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- NADAR CONTRA A MARÉ
Há dias, naquilo que pensei que seria apenas uma aula como tantas outras, falaram-me da “luta contra a corrente”. Disseram-me que se temos um sonho ou uma missão, especialmente enquanto juristas atentos aos nossos surroundings , teremos muitas vezes de lutar contra a corrente (ou como eu tomei a liberdade de “traduzir”: de nadar contra a maré); com tudo o que isso possa acarretar para nós (“dói para caraças”, creio que foi assim)… A decisão de entrar num barco, pegar num remo (às vezes tem mesmo de ser num pedaço de madeira improvisado) e começar a remar contra a maré que nos empurra na direção oposta, nunca é fácil, nem tão-pouco poderia ser. Fácil é nadarmos a favor da maré, e ainda mais fácil é deitarmo-nos numa bóia e deixarmo-nos ser levados pela corrente (mesmo que de vez em quando vamos barafustando sobre qualquer coisinha, porque logo voltamos a adormecer em cima da bóia de novo). E ficar deitado na bóia é tão fácil… não há crítica nem chatice que nos chegue, não há angústias (as que há são meramente passageiras), não é sequer preciso um esforço minimamente ativo para nadar. O problema é que às vezes estamos a flutuar há tanto tempo, deitados naquela boia que vai a favor da corrente, que ela rebenta. Um dia a bóia rebenta, e nós já nos esquecemos de como nadar. Afogamo-nos. Pois é, se calhar é importante aprendermos a nadar contra a maré… Porque mesmo se um dia o mar ficar demasiado agitado, nós saberemos que temos a força e a coragem de continuar a nadar, apesar de todo o esforço. E, mais importante que isso no mundo de hoje, ficamos imunes àqueles que tentam ir soprando para nos desviar do nosso caminho; porque uma bóia é fácil de desviar com uns quantos sopros, mas alguém que vai a nadar sozinho contra a maré, dificilmente é desviado por um sopro. Num apelo mais pessoal: tenham mais empatia, tenham mais respeito, tenham mais seriedade. Eu sei que é fácil nadar a favor da maré, sei que é ainda mais fácil ficar deitado em cima da bóia, sei até que não é assim tão difícil ser um dos sopros que vai empurrando os que estão na bóia para onde queremos… Nós estamos TODOS sempre a tempo de aprender… Mas temos primeiramente de ter vontade de o fazer, e temos de ser sérios e empáticos nesse processo. O meu desejo mais sincero é que, num mundo de cada vez mais desinformação e sensacionalismo, possamos ser sempre (especialmente nós, estudantes de Direito), aqueles que lutam contra essa corrente, sem medos e mesmo quando nos seja custoso a nível pessoal (porque a mudança custa sempre, e se não custar há algo que estamos a fazer mal)… Mudar o mundo está nas (não tão) pequenas coisas, naquelas que são impulsionadas pelos nossos princípios morais e pelo nosso dever de ação, pois acreditar na possibilidade de um mundo melhor é estar sempre na primeira linha, pronto a lutar com todas as nossas forças por aquilo que sabemos estar correto. Eu cá estarei sempre disposta a ir tentando mudar o mundo aos poucos, mesmo quando ele ainda não estiver disposto a ser mudado. Não só porque tenho de manter a esperança que um dia os outros também estarão abertos a essa mudança, mas principalmente porque sei que desta forma terei sempre a certeza de ter feito o que podia por aquilo em que acredito, e o que os meus valores ditaram. Mesmo (especialmente) quando isso signifique ter de nadar contra a maré…
- Solipsismo
De tempos em tempos surgem momentos de crise, que mostram o alcance, os limites e novas imagens sobre as pessoas; os problemas que culminam nesses conflitos frequentemente já se encontravam presentes há eras, de maneira sutil, guiando os nossos comportamentos até a iminência do seu estouro, tornando-se nítidos e fomentadores dos vícios em todas as partes. Para mim, em momentos como nós estamos, revela-se novamente um enorme defeito: a vaidade. A realidade é que nós, estudantes de Direito, somos nada. Apesar da noção comum de que somos os virtuosos defensores da justiça e da verdade, nada nos garante essa posição e título. Não passamos de pessoas que passam 4 anos aprendendo como interpretar normas de conhecimento público, criadas há mais de 40 anos; a maior parte de nós não tem um feito próprio que comprove e fundamente a sua moralidade e consciência superiores. Não detemos legitimidade para impor nosso discernimento, sobrepor nossas visões e nos colocarmos antes dos demais. E é a partir do momento que nos valorizamos a um ponto de sermos inquestionáveis e encontrarmos absurdos nas menores diferenças, é quando nos limitamos e vive-se uma fantasia. O ceticismo é o primeiro passo de um pensamento científico e para a busca da verdade, e é ao assumirmos factos e não duvidarmos, que se encontra a ignorância. Viver em plena ignorância é encontrar-se limitado por não sequer perceber o seu próprio limite, é viver uma ilusão ao nunca se colocar em pé de igualdade; uma vez que se está tão absorto nas próprias ideias. Nesses casos, estamos sempre estagnados, nunca se contesta, nunca se sai da zona de conforto, nunca se aprende a aprender. Muitos vêm para a faculdade com a intenção de melhorar o mundo, mas não conseguem melhorar nem eles mesmos; querem ajudar os outros, mas não conseguem parar de falar antes de ouvir. Com isso, corroboram para um sistema que eles mesmos lutam e criticam. Procura-se corrigir no mundo exterior e em terceiros e frequentemente passa-se despercebido as próprias hipocrisias, contradições e falhas; de modo que no caso de discordâncias, as pessoas são ou condescendentes consigo mesmas ou são reativas ao externo. É a partir da humildade que se adquire uma visão mais real, em que se percebe a verdade, a ambiguidade e a contradição sobre si mesmo e o mundo; tornando possível a apreensão de diferentes lados e visões. É necessário reduzir e despir-se das nossas camadas mais superficiais e luxuosas, como certezas, ego, sentimentos e hábitos, que protegem o Solipsismo em cada um de nós, e nos separam do mundo. Apenas quando enxergar a si mesmo com clareza é que se será capaz de se reconhecer no outro lado, mesmo que parcialmente. Com isso, percebe-se a multilateralidade sobre a verdade e a indefinição da mesma, percebe-se a contradição em tudo e o paradoxo do que é certo e errado; por fim, percebe-se que você sabe que nada sabe e nunca existe outra resposta além de procurar sempre uma resposta.
- papoila do ópio
é na solidão de Kant que cultivo as papoilas gregas. coloco o conhecimento empírico sobre qualquer outro dou prioridade à quantidade de sorrisos de lágrimas, ou de suspiros faço do coração tripas bombeando o que me move por entre os que me fazem mover é “nele” que está o meu ser é “nela” que está o meu viver e em mim, nada fica deixando-me esvair em cada trinca permito-te um pedaço do meu ventrículo esquerdo permito-te que coloques um sinal “piso escorregadio” à entrada do teu quarto em mim pinto os teus corredores decoro tudo a teu gosto mais que a mera utopia de casa de férias mais que a quimera que assusta Luís Severo que nunca feches o teu olho de lince que me dês a sorte de lá mergulhar perder-me naquilo que tens como somente teu nas tuas palavras nunca ditas nas tuas ações nunca feitas retira o suspiro que mantive no congelador deixa-o queimar-te as mãos, derreter na fonte do causador e dela desaguar para a eternidade estagnar na noite branca por que ambos deambulamos atentos alunos de Dostoiévski e de Cesário Verde incapazes de manter a candeia onírica acesa pelas ruelas de Lisboa, por umas míseras quatro noites. incapazes de abalar o empírico em prol da lógica sanidade. mal-aventurados, que nunca permitiram a união dos átomos que nunca souberam a cor favorita do outro.
- Pequenas coisas
Sinto tudo e nada ao mesmo tempo. É como se me encontrasse num limbo estranho entre a realidade das minhas emoções e aquilo que consigo exteriorizar. É como se tudo o que sinto estivesse num poço, fundo, escuro, quase interminável. Mas e quando transbordar? O que acontece depois? É difícil equilibrar-me nesta corda bamba em que me encontro. Às vezes, de noite quando ninguém me vê ou ouve, sinto que um mero sopro me podia deitar abaixo, mas, mesmo assim, as lágrimas não me escorrem pela cara, não me sinto a soluçar com a força de tudo o que sinto, simplesmente existo a ponderar sobre tudo. Quando o sol se levanta, e eu com ele, gosto de fingir que não aconteceu nada, que nunca estive perto de cair no abismo que está debaixo de mim. É um novo dia por isso tudo pode mudar, certo? Com ele vêem novas oportunidades, novos desafios, novos obstáculos, mas enquanto é dia eu tenho que me equilibrar. Durante o dia eu não sinto, mas dou a atuação da minha vida. Durante o dia, minto a mim mesma e digo que estou só cansada, nada mais. Mas no fundo sei que não é verdade. Mas então o que é? A realidade é que nem eu sei, mas sei que não é cansaço. É algo mais sombrio e pesado, algo que conseguiu criar raízes em mim de tal maneira que já não sei viver sem a sua sombra a acompanhar-me diariamente. Então, vivo neste limbo, nesta corda bamba de sanidade mental, na qual uns dias parece impossível aguentar-me em pé e noutros ando com a confiança de alguém que está a caminhar em solo firme. Olho em volta, e a escuridão que se instalou em meu redor faz-me crer que estou sozinha, sem apoio, sem ninguém a andar na mesma corda que eu. Mas se me esforçar, se esquecer esta névoa que me obstrui a visão, parece que vejo silhuetas, silhuetas do que parecem ser mais pessoas a andar nas suas cordas. Começo a duvidar se estou mesmo só, se só eu é que passo por esta interminável luta diária. Às vezes chego à conclusão que sim. Estou simplesmente só nesta luta e não posso convidar ninguém para caminhar comigo pois se cair, não quero cair com companhia. Esses são os dias piores, aqueles dias que tudo parece uma tarefa infindável, tudo me irrita, tudo corre mal, são os dias em que a minha cabeça parece estar debaixo de uma núvem negra e densa que não me deixa ver mais nada à frente. Mas depois há dias em que cada pequena coisa parece um raio de sol que penetra a escuridão em que me encontro. Uma mensagem de bom dia de um amigo, uma conversa parva que me faz rir até que me doa a barriga e as pessoas à minha volta pensem que sou maluca (e se calhar até sou), um abraço de alguém que me apoia em tudo, um elogio que para aquela pessoa pode não ser nada mas para mim é tudo. São as pequenas coisas. Aquelas coisas que se transformam em raios de sol e que levantam a névoa da solidão em que estou para conseguir olhar em redor com clareza. Porque, afinal, não estou sozinha. Mais pessoas caminham na minha corda e outras estão à minha volta a tentar equilibrar-se no seu próprio limbo. Apercebo-me tão repentinamente desta realidade que a sua força traz ao de cima todos os sentimentos que estiveram durante tanto tempo presos dentro de mim. Todas as lágrimas que não caíram, todos os soluços que encarcerei com medo que me desequilibrassem e me fizessem cair. São as pequenas coisas que me apoiam quando estou quase a cair. São as pequenas coisas que me guiam quando perco o caminho. São as pequenas coisas que fazem dissipar a núvem que pensava carregar eternamente. São as pequenas coisas que me fazem sorrir. E por isso, retribuo e faço estas pequenas coisas. Estas ações "insignificantes" que significam tanto para alguém. Eu gosto de pequenas coisas, pois estas fazem-me continuar.
- Pedido de Fiscalização ao Conselho Fiscal
Caros colegas A transparência e fundamentação de decisões é fundamental para o funcionamento de qualquer instituição que se mova por princípios democráticos. O mesmo é verdade sobre a discussão em espaço público sobre as instituições. Submeti o meu Pedido de Fiscalização, que podem encontrar aqui no Jur.nal, porque sou da opinião de que deve haver esclarecimentos sobre todas as questões presentes no Edital nº7/2023. Reuniões e decisões de órgãos da AE devem ser discutidos e escrutinados por todos. Cabe-nos a nós estudantes pedir mais das nossas instituições. Convido toda a comunidade a ler e discutir o meu pedido de fiscalização. Faço questão que se pronunciem sobre esta questão no Jur.nal ou noutros meios igualmente acessíveis à comunidade, porque só assim há discussão construtiva sobre matérias que nos afetam a todos nós. Todos ganhamos imenso com isso. Um abraço e boas festas, bebam e comam muito, estudem quando der jeito. Caros membros do Conselho Fiscal, Escrevo ao abrigo do Artigo 43º, nº1, alínea c) dos Estatutos da NOVA School of Law Students’ Union (doravante, “Estatutos”) enquanto legítimo interessado por ser eleitor e ter participado no ato eleitoral do passado dia 4 de dezembro, para pedir a fiscalização, conforme os Estatutos e a Lei, dos atos expostos a seguir. Este pedido de fiscalização sai no seguimento da publicação do Edital Nº7/2023 da Comissão Eleitoral (doravante, Edital e CE respectivamente), que determinou a convocatória de novas eleições. Este Edital foi infeliz na sua formulação, uma vez que estatui uma consequência bastante grave sem explicar devidamente as razões, processos, e lógicas exatas de cada ponto apresentado para tal. Falhando ainda na resposta a várias questões colocadas na Impugnação que visava responder. É fundamental para a garantia do princípio da democraticidade, previsto no artigo 2º dos estatutos, que sejam claras e coerentes com a lei e os estatutos as razões que levaram à convocação de novas eleições. É direito de todos os membros que seja o mais transparente possível os motivos pelo qual se puseram em causa os votos de 275 eleitores. Assim sendo, peço a fiscalização conforme os estatutos e a Lei dos seguintes atos: 1. A decisão tomada pela CE na reunião de dia 7 de dezembro de 2023 de convocar novas eleições, conforme o princípio da democraticidade previsto no artigo nº2 dos Estatutos, o principio da proporcionalidade consagrado no nº7 do Código do Procedimento Administrativo (cujo âmbito de aplicação engloba a Associação de Estudantes nos termos do Artigo nº2 do mesmo), e o princípio da igualdade (reinvidicado pela própria CE no edital) nos termos do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa. De forma mais especifica, peço ao Conselho Fiscal para fiscalizar ainda qual a base de deliberação nesse sentido, uma vez que a Impugnação do ato eleitoral apresentada por Carolina Correia e Isabel Costa pedia apenas (e cito) “a) A identificação pela Comissão Eleitoral de todas as solicitações de voto em mobilidade apresentadas pelos estudantes à Mesa da Assembleia Geral, bem como identificação do nº. Total de votos neste regime; b) Sem prejuízo e, caso se verifique que as situações apresentadas para o execício do voto em mobilidade não sejam justificadas nos termos dos Estatutos, sejam os mesmos considerados enquanto votos nulos” 2. Não publicação dos cadernos eleitorais por parte da CE, nos termos do artigo 56º, alínea b) dos estatutos e o princípio da legalidade nos termos do Artigo 3º do Código do Procedimento Administrativo. Uma vez que o edital nº7/2023 simplesmente diz que “permitem identificar os alunos constantes no mesmo” (o objetivo dos cadernos eleitorais?) e diz ser “compreensível” a sua não publicação, não elaborando a lógica ou sequer citando qualquer base legal. 3. Critérios de aceitação de votos em mobilidade por situação análoga, conforme o previsto no 67º, nº7 dos estatutos, o modo em específico como foram aceites, e as razões para recusa de um dos votos. O edital limita-se a dizer permitiu “implicitamente” dois pedidos por “considerar legítimos”, e que mais tarde aceitou (e recusou) mais pedidos sem “método estabelecido para tal” na base da “precedência” que estes dois primeiros votos aceites deixaram. Ora, se houve critérios para aceitação dos dois primeiros votos, que depois levaram a que se aceitassem votos mais à frente, então fica contraditório a noção de que não havia “método pré estabelecidos”. Isto até porque, aparentemente, foi recusado um desses pedidos, o que implica que houve critério para determinar a exclusão desse voto. Esses critérios devem ser clarificados para todos os membros da Associação de Estudantes. 4. O método de votação e processo de escrutínio dos votos em mobilidade e se este não põe em causa o anonimato, seja direta ou indiretamente através da possibilidade de determinar a localização (IP) do votante, e sentido de voto do eleitores, conforme o indicado no Artigo 63º, nº1 dos estatutos. Nem a CE nem a Mesa da Assembleia Geral anunciaram, antes do ato eleitoral ou através do Edital, qual a interface utilizada para recolha dos votos, os termos em que funciona, e de que formas garantem que os links são só acedidos pelos eleitores a que se destinam. Mais do que perceber se as eleições que vão ocorrer são de acordo com a lei e com os estatutos, é importante perceber a lógica e os argumentos que justificam estas decisões, que não foram expostos nos editais emitidos. Ignorar a expressão eleitoral de 275 votantes sem procurar sequer sanear possíveis vicissitudes (que era, aliás o pedido na Impugnação apresentada) é um ato que requer fundamentação extensa que deve ser disponibilizada para alvo de escrutínio de todos os estudantes. Sublinho a importância de fiscalizar os critérios para aceitação de votos em casos análogos à mobilidade, para que nas próximas eleições agendadas para dia 15 de dezembro sejam claros para todos os critérios de validade de votos. Sem mais assunto, agradeço a atenção. Francisco Bouza Serrano Budapeste, 9 de dezembro de 2023
- De bicicleta em direção à praia dourada
De bicicleta em direção à praia dourada Cabelos ao vento, como ondas a dançar Com roupa que conta histórias de terras distantes, De havaianas pisas o asfalto quente rumo ao suave da areia branca Mas porque não continuar? De bicicleta pelo mundo passear Costas e terras por descobrir Ao longo do caminho sentimos o aroma salgado do mar Enquanto o sol pinta o horizonte com tons de laranja E a paisagem se vai desenhando, como um quadro em movimento Na tua bicicleta somos livres, sem destino E a cada pedalada uma nova página O pedal da nossa bicicleta torna-se a caneta Que escreve histórias em cada reta e curva do caminho Mas à medida que o dia se aproxima e as estrelas se apagam, Vou acordando lentamente com o desejo de uma só coisa: Que me leves na tua bicicleta em direção à praia dourada
- poema do desapego
Como um qualquer sopro, Magoo-me, corro, perco-me e choro E fico louco. Para sempre ? Aqui, nem o amor me salva, Nem o meu pai me abraça. Nem abraço eu a minha mãe. (em itálico para mascarar a solidão) Acho que estou bem. É o vazio que me acompanha, Que me traz um tolhedor conchego; Que me faz e refaz a cama, Nos dias chuvosos e meus gémeos de novembro. Pois as almas com que convivo, Distantes e inescrutáveis, Lembram-me o tinto vinho - Não é o meu preferido. Será que quero fugir? Beber sumo de uva branca ao luar, Lembrar-me o que é sorrir, Deixar-me evadir (afogar) no fumo do mar?
- à deriva
sinto o barco que já soube conduzir, a afundar comecei a viagem, estava preparado, pensava eu. tinha o mérito, o estudo, tinha a dedicação. acreditava que não havia onda que me derrubasse. no início a ondulação estava calminha. e eu conduzia o barco suavemente, nas calmas, era eu e o barco e o mar, unidos num só, em sintonia e amizade, em direção a bom porto. aventurei-me, brinquei, deixei o barco chapinhar na água calma e tenra, tinha tudo controlado. a primeira onda, nem dei por ela. foi tão suave, nem a senti. continuei a minha viagem. veio uma segunda, uma terceira, continuei como se nada fosse, um bom capitão sabe lidar com alguma ondulação. e de repente já não eram três, eram dez, vinte o barco abanava por todos os lados, por mais que tentasse o leme já não obedecia, e vi-me forçado a questionar a minha capitania. era um bom capitão, ou tive um mar fácil de mais? quero voltar ao mar calminho e conhecido. quero fugir destas ondas que me atacam, me violentam, me odeiam. destas que se esforçam para me afogar vezes sem conta. estou cansado de me proteger contra o embate. estou desperado por uma faixa de areia onde possa deixar o barco e nunca mais voltar ao mar. quero que as ondas voltem a ser minhas amigas, quero voltar a ser eu, o meu barco e elas, em amizade, sintonia e ligação. quero parar de odiar o que outrora amei. quero chegar com o barco, direito, a bom porto. é pedir muito? estou cansado. cansado das ondas, da viagem, da batalha. quero descanso. não aguento mais os dedos engelhados e a rispidez da onda bruta que abana o barco que com tanto carinho construí. como aproveito a viagem se é ela a razão do meu desespero?
- Creio que me escasseia a espontaneidade
Tento e persisto no tentar, mas ainda no agora ela me foge. Talvez, o mais provável (mas que recuso a aceitar) é que nunca a persigo de verdade. Esculpo letras sob a bandeira da intelectualização dos devaneios que não assumo, mas sou incapaz de lhes dar os respetivos nomes de família, localizações e quaisquer especificidades que me aproximem da situação relatada, como se manter tal frieza de algo adiantasse. O devaneio persiste, e eu na tentativa em vão de uma escrita floreada. Persisto na pontuação (quase) certa, na gramática mais correta que consigo fabricar no momento - sem prejudicar o meu modo de expressão - em nunca finitas correções, em escrever num teclado antes de cravar para a posteridade a tinta da minha caneta preferida no meu caderninho prateado que comprei a meios de uma adolescência atormentada. Ainda agora o faço, incapaz de romper com o vício da tentativa de perfeição literária. Ai, o ultraje de escrever diretamente no papel que ficaria riscado! Ai, assumir aqui uso Lakudo 0.7 desde que descobri a sua existência na papelaria do liceu! O ultraje que seria personalizar textinhos que não chegam nem aos olhos do meu público mais próximo. Escrever a quilómetros da minha realidade, como se disso beneficiasse, como se adiantasse, como se um alguém fosse analisar tais construções sintáticas. Queria ser como aquelas pessoas que escrevem “A fez-me B, isso magoou-me porque C. Sinto x” - objeções principais: i) recuso-me a aceitar que a minha vida seja típica assim, que os meus sentimentos se resumam à lei causa-efeito da física e demais ciências concretas e que não seja tudo mais complexo; ii) descreve-lo, assim, tornaria a situação real (como se deixasse de o ser por eu cometer omissões); iii) fazê-lo seria abdicar da minha esperança de que estas palavras tenham valor para além daquele que lhes dou. Devia aceitar que não sou o próximo Pessoa, que estes devaneios não têm valor. Devia perder o desejo literário, o desejo de emanar poesia, o desejo da arte. Devia ser só eu, orgulhosamente. Devia assumir que as palavras que aqui ficam não são mais que confissões longas e doloridas da minha adolescente incurada (ou será criança?) - mas persisto, e persistirei, nestas frases que perdem sentido com a falta de detalhes. Não me parece natural dá-los, mas sobretudo dói-me. Talvez partilhar o meu tipo de caneta predileta seja demais (devia apagar??). É que magoa. Creio que torna a situação real, e não o quero. Quero mantê-la longe, noutro planeta se possível, por favor, e deixa-la sossegadinha no pretérito em que ocorreu. Que ela me largue, por favor! Que ela fique lá, e eu aqui, não génio, com o desejo implícito de ser génio irreconhecido, ignorado, mal tratado por um mundo cruel. Separadas, assim, talvez possamos encontrar a paz última que prometeu a sacra igreja, que essa seja estóica como RR e bucólica como Caeiro, já que nem isto consigo decidir, e que não me consuma o pouco que me sobra. Que a separação me deixe sã, que eu tanto preciso. Que me deixe viver, que me tire as amarras, que me liberte desta prisão que sempre fui eu, da minha memória enviesada para o traumático. Que não seja a morte, que essa não chega para o tanto que descrevi. Que não seja dolorosa, que dores já tenho de sobra. Que seja rápida, que o cansaço já me pesa. Ou que seja, só, se possível for; se não, aqui ficarei, amarrada à insuficiência que sou e serei, até ao fim dececionada com tal.
- Lembro-me que... (versão batismo do caloiro 23/24) - parte II
Sissi Leve é um adjetivo estranho para caraterizar um dia tão intenso quanto o dia do Batismo. Não consigo evitar que seja essa sensação de leveza que me invade quando, como se se tratasse de algo que tivesse acontecido há uns bons anos, relembro já saudosa aquela mágica tarde que, para alguns de nós que tiveram horas infinitas a tentar reaver a dignidade capilar, se prolongou num excelente início de noite. Sentada no relvado imagino o que estarão a pensar aqueles olhos que, do outro lado do lago, se espantam ao verem o seu tão apreciado café pós-almoço ou a sua tarde de confraternização interrompida por um espetáculo peculiar: os volterini e uma manada de minions vermelhos a encaminharem-se, vez a vez, a pares ou em trios, em direção à água para realizar um ritual, no mínimo, interessante e até cómico dada a colher gigante envolvida. Houve quem face a esse cenário instintivamente tirasse os telemóveis para fotografar tão invulgar momento e, assim, munir-se de suporte fotográfico para quando aquele cafezinho na linha d’água no dia 17 de novembro surgir espontaneamente em conversa. Vi estes e outros olhos a esbugalharem-se ao longo das várias horas que passei enquanto bom minion vermelho sentada a aplaudir os meus colegas e até alguns que já considero verdadeiros amigos, mas que há dois meses nada mais eram do que completos estranhos que tinham colocado a mesma opção que eu. Apesar de ser sempre referido como um dia inesquecível, senti sempre que havia uma certa aureola de mistério em torno daquele evento, um certo secretismo que, agora, compreendo que só tornou tudo mais mágico, porque quando não criamos expectativas, baixamos a guarda e estamos mais predispostos a deixar ser, a deixar fluir. “Vai um a um? Vou ter que ver esta gente toda? Não podia ir toda a gente ao mesmo tempo para ser mais rápido? Que grande seca”, pensei. Agora a minha opinião é outra, sei que fazia tudo parte do processo, desde não ouvir o nome de praxe a ser proclamado pela Comissão- devido à fraca qualidade do altifalante, não querendo de modo algum desrespeitar tão nobre conjunto de doutores e veteranos- seguido do levantar rápido, o descer aquela pequena inclinação de relva até o tirar as sapatilhas e colocar os pés no frio chão, o olhar para os lados e ver duas pessoas que não me eram nada e que agora são casa. No seu meio caminhei até considerarem que atingíamos a profundidade de água certa para, de joelhos e “de quatro”, levar com água da colher e com alguns chapinhos de água extra, por fim levantei a cabeça e sorri. O sol já se tinha posto, existia um friozinho inegável a trespassar-me, mas o coração estava quente, pois fora invadido por uma rajada de felicidade, daquelas que não se sentem todos os dias, daquelas raras, fugazes, que se costumam associar aos momentos mais mágicos e puros. Durante aqueles instantes nada mais importou, não os olhares de estranhos, não os uivos dos colegas e amigos, não as mil e uma coisas que tinha para fazer em casa ou para a universidade, nem mesmo as angústias associadas a esta nova etapa da vida, até alguma réstia sobrevivente de inibição social foi renegada para segundo plano. Toda a minha energia estava concentrada ali e somente naquele momento e naquelas duas almas bonitas com quem tive o privilégio de conectar nesta minha aventura. Confessemos, esta abstração total só acontece quando experienciamos algo mesmo mágico, certo? Sofia Barradas lembro-me que a maioria tinha sacos do lixo por baixo de si, para não sujarem nada. lembro-me de a minha madrinha tirar a capa dos ombros e dizer "podes ficar sobre a minha capa. é para isso que ela serve. para estes momentos." lembro-me que depois ela sugeriu tirarmos uma foto. eu, toda suja, pousei com receio a alguma distância dela, para não lhe sujar o traje. lembro-me que ela me abraçou com força, e lá tirámos a foto. sujas. eu, ela, e a capa dela. e ficámos assim. Mariana Cruz Lembro-me de pensar que nunca me tinha sentido tão feliz por estar completamente suja dos pés à cabeça. E de pensar que nunca mais queria comer piza na minha vida, nunca. E, principalmente, de ter a certeza absoluta de que, por muitos anos que passem, este dia vai ser uma das memórias mais bonitas que vou guardar comigo. Lara Cândido Lembro-me que… finalmente tinha chegado o dia derradeiro; o dia pelo qual eu ansiava com um misto de esperança - por saber que ia ser um marco importantíssimo - e de medo - por não saber exatamente porquê. Lá fomos nós, com a nossa prova mais viva do percurso que temos andado a demarcar desde o primeiro dia (aka a t shirt do caloiro, completamente imunda), para a linha água no Parque Eduardo VII, dando início ao primeiro momento solene da praxe. Lembro-me que foi incrível do início ao fim: a Comissão Académica de Praxe começou por nos dar a conhecer qual o peso simbólico deste evento - e as implicações do mesmo -, de modo a abduzir, da nossa parte, qualquer ideia de superficialidade ou de irrelevância. E, desta forma, percebi a razão pela qual o batismo seria um marco tão importante: é o dia em que não só passamos de bichos a caloiros, mas o dia em que passamos de miúdos que estavam sozinhos e perdidos para alunos que são simultânea e explicitamente elementos constituintes desta casa - à qual outras pessoas chamam faculdade -, e desta família enorme que tem tantos conselhos, tanto apoio e tanto amor para dar. Depois desta introdução, cada um de nós teve a honra de ser batizado com a colher da Magnânima Dux, mas apenas alguns é que tiveram a coragem de consumar o seu enorme apreço por este momento, ao renascerem por completo, ao mergulharem inteiramente na água. No entanto, o batismo apenas se deu por terminado após a sessão intensa de emporcalhamento pelos nossos queridos e queridas padrinhos e madrinhas, e que bela sessão foi esta: caloiros que representavam pizzas humanas; caloiros que tomaram o lugar de candeeiros andantes, pela quantidade absurda de glitter com que levaram,… havia de tudo, como se estivéssemos naquelas cenas dos filmes em que começavam uma luta de comida na cantina. Não quer isto dizer que não tivesse sido um momento igualmente marcante, uma vez que tudo isto faz parte da nossa tradição, e é como nós fazemos história no mundo académico: a minha madrinha sujou-me da mesma maneira que foi sujada pela madrinha dela, mas também adicionou um elemento novo - deixando, assim, o seu legado nesta linha histórica e de apadrinhamento que caracteriza a cultura praxista. Assim, enquanto a minha madrinha (e, devo salientar, a melhor madrinha que poderia ter encontrado) me deixou completamente suja de canela, vinho e glitter pelo corpo todo (tendo algum, até hoje, no cabelo), simultaneamente me inspirou e me transmitiu os melhores valores possíveis - abriu-me a porta à casa que é a FDUNL, e fez-me sentir o mais acomodada possível (e deixou-me tomar banho na casa dela). Assim, durante esta passagem embebida - não só de água, mas de apoio, amizade e amor - entre os padrinhos e os caloiros, senti uma enorme alegria e compaixão por todos nós, caloiros, doutores e veteranos, e, agora, espero pelo momento em que começarei, enquanto elemento decorativo e representativo desta faculdade, a ganhar pó - a espalhar a tradição e o meu legado, como a “condutora sem carta de metro”. João Coelho “No dia 17 de Novembro de 2023 deixei finalmente de ser o que era e passei a ser o sou, um caloiro.” Esta brincadeira intelectual entre os tempos do verbo “ser” pareceu-me uma boa forma de começar este testemunho. Não para mostrar que me esmero na escolha de tempos verbais (o que acontece, indiscutivelmente), mas para resumir o que aconteceu naquela tarde, a “tarde mais longa de todas as tardes”, como dizia Ary do Santos (Segunda nota intelectual do texto - e tudo isto com apenas três frases). Desde o caminho até ao local, ao sal que elegantemente nos atiraram, ou desde o frio que tive, ao conforto quente do abraço da Maria, esta foi uma tarde bonita. Quando por fim chamaram o nome para mim tinha escolhido, apenas tive tempo de pôr os meus chinelos e caminhar com ela em direção à água. (Nota relevante: Devido ao meu receio (real) de pisar uma pedra que me magoasse o pé e que me imobilizasse para a vida e ao medo (igualmente real) de pés, decidi levar chinelos) Lembro-me das palmas e dos comentários simpáticos das pessoas que estavam no local. Lembro-me de sentir o percurso meigo da água a passar pela minha cabeça, pelo meu pescoço, pelas minhas bochechas e, por fim, a pingar aos poucos para o lago. Estava finalmente batizado. Depois disto, estava realmente pronto para que cozinhassem nas minhas costas. E foi o que aconteceu. Enquanto o vinho branco era derramado nas minhas costas ou enquanto a farinha formava um pasta que escorria pela minha cara, a Maria perguntava-me incessantemente se eu estava bem. Estava. Estava genuinamente feliz. Após isto tudo, a minha madrinha chama-me à parte e dá-me o presente. Lembro-me de estar a tremer de frio, embrulhado na capa dela e de fazer um esforço hercúleo para não estragar o papel de embrulho, para o poder guardar como recordação. Lembro-me de conseguir, por fim, ver o meu presente. E, acima de tudo, lembro-me do que senti quando pude ver o meu presente: uma edição clássica dos Contos, do meu querido Eça, com uma dedicatória que me comoveu e que me comove. Mal sabia eu, quando estava a caminhar para a Linha d’Água, que o dia ia ser assim. Ainda bem que não sabia. Afinal de contas, a vida fica interessante com o elemento de surpresa. Quem diria.
- Lembro-me que... (versão batismo do caloiro 23/24) - parte 1
Matilde Proença Como assim? Como assim, levei com uma bolonhesa na cabeça, temperada com ingredientes duvidosos e até gostei? Como assim, integrei o espetáculo da tarde da linha d’água e, mesmo enregelada, parte de mim não se queria vir embora? Como assim, sorria, quase orgulhosa, às pessoas que olhavam de lado para a louca, de toalha às costas, que fui no autocarro de volta para casa? Das cadeiras de esplanada, dispostas como se da primeira fila do teatro se tratasse, percebo o quão estranho o espetáculo parecia. Percebo que se tenham desatado a rir, sentido vergonha alheia, ficado chocadas com o que viam… percebo… com certeza também já olhei assim para fenómenos semelhantes. Mas ali, com o corpo frio e molhado e a cabeça cheia de purpurinas e outras m*****, só consegui sorrir e tentar absorver a cada minuto toda a confusão que invadiu aquele (já não tão) verde relvado. Penso nisto e acho estranho. Como é que é possível ter gostado? Como é que é possível ter ficado feliz por ter ido e não me arrepender de nada? Que mundo é este que conheci? Quando olhei para os olhos deles percebi. Quando ouvi as suas gargalhadas maquiavélicas, enquanto faziam na minha cabeça o cozinhado mais complexo, como nenhum outro feito nas suas cozinhas. Quando me atiraram com ingredientes, com que, há um ano, também foram batizados … Quando me abraçaram, apesar de estar encharcada. Quando me lavaram a cabeça e me ajudaram a trocar de roupa. Quando se emocionaram e me deixaram vislumbrar uma pequena lágrima no canto do olho. Como assim? Como assim, conheci estes indivíduos há pouco mais que dois meses e hoje chamo-lhes madrinha e padrinho e já os quero guardar para sempre. Como assim? Olho para os meus colegas, hoje, talvez amigos, e rimo-nos juntos dos respetivos cabelos fedorentos e roupas sujas. Parece irreal (surreal?!) … Ainda assim, das poucas certezas que tenho, é que daquela tarde nenhum de nós se irá esquecer. Francisco de Jesus lembro-me bem do meu batismo. vou poupá-los dos detalhes, já que não é dele que vos vou falar. começo só por dizer que se as minhas afilhadas gostaram metade do delas como eu gostei do meu, são as meninas mais sortudas deste universo. foi um prazer vê-las crescer até aqui, vê-las tornarem-se caloiras, vê-las sofrer e levar com todas as merdas que lhes pus em cima de sorriso na cara (espero que não tenha sido muito bruto k k k k). no envelope que ofereci a cada uma, escrevi: o início de algo bonito. acredito veementemente que esta tarde terá sido, sem dúvida alguma, a viagem mais bonita que terei o prazer de viajar: a viagem do amor entre padrinho e afilhadas. que orgulho das minhas meninas! Isadora Elias Não sei o que passava na minha cabeça quando decidi sair do meu incrível país subdesenvolvido, da minha faculdade desconhecida e da minha ilha (sim, eu vivia literalmente em uma ilha), para entrar nessa faculdade cheia de alunos vestidos de Harry Potter, falando um português incompreensível e, ainda por cima, me mandando ficar de joelhos e gritar "ai mãezinha". Foi logo nos primeiros dias que eu me sentei, e pensei “realmente, esses europeus não batem bem da cabeça...." Quase comprei minha passagem de volta? Sim, mas resolvi dar uma chance aos colonizadores. Desde que me conheço como gente, já tinha uma rixa com os portugueses - mesmo sem conhecer nenhum, e ignorando o fato que eu sou metade portuguesa, visto que algum parente meu veio ao Brasil roubar o ouro e por coincidência me deixou com o sobrenome “de Castro”. O cara invadiu meu país, roubou nossos bens, mas me dar o direito de ter passaporte europeu que é bom... nada né? Fugiu com tudo que prestava e desapareceu, nem o nome do velho eu sei.... Mas tudo bem, voltando ao que interessa, essa rixa é meio verdade sim.... Brasileiros tem um pé atrás com portugueses, não importa o que digam e vocês nem tem o direito de reclamar. O semestre foi passando e eu fui tendo a chance de efetivamente conhecer os portugueses; de ver onde vivem, como vivem, o que gostam, o que comem, etc..., como um especial do Discovery Channel, sabe? Mas devo admitir, que já se passaram 3 meses e ainda não entendo nada que vocês falam, me desculpa. Eu poderia mentir e falar que amei todos que conheci até agora, mas prefiro dizer que gostei da maioria...... Gostei do jeito que vocês são sérios, de como ficam com cara fechada até se sentirem confortáveis e depois se soltam, de como são muito metódicos, de como se divertem com músicas brasileiras, do jeito que bebem horrores, e por aí continua. Prefiro me abster de falar dos xenofóbicos, que por algum motivo acham que sou burra e não percebo as brincadeiras, mas esses são poucos e opto por não me estressar. Voltando ao assunto das praxes, surpreendentemente eu me diverti horrores. Passei a gostar do “ai mãezinha", de encher, de chamar os “mais velhos” de doutores com a maior formalidade possível (apesar de eu ser mais velha que todos eles), e de todas as brincadeiras que eu participei e me humilhei em níveis inesperados, mas sem me arrepender de nada. Quando disseram que nós tínhamos que escolher padrinhos e madrinhas para o batismo, fiquei bem animada. Acabei escolhendo a primeira e única pessoa que eu sempre tive certeza, uma rapariga loira, de óculos, super agitada, que logo no primeiro dia das praxes foi apresentar um tal de Jur.nal e me deu a certeza, naquele mesmo instante, que eventualmente seríamos amigas. Essa Tuga é mais brasileira que muitos brasileiros nativos que eu conheço, é a única europeia que, se eu soltasse no meio do Rio de Janeiro (que é apenas pros fortes), saia ilesa e ainda colocava moral em todo mundo lá, sendo capaz de resolver todos os problemas que nenhum prefeito conseguiu até hoje. Por outro lado, coincidência ou não, escolhi também um carioca, com o sotaque mais forte que já vi (talvez tenha sido por isso que eu escolhi, já que é uma das únicas pessoas que eu consigo entender). Como uma boa brasileira, eu preciso de alguém ao meu lado que compartilhe da minha cultura, do meu instinto de sobrevivência, das piadas típicas brasileiras – com um senso de humor duvidoso, e um carisma absurdo. Meu padrinho foi uma das primeiras pessoas que veio efetivamente falar comigo e me conhecer nas praxes, assim que falaram pra ele que vínhamos do mesmo país; além de ter sido o primeiro a perguntar algo de verdade sobre mim, salvo o meu nome e de onde eu vinha.... admito que tinha meio medo dele no início, o “júri de praxe", quase uma majestade pra todo mundo ali, e eu não entendia nada. Achei que juntar essas duas figuras cheias de personalidade ia ser tranquilo, até chegar o batismo. No momento em que minha madrinha colocou a capa dela (imunda) no chão, percebi que havia juntado dois doidos. Esses seres ilustres jogaram tantas coisas no meu cabelo, que mesmo hoje, após 4 dias, ele ainda segue radioativo. Sinceramente, ouvir a risada genuína dos dois enquanto jogavam Guinness, leite condensado, ração de gato, salsicha, molho de tomate e por aí vai, no meu cabelo, fez tudo valer a pena. Lembro-me de quando fui caloira pela primeira vez – como foi no Brasil, caloura – e como tradição, passaram tinta em mim e consequentemente fiquei azul por uns três dias. O batismo da praxe me lembrou de casa, me lembrou da minha antiga faculdade, dos meus amigos, da minha família, e do meu sonho, que é o motivo deste texto existir. Para uns pode parecer bobeira, só umas pessoas te sujando, mas para mim é a realização de um sonho, e de todo o investimento de largar o curso na metade e começar de novo em outro país, o que faz toda essa radioatividade ter um sentido, e se tornar ainda mais incrível. Lembro-me também de uma frase que escutei pela primeira vez, de um sujeito que é conhecido por usar nossas havaianas brasileiras, que dizia mais ou menos o seguinte: “mas o que importa no fundo, são os amigos que fazemos pelo caminho". E quando volto ao que escrevi aqui no início, percebo que se não tivesse dado uma chance aos colonizadores, não teria conhecido esse ser de havaianas, o menino da terrinha, a menina do 758, a figura que adora encher, o fã da Luisa Sonza, as brasileiras fazendo colonização reversa, a líder que ama gringos, a menina que vive com freiras, o Ross Lynch da Wish, o heterotop e seu amigo namoradeiro, o comerciante nato, o menino bravo dos Açores, e por fim, a minha madrinha comunista e meu padrinho carioca. Termino esse relato da minha experiência, com um trecho da carta que minha madrinha escreveu, que por surpresa, fez essa menina de coração de pedra chorar: “whatever you do in this life, it’s not legendary, unless your friends are there to see it”. Beatriz Rodrigues Lembro-me de olhar para o dinheiro na minha conta e pensar se teria suficiente para tudo. Lembro-me de ir ao Lidl com a Maki e a Mello, de andarmos de um lado para o outro à procura das coisas, de desistirmos da farinha porque daria demasiado trabalho a tirar. E da jola que levámos em vez disso. Lembro-me de uma das minhas afilhadas me perguntar se a iria afogar. Respondi-lhe que não prometeria nada, mas ri-me por dentro. Lembro-me de sentir o chão e o frio da água nos pés. Lembro-me de batizar a Daniela mais cedo, pois fugia-lhe o tempo. De tentar não lhe sujar tanto a T-shirt e de lhe lavar rapidamente o cabelo. De pensar que o jogo do sabão no primeiro dia só me trazia a sorte grande. Chamei-lhe de afilhada winx, ela chamou-me de madrinha. Lembro-me de batizar a Raquel mais tarde. Perguntei-lhe qual era o meu sumo preferido, respondeu-me que não sabia. Gritei “sumo de pêra!” antes de lho despejar em cima. (Talvez o verdadeiro tesouro sejam as piadas dos padrinhos que recriamos pelo caminho.) Fiz questão de lhe dizer o quanto gosto dela e que estava orgulhosa. Lembro-me da nostalgia ao ver caloiros a serem batizados da mesma maneira que os padrinhos o foram. Lembro-me de abraçar as minhas afilhadas e de elas me agradecerem por ter aceitado ser madrinha delas. E eu só pensava que, por elas, finjo que já sou crescida e dar-lhes-ei o exemplo que me é dado todos os dias. Anónimo Estranho é pensar que alguém gosta de entrar no lago e ficar toda molhada. Estranho é pensar que é engraçado alguém sujar todo o nosso cabelo com os mais diversos produtos. Estranho é pensar que gostamos do espírito do nosso grupo de praxe quando nos incentiva a mergulhar no lago "mergulha!!!". Estranho é ter encontrado pessoas tão incríveis ao fazer as figuras mais atipicas da minha vida. Estranho é ter criado ligação com pessoas mais velhas que usam um traje. Estranho é querer conheçê-las melhor porque estou a adorar a relação que estou a criar com elas. Estranho é eu há um ano atrás nunca pensar entrar na praxe e agora ter sido batizada por dois seres humanos incríveis. Realmente a vida é estranha, E é estranha esta estranheza que experienciei. Mas se a vida não é feita para arriscar em coisas que parecem estranhas e depois surpreendem nos então não sei bem o que é. Se isto é estranho, estou feliz por estar a ser cada vez mais estranha. Mello Lembro-me de chegar e de me sentar com o meu querido António, e de com a Jéssica. De tomar café e comer um donut. De uma pausa para fofocar, de uma pausa para pensar. De ir lá fora, cumprimentar tudo e todos, e de me voltar a sentar. De gostarem da minha corrente no traje, que eu tão entusiasticamente respondia com ’12 rosas – 12 afilhados!’. Lembro-me de chamar a minha Afilhada Francisca – caloirinha, coitadinha – ao bar para lhe dar a prenda – com as 4 folhas que lhe tinha escrito, e que tinha mandado a imensa gente para ver se achavam bonito. De lhe ter dado o caderno para ler, e de ter fingido que não estava com medo da reação. Foi boa. Foi muito boa. Esbocei-lhe um sorriso. Voltou para a aula. Lembro-me da Mouquinho me ter chamado à sala de estudo do segundo andar. De ter mandado SMS à Francisca, e lhe dito ‘vem comigo e traz as flores. Oportunidade perfeita de a pedir’. Margaridas rosas. Como eu sugeri. E ela nervosa – já não me lembro o que é os nervos de ser caloira, e de pedir uma madrinha. Passou demasiado tempo. Lembro-me do pedido – de me chegar para o lado para revelar a Francisca, de ela se meter de joelhos, e a pedir para a batizar. Da Maki estar feliz de irmos batizar juntas alguém. Minha querida. Minhas queridas. Lembro-me de ficar imenso tempo a conversar com o Joura. De ele se queixar do colete arrebentado, descosido, e eu com as minhas agulhas de bolso. Mas não tinha linha – ela desfez-se nas minhas mãos. Agradeceu-me à mesma. Disse que já se ‘sentia com o colete cosido’ só do meu esforço. Pensei que iria ficar triste se ele se fosse embora para o ano. Ele. E todos os outros. Enquanto eu fico. Lembro-me de nos metermos a caminho. De ver o Afonso e conversar com ele num instante. De preencher o diploma da Francisca, de a Maki ver um erro no do Fernando, e de eu ir à AE em busca de corretor. Do Gonçalo me dizer ‘Olha a gaja’. É verdade. Sou eu. A gaja. Lembro-me de ir a reviver memórias na maioria do caminho. De chamar pelo António e de lhe dar a mão. De dar um abraço ao Riccardo e perguntar se estava entusiasmado. Dos caloiros dos Favaius. Dos caloiros dos Favaius. Queridos. Lembro-me de me sentar com o Afonso na capa da Sofia (acho eu?) e de ficarmos a apanhar uma seca descomunal. De falarmos de tudo, de não falarmos de nada. Passaram por nós umas quantas pessoas. Passaram-se duas horas num instante, passaram-se duas horas numa eternidade. Lembro-me de ir ter com a minha irmã Joana, com o cabelo cada vez mais vermelho. De mandarmos foto à Rita. De combinarmos ir almoçar com ele segunda. E fomos. Lembro-me de ter frio, de nunca mais ser a vez da Francisca. Lembro-me da minha Gi ter nomes intermináveis para os Afilhados dela, todos com coroas de flores. Lembro-me de pegar na Maki e irmos batizar a Francisca, e lembro-me de que queria despachar tudo porque tínhamos ainda de passar por minha casa. Lembro-me de glitter. De massa crua em coroas. Lembro-me de apanhar o António pelo meio do caos, e de me encostar a ele. Lembro-me da Isabel e do Riccardo a encharcarem o caloiro deles, e de comentar ‘eles não sabem brincar, meu deus. Lindos.’. Lembro-me de embrulhar a Francisca na minha capa, e depois na capa da Maki, pois ela não tinha frio. Do Orey, e do abraço forte que me deu – como se o precisasse mesmo. Espero ter ajudado, neto. Lembro-me de pegar na Maki, na Francisca, no Tiago e na Bea e de nos tentarmos meter num Uber. De termos situações bizarras com eles. De conseguir chegar a casa. Lembro-me de lavar o cabelo à Francisca. De falarmos do que raio ela estava a fazer em Direito. De ela me responder que só não queria desperdiçar uma boa média. Que compreendia. Dei-lhe umas toalhas. Fui conversar com o resto. Estivemos os 4 entre a varanda e o meu escritório, e falamos de muito. Falamos do Jur.nal. Do António – só coisas boas, filho; que gostamos dos teus textos. Das pessoas. Falamos de Jaloiros, de Tatus. De mim e da Maki. De como estávamos atrasados. Lembro-me de chegar. Do batom vermelho da Ana Leite. Da minha Maki e da minha Beatriz Jesus me ajudarem a pagar por não haver MBway. De pedir para sair com a Sofia Tello Barradas, e com a Maki. De falarmos de um pouco de tudo. Da Francisca estar ao telefone. De falarmos. De falarmos e falarmos e falarmos. De ir ver os Reclusos, porque queria imenso estar perto da minha Isabel, e do António. De querer ver o Joura. De ser interrompida pelo Rafael, que, sempre persistente, me ladrou e me fez 30 por uma linha para me pedir como Madrinha. Mandei o pastar. Ri-me, porque que mais podia fazer? Ri-me. Fui ver da Francisca. Fui ver da Maki. Fui ver dos Favaius. Lembro-me de não conseguir chegar à minha Gi. Do Joura esconder um jarro de cerveja e dizer que era dele, mas que abria exceção para mim. Do ‘fumas connosco, certo?’ e eu, com um grande sorriso, respondi que ‘claro’. De dar as voltas. Da Eva se rir, se rir para mim, tal qual como o Padrinho dela faz. E falando nele, estava eu finalmente com o meu querido António, e lá vem o fulano. Estica a capa, mete-a no alcatrão da estrada, e perante o olhar da AnaCom e da Luana, mete a testa no chão, colada aos meus pés e implorar que eu seja Madrinha dele. Elogiou-me. Disse que gostava muito de mim. Disse que ele era um mentiroso. Continuo a achar que é mentira. Lá lhe disse que ‘vá, pronto, pode ser’. Celebrou-se – desapareci com o meu António, e encostamo-nos longe da confusão. Rimo-nos do absurdo que tínhamos vivido. Disse-lhe que ele era muito especial para mim. Que ele era, e sempre seria, o meu menino. Que no meio de tudo, eramos sempre nós os dois. Encostamos a cabeça um ao outro. Lembro-me da minha Maki – sim, já a mencionei dezenas de vezes. Perdoem-me. Ela é demasiado importante para falar só de passagem. Fiquei triste quando me apercebi que já tinha ido embora. Mas que a minha conexão com ela é algo de natural, sem palavras. Faz sentido. Ela compreende o que somos uma para a outra, e eu o mesmo. Simples, honesto, sem defeitos. Lembro-me de estarem todos felizes. Demasiado, por vezes. De coisas das quais não posso falar. Da Beatriz Jesus a pegar em mim, e dizer ao Rafael que não me queria partilhar com ele. Da Laura ser um estrondo, e de me fazer rir. De estar com as meninas, de cantarem todos Lana Del Rey em pleno pulmão. De estarem todos felizes. Também o estava. E sóbria. Muito, muito sóbria. Sentia frio. Queria a minha cama. Da Francisca, da Maria, e da namorada dela – Sofia, certo? – me fazerem companhia enquanto esperava pela minha boleia. Do António se ir embora com o Francisco e a Concha – esta que me disse para não esquecer que eramos ‘manas da costura’ – e de ficarmos as 4 para trás. De esperarem comigo. De arrancar uns sorrisos. Da Francisca perceber que vou ficar mais um ano, e de suspirar de alívio. Alivio, certo? Ela estava feliz de eu ficar mais um ano. Querida. Querida. Caloirinha. Princesa.
- Ne me quitte pas
Lisboa, algures pelo quente tempo de outubro de 2023 Querido amor, meu carinho, minha ternura, meu doce Drummond dizia que comer sem fome, amar sem desejo é tudo a mesma coisa. E que fome de leão eu tenho. Sabes quando gostas tanto de uma coisa ao ponto de a quereres trincar e mastigar? Amo-te tanto que era capaz de te engolir, cairias pelo meu esófago e dormirias a sesta no meu estômago. Lamento se ele te perturbaria o sono, às vezes, não funciona muito bem. Ninguém, mesmo que tentasse com muita força e fechasse os olhos até as pestanas causarem buracos, conseguiria sonhar alguém tão perfeitinho como tu. Matas Niilismos, trovões e atores de novela que nem mentir que sentem sabem. Desperdiçar tempo contigo neste mundo doente tem sido a maior alegria da minha vida. Não me lembro do primeiro dia que te vi, não me lembro como te conheci, acho que sempre viveste dentro da minha cabeça e que te conheço há exatamente 20 anos. Penso que só agora, inocentemente, é que fui capaz de reconhecer o que me diziam: “Sempre te apaixonaste pelo Amor, mais do que por qualquer pessoa no mundo”. E o mundo é tão grande, Amor. Tão, mas tão grande. Eu tento agarrá-lo e ele foge-me sempre pelas mãos. E é verdade, amo-te só por pensares, por existires, por seres, isso basta-me. Sabes que respirares tranquiliza-me, apaixona-me, cega-me. Isto não acontece com Ninguém. Nunca Ninguém me fez afundar como tu, nunca Ninguém me fez querer vomitar as entranhas como tu, nunca Ninguém leu tão bem a minha letra manuscrita quanto tu. Não sei se o endeusamento que te faço é bom para o nosso caso, mas não faz mal. Eu sempre fui muito tolinha e me imaginei muito pequena. Se tiver de andar em bicos dos pés a minha vida inteira para me poder embriagar a olhar para os teus olhos, fá-lo-ei. Sabes como me interesso por tudo e me comprometo a nada, mas não serás alvo da minha irresponsabilidade, a ti rezo e faço de ti minha oração: Deixa-me descascar-te as laranjas, deixa-me ficar em bolinha na tua cama quando a noite soprar frio, deixa-me dar-te beijos demorados antes de dormir, deixa-me dar-te pontapés de baixo da mesa quando dizes algo inapropriado, deixa-me encostar a minha bochecha à tua, espalmando as duas faces como se fossem duas panquecas, deixa-me contar-te os dedos das mãos e os dedos dos pés, deixa-me soprar-te na cara depois de chorares dos olhos, deixa-me agarrar no teu coração como se fosse um urso de peluche, deixa-me usar os teus casacos grandes e fingir que sou um gigante, deixa-me dar-te beijinhos atrás da orelha, deixa-me domar o tempo por ti, quando não o consigo fazer com ninguém, deixa-me fazer-te café queimado. Deixa-me gostar de ti. Je ferai un domaine Où l'amour sera roi Où l'amour sera loi Où tu seras reine Ne me quitte pas Ne me quitte pas. Sofia. —------------------------------------------------------------------------------------------------------------- Lisboa, semi-frio de 14 de novembro Querido Amor, Vou-te contar a história de um dia de verão em que te vi em todo o lado. Acordei muito cedinho, acho que era agosto. Inícios de agosto, sim! Lembro-me de ter registado os inícios do mês no caderno preto, sentada num banco do jardim e de escrever sobre a incomensurável passagem do tempo, porque… era agosto. Fui no autocarro para a Estrela. Um casal idoso entrou de mãos dadas. Tinham camisas muito à hipster e equilibravam-se um ao outro sempre que o autocarro fazia uma paragem brusca, dizendo “Oh, outra vez…”, mas sempre sorrindo um para o outro. Saíram umas paragens mais à frente. Caminhei até ao Jardim da Estrela sozinha, sentei-me no pior banco de jardim do parque, era o que estava ao pé das obras. Olhei muito tempo ao meu redor. Um cão cheirou-me o pé, eu sorri-lhe e a dona sorriu-me também, como se fosse a ela que tivesse esboçado um sorriso. Uma mulher muito bem vestida riu-se quando viu um bebé a correr para ela e um homem atrapalhado atrás da criatura minúscula. Um rapaz alto estava a jogar à bola com um menino, presumivelmente, seu irmão e sorriu-me. Nesse dia, estava sozinha a la Caeiro, a diferença é que pensava. Pensava muito, sabes como eu sou. Penso sempre muito. Mas, desta vez, não quis puxar os meus pensamentos pelo colarinho da camisa, agarrar-lhes pelos ombros e chorar-lhes para que parassem de se mexer. Nesse dia, fui amiga, eles sussurravam, não gritavam, eram tão bonitos, apetecia-me dar-lhes sopinha à boca. Nesse dia, escrevi sobre o início de agosto no caderno preto, mas também escrevi sobre ti. Sobre te ver em todas as coisas que beijavam os meus olhos nessa manhã. Hoje, não é verão. Estamos nos fins do outono. Escrevo-te com a auto-perceção de que foste sempre o destinatário fiel das minhas palavras. E, apesar de não ser ingénua o suficiente para acreditar que não continuarás a dormir nas estrelinhas do que escrevo e em tudo o que vejo, estou aqui para te dizer que os meus gritos para que não me abandones foram tolos. Tu não me abandonas. Não abandonas Ninguém. Não sabes abandonar. E eu sei que nunca fui muito de largar nada, tenho todos os postais que me deram presos à tinta das paredes do meu quadro, mas já não te prendo. Não te amarei obsessivamente. Não serás a musa de todos os meus poemas, onde te canto com desesperos perdidos. Não serás mais alvo do meu medo de abandono. Acho que o meu sujeito poético gritava por ti com medo de que me escorresses entre os dedos. Mas, inocentemente, como uma criança que faltou às aulas de físico-química para ir roubar gomas à loja em frente à escola, esqueci-me de que estares em estado líquido é fisicamente impossível e, assim, os meus dedos não podiam espernear e contrair para te agarrar. Deixemos o meu sujeito poético descansar. Vamos destituí-lo do seu papel de crente que implora e pede cegamente. Deixemo-lo apaixonar-se por outros conceitos com letra grande. Deixemo-lo respirar por saber que não te vais embora. Deixemo-lo sem calos nos dedos, pode ser? O Amor que serena, não termina e, a mim, já me doem muito os dedos por ter que andar sempre em biquinhos dos pés para te ver. Sofia.
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