casas têm mais cores do que a aquarela de Toquinho. Andamos por lá sem sentir aperto no coração.Ela é uma pólis com camadas como uma cebola, mais que tudo, uma experiência, como descobrir Atlântica, impossível de desvendar-se por completo em uma só tentativa. Poderia então ser descrita como uma espécie de Salvador com Lisboa, um cruzamento lusitano, um bolo de casório com três andares, um Monte Olimpo. Talvez esta cidade foi o paraíso Maia nunca descoberto, ou talvez, é uma junção de tudo já visto e experienciado. Okänd é, acima de tudo, braços abertos que sussurram nos corações: bem-vindo à casa. Vidi - António Subtil Vidi fora uma cidade amada noutros tempos, mas não mais. Rodeada de céus violetas e aroma a rosas, foi cunhada de fama de paixões. Peregrinos passeavam pelas pontes, e pintavam os nomes das paixões em todas as paredes. “Pedro, o meu primeiro amor”, em tons de prata na praça do mercado. “Vasco, volta vivo”, vi eu a vermelho na mais velha avenida. “Sofia, sofro e sinto tanto”, cravado nos sinos dourados das catedrais. Tantas preces pedidas e desesperos expostos, que os poços se encheram de moedas, e os rios secaram, o sal de lágrimas tudo o que restou. Na calçada da ponte mais nova, alguém escreveu com as cores do arco-íris: “Vidi, a encarnação do amor”. As cores são já tão ténues. Nada resta da última letra. Vidi é agora um deserto. O deserto de Ouzer: o deserto da doença. Bauci - Mello Rodeados por nuvens – num manto branco, numa intensidade vazia, perfeitamente impalpável e que se desfaz quando se estica a mão. Crianças tentam capturar um pouco delas em largos jarros de vidro – duram pouco mais que uns segundos. Uma efemeridade que quem vive no solo nunca sonhou. Os habitantes de Bauci dão se ao luxo de tocar nas nuvens. Mais ninguém alguma vez o sentiu na pele. De que serve isso se não conhecem o solo? O cheiro de relva acabada de cortar? A terra molhada pela chuva? Enterrar uma bota num pedaço de lama e suspirar? Uma mão a tentar conter todos os grãos de areia dentro dela? O sussurro do mar contra as rochas? Uma coleção de olhos observa-nos de cima. Querem conhecer o que está longe. Querem tocar na terra. E nós queremos tocar nos céus. Mas nem todos olham para nós. Alguns nem se dignam – olham em frente, desprezando o que somos, e o que temos. Perfeitamente contentes com o que têm. Ao ponto de rejeitar o que desconhecem. De olharem por cima, e nunca para baixo. Orgulham-se das suas nuvens, da sua paisagem de algodão. Não precisam de mais. Porque descer é uma incógnita. A qualquer momento, as longas andas cor-de-rosa que suportam tudo podem dobrar-se, e se deslocar. Procurar outras nuvens. Procurar outros céus. E quem se deu à curiosidade de descer, pode bem nunca mais regressar. Por isso, dizem, é melhor ser só um olho. E não conhecer a madeira, a cortiça, as folhas e a terra. Fiquemo-nos pelas efémeras nuvens. Estão em casa. Pirra - Raquel Osório de Barros Sobre ela nada sabia - ou, pelo menos, foi isso que vim a descobrir quando por lá passei. As cidades são quem nelas vive e os nomes têm o doce problema da fidelidade a quem querem nomear. Imaginei-a alta e imponente - muralhas de uma era perdida que evocam um passado glorioso e a austeridade de um monarca que viu o seu lugar ocupado pelo herdeiro como manda a tradição. A praceta central com um poço mostraria como o critério da eficiência tinha sido ali aplicado: defesa e manutenção das necessidades. Os habitantes, atarefados, viveriam numa comunhão obrigatória, circunscritos ao espaço de proteção delimitado pelo muro, sem ver o mar que batia na muralha majestosamente, era destino apenas ouvir as ondas ao deambular no fim da tarde. Quando finalmente a vi na realidade, dei pelo nome a destruir a cidade que imaginara. Pirra era antes um conjunto de casas muito afastadas, agrupadas em ruas retas e ordenadas. A comunhão em que se baseava desapareceu para dar lugar ao individualismo dos seus habitantes - não havia poço, havia apenas, visível aos olhos de uma viajante, o armazenamento privado de madeira para aquecimento da casa no inverno. O que mais me entristeceu foi que, em vez das ondas, o que se ouvia era o som mecânico e industrial das bombas hidráulicas que alimentam a energia daquelas casas. A cidade sempre tinha sido assim, é evidente que o seu nome já não podia significar mais nada que não aquilo. A cidade estoica com o poço central e as casas contíguas existirá e procurarei achar um nome que a ela se adeque. Como pude achar que era Pirra? Fepo e Vésper - Sofia Dias Todos os poemas do mundo falam sobre elas. Todas as letrinhas existentes, juntas em  palavras, sussurram entre frases e parágrafos, a história do fim de Febo, a cidade do  Sol. Peguemos num exemplo concreto, na palavra “gato” - sabemos, empiricamente, que o  “g”, o “a”, o “t” e o “o”, tiveram a seguinte conversita: Diz-se por aí, em sussurros, que um miúdo veio a Vésper. (o T deita-se transfigurado, o O só olha para o soalho e o A aspira algum ar pesado) G, bateste com a cabeça? Ele claramente  faltou às aulas de história…. Calem-se e deixem-me acabar. Dizem que o miúdo esticou uma perna e aterrou cá, agora parece uma espécie de ponte, sabem? Como aquela que há aqui na  praça, tem uma perna lá e outra cá. Então, mas ele não fica com cãibras? Ah, sim, T, um  miúdo de Febo virou pastilha elástica e anda a mandar bitaites cá, mas o que é preocupante é  se ele não está com dores na virilha. Odeio o teu sarcasmo, continua lá a tua história… O F  disse-me que este tal de Benjamim tinha um monstrinho a morar nas costelas dele. Pronto,  agora é que o gato torce o rabo. G, isso já não existe, estás a ser tonto. Os de lá já não têm  essas coisas no corpo. Ai, mas este de certeza que tem. Ouve-se que o monstro andava a saltar  tanto lá dentro que fez com que o rapaz tivesse um espasmo numa perna e viesse cá parar. E, agora, preparem-se para o melhor de tudo, a cereja no topo do bolo, os italianos no tiramisu o miúdo. está. apaixonado. por. uma. vesperina. ————————— “Não tem de se parecer com nada” - disse ela, enquanto passava a mão pelos caracóis acaramelados  de Benjamim. - “Os nossos cabelos despenteados também não se parecem com nada. Nem as nossas  mãos em movimento.” - Vespi mexeu as mãos rapidamente à frente dos olhos dele. “Estamos rodeados de coisas abstratas. Sei que em Febo não se liga ao abstrato, liga-se ao que se  vê, ao que é palpável, ao que é reconhecível. Mas, pensa, quando pintamos alguma coisa, pintamos  uma fatia fininha da realidade, contudo, ninguém nem nenhuma coisa é só isso. Não há nada que  não seja a soma do que foi, do que é e do que será. Então, aqui, em Vésper, o que tentamos pintar é  a soma das fatias todas ao mesmo tempo.” “Ao mesmo tempo?” “Sim, não há outro tempo.” ”E consegue-se?” “O quê?” “Pintar isso tudo?” “Sim, mas não se parece com as coisas que vemos. Porque a realidade não é o que vemos. É o que  aparece num quadro como este.” “Isto é uma fotografia da realidade?”, diz ele apontando para o céu. “Podemos dizer que sim.” “Onde é que achas que ele aprendeu a pintar? Em Vésper?” “Quem? Kadinsky?” “Sim.” “Em todo o lado” “Ensinas-me a pintar como ele?” “Não sei…” “Eu não me importo de pintar às escuras! Por favor!” -Composição, Vésper, 07:00. ——————————— “Vespi, o que é aquela cadeira?” “Aquela cadeira está farta de ver rabos e de todos se irem embora. É uma colecionadora de traseiros  temporários, mas nenhum fica para sempre, levantam-se todos e ela nunca mais os vê.” “Sabes dizer-me o que é que a minha T-shirt me está a dizer?” “Está a dizer que não encontras o buraco para meter a cabeça todas as manhãs, enfias sem querer  numa manga e depois tens um ataque de claustrofobia. Também me está a dizer para me beijares a  mim, Benjamim.” - Sala de estar da cadeira e do beijo, Vésper, 03:17. —————————————— (Cresce mais uma perna ao T e este começa a parecer o número pi, cresceu mais uma cabeça  ao O e virou um 8 e o A virou-se ao contrário e parece um V) Isto é muito atípico. Muito tempestuoso. Muito onírico. Companheiros. Sim, G? Ai, ele está gelado! Sente-lhe a testa! Estás bem, G? Já repararam que não faz luz há muito tempo? Baunilha - Inês Fonseca Se as cidades podem ter nomes como “Venda das Raparigas” e “Rabo de Peixe”, porque é que não pode existir uma “Caramelo com Amendoins” ou uma “Baunilha”? Ergo aqui ambas. Cogito ergo sum, assim como o pensamento da Baunilha a faz “erguer”. Uma cidade completa, plena, elevada sob o poder do mais bonito raciocínio humano. Sempre que alguém pensar que se esqueceu de algo, uma árvore nasce; sempre que alguém pensar em dizer algo, música ecoará das nuvens, fazendo o sol brilhar com mais força; sempre que alguém pensar amar, chocolates cairão nos colos, e os corpos se unirão em prol do conforto e do calor. Há sempre a certeza de que se mora onde se devia. As bruxas que habitam Baunilha colocam nos seus regaços os sentimentos de todos, apoderando-se daquilo que poderia levar à desordem. Roubam-nos no cerne da escuridão das pálpebras fechadas em repouso, não deixando sequer a semente da possível sensação. Os Baunilhocas nunca souberam (e nunca saberão) que tiveram a hipótese de sonhar a cores. Despejam para dentro dos caldeirões os burburinhos dos corações palpitantes e das pupilas dilatadas. Borbulham sob as verdes chamas as emoções de todos os locais. Mexem e remexem com as grandes colheres de pau, da direita para a esquerda, e observam as cores que cada adição cria. Começam sempre com as tristezas, que tingem o sentido licor de azul, um azul escarlate. O paradoxo da Baunilha. Terminam sempre com as alegrias, que por sua vez avivam um amarelo purpúreo. O paradoxo da Baunilha. Nunca se vê nos céus o resultado da fusão da questão. Nunca se vê o resultado da chuva com sol, da tristeza com alegria. Ambos existem individualmente, mas um arco-íris só figura por 5 segundos no caldeirão das bruxas, e nunca acima das cabeças dos Baunilhocas. É uma cidade funcional: tem uma rede de comunicação estável, nunca acontecem desgraças, os moradores não se queixam. Têm saneamento, ruas agradáveis e muitas portas onde bater para uma simples conversa. Mas não têm vida. Não existem enquanto seres, nem se podem afirmar como tal. Para ser, é preciso ir além do cogito, entrar no espetro do sinto. E sentir que se pensa não basta. Pensar que se sente muito menos. Os habitantes ainda não chegaram a exemplares conclusões, porém, deixa-los-emos beber as suas chávenas de chá, comer as suas bolachas, e questionar um dia: Porque é que o céu não tem cor? Enquanto isso, Baunilha deixa-se repousar no fundo das nossas papilas gustativas após a ingestão de um crème brûlée. Ou, não tão óbvio e mais perspicaz, um arroz doce. E quando fecharmos os olhos, as bruxas cumprirão as suas tarefas. Há que ter garras para aprisionar os sentimentos e lançá-los aos céus por força própria. E quando virmos um arco-íris, saberemos que há um corajoso entre nós, alguém que conseguiu conservar as suas poções longe do olhar das bruxas.

  • Apatia

    A garganta está apertada, mal escorrega a água. O braço está pendurado, ao sol, enquanto o cigarro se queima. A cinza que cai para o chão faz um pequeno amontoado. O olhar vazio, fixo em algo imóvel, o corpo paralisado. A única coisa viva é o cabelo que se espanta com o vento. Reativa com a queimadura do cigarro nos dedos, que depois foi esmagado contra o pavimento resplandecente que me reflete. Examino-o, vejo-o como estou, nenhum pensamento cruza os campos de guerra da mente, ou apenas não se consegue racionalizar. Não se ouvem palavras, não se toca nas emoções, o que há é um animal mecânico do ar, que leva os que querem ser outros. O formigueiro dos pés, a dormência do corpo que se escondem na presença de alguém, que não sejam os meus fragmentos. O calor não me derrete, se assim fosse, evaporava, fundia-me com o ar, circularia por terra e mar. Leve, erguer-me-ia. O fardo transformaria-se em brisa fresca da noite e o ar abrasador do meio dia. Mas sou feita de correntes, de carga, que me impedem de me elevar. Quando entrares, a minha boca vai se rasgar, as covas vão ser fossas e a pele contraída, a ondulação. A imagem vai estar distorcida, agora é uma representação. Nem vais ver a apatia, prometo. Ela é desconfortável, é incómodo lê-la, perceber de onde vem, por isso,  senta-te ao pé de mim e aquece-me com a tua fala monótona e supérflua.

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