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  • Clube de Leitura - "Flecha", Matilde Campilho - textos (parte I)

    RAQUEL OSÓRIO DE BARROS De acordo com o dicionário, mágico significa alguém que faz magia, que, apesar do pleonasmo, é tudo aquilo que é necessário para saber sobre ele e para compreender esta história. Propositadamente ele é deixado em papel como alguém cuja única característica é a sua ocupação, o que faz com que ele seja reduzido a isto, a esta essência. O mágico viveu toda a vida tendo como garantida a sua magia, praticada por ele desde criança, apesar de não depender inteiramente de si, era aquilo que o definia da maneira mais profunda, aquilo que quando tudo o resto falhava estava presente, em todo o momento e a todas as horas. Este momento quotidiano da sua vida, nada tem que ver com a forma como a sua magia se produziu, como é que ele se tornou de facto mágico ou até mesmo os traumas da sua vida, uma odisseia perdida que só ele consegue salvar e todas esses mentiras que nos contam para nos fazer acreditar que a casualidade não pode conter em si própria beleza porque nem só de grandes obras se faz a gente. Fechando o plano nele, neste preciso hoje, independentemente do dia em que estiver a ler isto, por que no fundo o tempo não existe, de facto, neste universo em que o homem está preso, ele vai retirar a sua varinha do bolso do casaco de couro com a mão direita, a mão que usa para fazer tudo, e depois passará, num gesto mecânico, a dita varinha para a mão esquerda. Ele continuará infinitamente a repeti-lo, como Sísifo outrora fez à sua pedra, e assim ficará congelado neste loop, nesta chaga, da troca de mão até ao fim dos seus dias. Talvez o mágico nunca tenha pensado de facto nisto e cogite por ventura que este gesto tão inocente que o possibilita de exercer a sua essência é meramente questão do acaso, mas nunca iremos saber de facto se isso aconteceu e por isso, resta-nos filosofar acerca do assunto, como responsáveis que agora somos por ele. Com o mágico, aprendemos que a essência, este pedaço de alma tantas vezes discutido por pensadores, pode estar apenas contendida num simples gesto do quotidiano, como entrar num rio que altera como o nosso animus. No entanto, ao contrário de Heráclito, Matilde Campilho confere-lhe uma natureza estática de um gesto repetido infinitas vezes que não se altera nem é pensado até ao limite, sendo meramente instintivo. No fundo, penso que a autora traduziu, de uma forma bonita e subtil, que muitas vezes aquilo que é de facto a nossa essência pode fugir completamente ao controlo do próprio individuo que a detém, o que remete para a crença de que aquilo que nos define é tão interior que nem sequer nós mesmos o podemos controlar. Bem sei, esta ideia é profundamente desconfortável, mas, para acrescentar ainda, tenho de dizer que esta pode ser, e é, em muitos casos, uma contradição aos nossos instintos naturais, veja-se o mágico que, sendo destro, só consegue fazer magia com a mão esquerda, a mão não dominante que acaba por subjuga-lo a si própria. Reconhecendo que a missão a que a autora de propôs será para sempre discutível, por se encontrar no campo das matérias inefáveis, gostei de quão vago é o texto, porque assim, ao observar um ser unidimensional num ato quotidiano, é possível ao leitor pensar no que há de mais profundo em si. Tal confirma a tese de que os grandes autores são aqueles que conseguem explicar coisas altamente complexas com ideias simples e, pelo caminho, usar palavras bonitas. SOFIA DIAS Uma menina de 4 anos brinca no quintal da avó. Tem um vestido branco e às bolinhas vermelhas. O cabelo está adornado com um laço a combinar que, a muito custo, a mãe colocou na cabeça. A resistência ao penteado fez com que ambas chegassem atrasadas aos respetivos compromissos – a mãe tinha uma reunião de trabalho e a menina tinha de estar no restaurante onde servia bolinhos de lama, confecionados com terra originária do oásis da mãe da mãe. Assim que passou pelo típico portão azul, Leonor foi servida com iguarias típicas de avós, os bolinhos com canela e açúcar; o mel; o chá a ferver que requeria assopros e muitos “Ai, avó, a minha língua dói!” para ser bebido; os sorrisos de açúcar seguidos de “Luísa, filha, tens a boca toda suja, limpa lá isso!” e, claro, os repetitivos avisos de que a menina estava demasiado lingrinhas e que devia devorar tudo o que havia na mesa. Agora, a avó está a ler um livro na cadeira de plástico branca, com as pernas cruzadas, uma mão a apoiar o queixo e os óculos na ponta do nariz. Os bolos de lama da menina estão no forno. Esta distrai-se com um formigueiro que lhe passa ao pé dos pés. Agacha-se. E, com os seus dedos gordinhos pega numa formiga e come-a. Não sente nada. Foi como tivesse engolido ar. Escolhe a próxima vítima e leva-a à boca. Nada sente, novamente. “Leonor, o que é que estás a fazer? Não comas formigas, filha. Isso não se come.” A menina levanta-se e vai ter com a avó. “Avó, porque é que não se pode comer formigas?” “Porque são bichos, amor” “Mas, avó… Não percebo…. Sabes que a mãe diz que eu tenho bichos maus a sussurrar-me ao ouvido quando faço disparates?” “Ah sim. Esses malandros.” “Isso quer dizer que… Quer dizer que os bichos maus me mandaram comer os bons?” TIAGO MONNI Gostei bastante, reúne diversas temáticas: a especialização no trabalho que vem da prática reiterada de Dave já ter feito tantas peças ("Já perdeu a conta"), depois sabemos da sua relação de subordinação para com os homens brancos: mesmo que ele faça todas as peças, na maior perfeição possível, serão usadas para fins de outros, dos homens brancos, o que lhe tira o sentimento de domínio sobre as obras, pois não consegue reivindicá-las como suas. E vê-se uma diferença de perspetivas: para Dave são obras de arte, enquanto para os homens brancos são apenas formas de armazenamento daquilo que consomem diariamente. Contudo, vemos que Dave sente a necessidade de escapar deste ciclo em que cria as obras para depois lhe serem retiradas, pelo que elas finalmente são consideradas suas, imbuídas do significado que lhes remete. Assim, dá vida à sua obra, que passa de um mero instrumento de armazenamento para uma arma de libertação. Agora o jarro tem nome, é vivo, não é como qualquer outro. E o significado é a busca de um sentido para ele próprio, pela busca das suas raízes, do seu povo. Não sabe onde estão e nem como encontrá-los, mas é pela subversão da sua subordinação aos outros que encontra um ponto de partida. Então, basicamente, Dave procura um significado para ele próprio. Além, claro, da existência de uma forte crítica social (mas para isso acho que preciso de mais contexto do livro). MELLO sem escolha sem ser estar isolada em busca de força para me extrair o coração empurram-me para o lado empurram-me em frente mais ninguém tem a minha coragem. não tenho um que seja meu tenho de ter o dele sim. ele não o merece o que é teu deveria ser meu. bandeja da cor da lua, senhora dos espelhos, soldada mudada, nada mais que uma peça mas alguém terá que fazê-lo. o teu coração, negro e quente, sempre a bater, faca na minha manga, esperando pelo sol poente. no nosso jogo eterno sou peão mas no final da linha irei mudar crescer, recuperar, superar, fazer de mim cavaleiro, fazer de mim rainha, mandar abaixo o teu bispo e a cabeça dele empratar. mesmo que te arrastes pelo chão, por ti não tenho miserdicordia, pelo teu peito adrento minha mão, e das tuas tripas um colar. magoar-te-ei como magoaste as minhas, como me magoaste a mim, da minha ira divina, pedido da peça final. eternamente não ha nada há espera de mim, sem estar aqui sozinha, sozinha, quebrada, segregada, com um novo coração. e este poema está profundamente inacabado, sofia. INÊS BRAZÃO Quinze metros acima do nível do mar, uma dona de casa acorda de manhã e flutua até à máquina de café. Numa sucessão de movimentos, que desempenha de forma automática, retira a quantidade usual de pó e coloca-a no suporte apropriado para o efeito. Carrega num par de botões e, por artes mágicas, o pó une-se à água e a água une-se ao pó, resultando num incomparável líquido acastanhado. A dona de casa aguarda enquanto o líquido enche a sua caneca, exalando um odor do qual ela não se imagina cansar. Assim que a máquina cessa o seu funcionamento, retira a caneca e dá um golo. Longo. Sequioso. Aproxima-se da janela da sua cozinha. Segurando firmemente a caneca com as duas mãos, perto do seu rosto por forma a sentir o delicioso aroma, observa as movimentações na sua rua. Vê a vizinha, na sua faixa etária, a entrar no carro para ir para o trabalho. Lembra-se da sua irmã gémea, astronauta. Alguns quilómetros acima do planeta Terra, algures no espaço. Ouve passos, e depois alguém, o seu marido, a ligar o rádio. Do aparelho provém um som familiar, que a embala nas próprias memórias. Era uma das canções favoritas da sua irmã. Sente muito a sua falta. Interroga-se como será a sua manhã no espaço. Sem gravidade, e sem o odor reconfortante de café acabado de fazer.

  • Lembro-me que... versão Traçar da Capa 2023

    Letícia Paes Lembro-me que, fiquei demasiadamente espantada de possivelmente tomar pauladas do Dux com a colher de pau, pelos meus crimes. Lembro-me que, consegui convencer um grupo inteiro a ir no BK, por achar menos nojento que o McDonald’s. Lembro-me que, o discurso do presidente da comissão me fez ter uma crise existencial com a Júlia e a Mariana, e percebemos que realmente somos uma linda pequena família unida, pela qual tenho muita gratidão. Por fim, lembro-me de não chorar com os meus padrinhos, mas sentir demasiado amor e gratidão, além de esquecer de informá-los que tenho dificuldade em chorar em público. Maria Leonor Baptista Lembro-me que acordei cedo naquela manhã, demasiado excitada para conseguir dormir mais. Demorei mais do que o costume a vestir-me, cada peça do traje foi colocada devagar, quase como um momento solene. Olhei para a gravata e lembro-me de sorrir a imaginar o momento em que o meu padrinho lhe iria fazer o nó. Lembro-me de chegar praticamente horas adiantada e de correr para a minha madrinha e pôr-lhe uma colher ao peito. Ver as minhas 2 melhores amigas, muitíssimo adiantadas no horário tal como eu e de transbordar de orgulho. De levar a capa no braço sempre na expectativa de a colocar aos ombros. Já na madrugada de sábado quando a senti nos ombros e me ajoelhar e pensar "tudo vale a pena". Vou guardar esta noite. Beatriz Rodrigues Lembro-me que nunca bebi tanta jola, sangria, sidra e vinho num só dia. Dos sapatos que fugiam dos pés, de nenhuma das minhas madrinhas saber fazer o nó da gravata, de me molhar 50 vezes, das pessoas com quem falei e de tentar não me rir no tribunal. De estar de joelhos em cima da terra, de ouvir os discursos improvisados mais bonitos e de nunca ter ficado tão feliz por ter vinho e jola despejados na minha capa. Lembro-me que tinha muito mais do que uma lágrima no canto do olho. E foi aí que, ao olhar para as pessoas que escolhi como padrinhos, entendi o verdadeiro significado de “praxe é família”. E é a família mais bonita que poderia ter pedido. Lembro-me que tive mais espaço no coração do que alguma vez pensei ter. Isabel Costa Lembro-me que nunca gostei de falar de amor ou das pessoas que usavam a palavra como se fosse qualquer outra. Para mim, esta palavra sempre teve o peso do mundo em si - estava reservada apenas à família e só se fosse extremamente necessário dizê-la. Até que cheguei a Lisboa... Lisboa mudou tudo, Lisboa facilitou a palavra amor e deu um significado novo a família e o dia do traçar foi prova disso. A rir num uber atolhado de pizzas e alguidares com a Bea e a Mel, a descer a lona com a Jéssica, a ver a Inês defender o seu rebento, a ser engolida em abraços pelos meus novos irmãos (que sabem que sempre o foram) a desabar com o pin da Ana Sofia, a soluçar com o 15. ° "sou gay" da Mello, a querer um abraço apertado do Luís, a assistir ao Hugo e à Leonor a rir com os seus filhotes, a pensar no meu Bernardo, a traçar a capa à minha Sofia, a ver todos os meus caloirinhos já doutores e a adormecer no uber com a Carol - não há outra palavra possível para descrever tudo o que senti se não Amor. Muito obrigada 💜 Sofia Dias Lembro-me de falar com as bichas sobre testes de gravidez. Lembro-me do elixir da Mello. Lembro-me da Isabel me dizer: “SOMOS IRMÃS!”. Lembro-me de dar a mão à Beatriz Moderno enquanto o Gonçalo discursava. Lembro-me de olhar para trás e de ver a Bea Jesus com a cabeça encostada ao Hugo, de lhes sorrir e de eles me sorrirem de volta. Lembro-me de pensar que depois daquele dia talvez me fosse embora. Seria um bom final. Partir sem acordar seria um desperdício, mas não seria o caso. Lembro-me de olhar para as minhas afilhadas, de improvisar discursos e de sentir um aperto gigante, uma montanha russa no meu pobre coração quando me diziam: “Gosto tanto de ti. Olha para ti, olha só para tudo o que fazes. Quero ser como tu!” e se atiravam para os meus braços em busca de um abraço amigo, que eu daria num abrir e fechar de olhos. É monumental ouvir isto. Claro que o que eu lhes queria dizer era: “A tua madrinha deita-se a horas horríveis, tem problemas na barriga, sente-se exausta, quer mandar os núcleos todos à merda, esquece-se de metade das coisas, tem o quarto todo desarrumado, não consegue traduzir o que o estupido do coração lhe sussurra e o cérebro está praticamente em coma de tanto correr.”. Lembro-me de pensar - que se dane o meu ego e que se dane a minha própria desvalorização, por vocês, fingia que arrumava o quarto todos os dias. Que lia mil livros num dia. Se isso vos ajudar a fazer com que o cérebro e o coração não estejam em coma permanente, então, finjo que já sou crescida e que não luto todos os dias com a camisola, porque não encontro o buraco onde meter a cabeça. Mello Lembro-me do sol da manhã. Da Luana e da Bea me darem as pizzas e eu fugir para casa da Rita, para as ir fazer. De ela fazer sangue falso para mim numa panela, enquanto me contava mil e umas histórias do ano dela. A fazer render o tempo que nos faltou. Lembro-me das pistolas de água, e o quanto tentei esconder os meus olhos das mesmas, seguido por um "Olha as lentes!!". Serviu de pouco. Lembro-me de sorrir para a Isabel, e de ela me dar um enorme abraço e uma cerveja. Lembro-me de fazer várias viagens para ir encher bacias e garrafões de água, e lembro-me da foto rápida que a Matilde pediu para tirar comigo antes de desaparecer. Lembro-me da lona, claro, e do meu traje ficar pintado de branco, pois absorvi todo o sabão que a lona tinha. E da Gi, da mão dela, e das cambalhotas da Jéssica. Lembro-me de ir buscar água com a Matilde, e de desperdiçar imensa água a tirar o sabão do meu traje. Lembro-me dos últimos dois cigarros amassados do maço que o Joura me tinha dado, e lembro-me de que o grupo da FCSH que estava lá ao lado era uma festa de anos, e que me enrolaram outro também. Lembro-me de dizer ao Riccardo que tudo iria ficar bem, que ele se ainda iria surpreender pela positiva. Lembro-me de ficar de pé durante o tribunal com a Diana Pádua e a Marta Cardoso, e o esforço que foi para não nos rirmos. E da minha afilhada Maki a picar os caloiros dos Favaius enquanto abanava o meu leque do sapo. Lembro-me de ir ao El Corte com a Marta, Sofia, António e Gi, e de a Constança me acompanhar o caminho todo. De nos enfiarmos as duas no supermercado e comprarmos o jantar: filipinos de morango, mojito em lata e um elixir bucal. Ah, e o Rosé que o António pediu. Lembro-me de relembrar a Constança que fazia um ano que ela tinha chorado no traçar enquanto dávamos as mãos. Lembro-me do António me pegar ao colo e me rodar quando a Isabel lhe contou das novidades. Da cara de espanto da Sofia, e dos gritinhos de felicidade. Fui feliz nesse momento. Imensamente. Lembro-me de o Afonso vir super feliz de um concerto, de me puxar para perto dele e me dar um abraço. De me dizer que o Joura já tinha ido embora (para meu desgosto), e de estar ao meu lado durante todos os discursos, e de trocarmos olhares que diziam "tenho sono", "estou velho". Lembro-me perfeitamente do discurso dele para os Favaius, com a menção do Panda do Kung Fu 3. Lembro-me de ele se despedir de mim e agradecer por tudo. Sorri-lhe. Disse-lhe que foi das pessoas mais especiais para mim neste meu terceiro ano. Lembro-me de já não conseguir ver bem com as minhas lentes enevoadas, e de andar a correr pelo Batalhão a perguntar pela TC deles. Lembro-me de me levarem até à Rita, e de nos sentarmos na relva, debaixo de um candeeiro. Lembro-me de tudo o que ela me disse. De me chamar caótica e incrível. Prometi-lhe muito. Ensanguentou-me a capa. Abraçamo-nos. Chamei-lhe mãe. Lembro-me da Maki me fazer prometer que lhe traçaria a capa noutro dia, pois tinha lhe fugido o tempo. Lembro-me de ser vitima do sistema de rega enquanto traçava a Sofia Dias, e lembro-me de lhe segurar nas mãos frias dela. Lembro-me de lhe chamar filha da primavera, mesmo que tenha nascido no final do verão. A minha Sofia. Lembro-me da curva do nariz da Marta, das pestanas perfeitamente enroladas dela, das lágrimas a escorrer-lhe, e do que prometemos mutuamente. De lhe ajeitar o cabelo, dos medos, das angustias e das memórias. Lembro-me de dizer que tinha amor por ela. Deu-me o abraço mais forte. Lembro-me de ser difícil de pegar na Gi, pois ela é muito ocupada. Lembro-me de finalmente ter tempo com ela, e de ela se desfazer em lágrimas logo. Lembro-me de lhe beijar a testa, e de lhe dizer que cuidava dela atrás de portas fechadas mais do que ela imaginava. Perguntou se não era demasiado. Disse lhe que nada o era, pois era por amor. Lembro-me da Isabel. Que me chamou autodestrutiva, e xingou toda esta faculdade. Disse-lhe que para mim importava quem tinha coração. Que me orgulhava dela e que ela sim iria fazer algo de bom. Que restaurava-mos a fé na humanidade uma da outra. Rimo-nos. Ela tinha as bochechas encarnadas. Desejei-lhe felicidade. Chamei-lhe filha. Chamou-me mãe. E desta vez, significou algo. Lembro-me do António. De me sentar com ele e dizer "bom, que mais te posso dizer que tu não saibas?". Que é parvo fazer um discurso a alguém com quem estou quase diariamente. Mas que há algo kármico entre nós. Que tudo o que vivi me levou a estar sentada com ele na relva, as mãos dele nas minhas. Que numa vida passada fui mesmo mãe dele, e não somente madrinha. Que sempre estarei do lado dele, e que dano na nossa amizade, e com as irmãs dele também, me angustia mais que muita coisa. Chamou-me corna. Mandei o ir se foder. Abraçamo-nos. Este ano, não choramos. Lembro-me da Beatriz Jesus. De ser ela quem me faltava, e de ela estar debaixo das palmeiras. De lhe prometer o mundo, e de não conseguirmos explicar a nossa conexão. De a comparar a mim e à Rita, e de lhe dizer que ainda tínhamos tempo. De nos rirmos da primeira vez que nos conhecemos. De dizer que ela encarna o significado da minha palavra preferida — gentil. De lhe colocar a cabelo atrás da orelha, e fazer um trocadilho enquanto a traçava. Beijei-lhe a testa. Disse a todos que acreditava que as pessoas pertenciam uns aos outros, e que eles eram meus, e eu deles. Que os laços entre as pessoas são mais densos que a água, mais espessos que o sangue. Isso, e um elixir bucal de 1,49€ do El Corte Inglês. Hugo Mendes Lembro-me de identificar presságios de que este dia seria o culminar de um acumular gradual de sentimentos. Que seria um dia emocionalmente pesado. Não só pela sua solenidade; mas também pelo que senti há um ano atrás: a sensação de pertença aos braços dos meus padrinhos e a sensação de que havia tomado as escolhas corretas. Lembro-me que nesta semana refleti inúmeras vezes em como as transmitir às minhas afilhadas. A vocês: Marta, Inês, Bia e Bruna, espero tê-lo feito. Lembro-me de pensar que uma amizade e uma relação de padrinho-afilhad@ não é nada sem uma certa admiração pela contraparte. Esse foi o elemento comum a todos os meus discursos a vocês direcionados. Lembro-me da forma como vos olhei assim que vos tracei a capa e de pensar que vos quero proteger de tudo e todos (apesar de saber que não o consigo fazer - mais vale render-me agora). No entanto, o que posso fazer, e farei, é acolher-vos, rir-me de todos os vossos momentos constrangedores e histórias bizarras, como também estar lá para vos levantar do chão quando caírem. Estou aqui para isso e para muito mais. Mesmo que não fosse esse o meu papel, eu fá-lo-ia. António Subtil Lembro-me que há um ano, era eu, e agora são vocês. A nostalgia, minhas filhas, é uma sensação muito bonita, mas tão perigosa. Caio na tentação de mergulhar na melancolia pelo que perdi, e pelo que nunca foi. Minha família, não olhem esse abismo durante demasiado tempo, ou um dia ver-se-ão velhos. Para o ano são vocês. Orgulhem-me. Maria Leonor Simão Lembro-me dos olhos molhados de muitas pessoas a refletirem as luzes da cidade lá ao fundo, sinal de que o tempo continuava a andar, a vida não parando sequer para as nossas lágrimas. Felicidade, tristeza, tudo de uma vez misturado em água salgada: a nostalgia assoladora a relembrar-nos de que mais uma noite tinha passado, as luzes tinham continuado acesas, e nada realmente tinha mudado. Mas todos nos sentíamos diferentes. Carolina Correia Lembro-me que tracei a capa a três meninas muito especiais. Lembro-me que vi os meus caloirinhos a passarem a doutores (com uma lágrima no canto do olho). Lembro-me que fiquei com o coração quentinho a ouvir a Marta e a Jousa a falarem sobre mim. Lembro-me que abracei e sorri muito, e lembro-me que essa noite foi a cura para algumas feridas abertas…

  • Se(nti)r dói

    Tenho dificuldades em ser humana. Ser dói. Não consigo aguentar nem mais um mero segundo que seja a ser algo pertencente desta humanidade. Que as portas do que sinto, abertas ao exterior e com acolhimento próprio a toda e qualquer informação, fechassem. A sete-chaves, e com todos os monstros que desenhei em papel (aquando da idade dos beijinhos que tudo curavam) a guardar as longas e enferrujadas portadas. Sangue escorre-me dos olhos com o que vejo a acontecer; sufoco na minha própria saliva com as palavras que tento dizer; bloqueio as minhas próprias narinas só para não ter de respirar, nem por mais uma vez que seja, este oxigénio; que a cera dos meus ouvidos se multiplicasse do modo mais asqueroso possível só para eu deixar de ouvir o que ouço; que eu andasse coberta por uma fina camada de tecido, que substituísse a minha pele, só para eu deixar de sentir o que sinto com as fissuras da minha impressão digital, dos meus poros; que o meu coração palpitante, ritmado e constante, estagnasse. Que fosse transportado de mim para um outro alguém, e que esse outro alguém fosse capaz de lhe dar o lar que ele merece. Este T0 só consegue dar casa ao meu cérebro e, além disso, o coração tem vindo a falhar os pagamentos do condomínio. Com os meus pensamentos lido eu bem, agora não me ponham à prova contra as minhas próprias emoções, pois aqui vos garanto, que eu sairia deste combate completamente derrotada. Miserável, enganada, esbofeteada. Seria contraproducente pensar que fui eu que criei o que eu sou, quando o que eu sinto criou mil e uma versões de mim, dispersas e independentes, com vida e alimento próprio. Eu só pedia uma reunião de cada uma das faces que vejo ao espelho, para que a um consenso emocional fosse possível chegar. O que sinto é maior que eu, e eu própria já sou alta o suficiente para isto. Alguém que passe no interruptor da luz e o desligue. Talvez às escuras os meus sentimentos esbarrem contra a parede e se deixem ficar caídos no canto do quarto, à espera de serem varridos e atirados para um caixote de lixo reutilizável, só para voltarem a cair nas minhas mãos. Quase como uma pastilha elástica de 5 cêntimos. Aquelas da mercearia ao fundo da rua, aquelas que perdem o sabor de imediato, mas que se continua a mascar. Eu não penso demais, eu sinto demais.

  • Discurso de Tomada de Posse da Mesa da AG e do CF da Nova Law Students’ Union

    Exma. Senhora Diretora Prof. Doutora Margarida Lima Rego e restante Direção, Exmo. Senhor Presidente em exercício do Conselho Pedagógico, Prof. Dr. Filipe Brito Bastos e restantes membros, Exmo. Senhor Administrador Executivo da Nova School of Law, Dr. Paulo Ferreira, Cara restante Mesa da Assembleia Geral cessante, Caro Conselho Fiscal Cessante, Cara Direção da Nova Law Students’ Union, Caros alunos da Nova School of Law, Obrigado por terem vindo hoje a esta cerimónia solene de tomada de posse dos órgãos recém-eleitos no passado dia 17 de maio de 2023. Em primeiro lugar cumpre-me agradecer, e esse primeiro agradecimento, vai para a minha equipa. Para vocês e, sem que nada disto era possível, o meu muito obrigado. A ti Rita, por me dares na cabeça sempre que podia perder o meu temperamento, e a ti Ana Sofia, pela rapidez e avidez na escritura das atas e na preparação de cada Assembleia Geral. Sei que a minha equipa é fenomenal e em grande medida à vossa custa. E, por isso, não podia estar mais satisfeito e mais contente pelo fim deste projeto pois levo desta equipa uma amizade fortalecida e vários momentos de trabalho com enriquecimento curricular, típico da Nova School of Law, não puderam faltar. Agora resta-me fazer a introspeção devida que um mandato impõe e essencialmente constatar que esta equipa fez tudo o que era possível com as circunstâncias que eram possíveis. Todos erramos, como é obvio, mas o erro, para nós, foi sempre a página de um manual em que do lado oposto estava um exercício de recapitulação para que, não pudéssemos errar mais nenhuma vez, para que cada passo que déssemos, fosse sempre em equipa e calculado pelo rigor que estar nestes órgãos exige e que a nossa própria demanda exigia. Posso avançar que participámos em todas as reuniões que necessitavam da nossa presença em todos os núcleos, pedimos desculpa quando devíamos, e, se não o fizemos, faço-o agora, em nome da minha equipa. Havia Assembleias Gerais durante vários meses repetidamente pois a prontidão do trabalho necessitava desse rigor estatutário, dessa entrega e dessa dedicação. A força e o rigor do associativismo imperavam o nosso quotidiano, não havendo sequer paciência ou vontade de ficarmos inertes à vontade da massa associativa. Dedicámo-nos, posso asseverar, sempre pelo cumprimento da legalidade, pelo cumprimento dos Estatutos, pela independência e pela separação dos órgãos. Fizemos, espero eu, da Mesa da Assembleia Geral, um órgão mais próximo, mais transparente e rigoroso. Criámos o Linktree, publicamos frequentemente nas nossas redes sociais. Queremos e quisemos sempre estar próximo dos associados e de que os mesmos possam participar das decisões da casa que também é a deles. Não quisemos nem nunca impusemos a ditadura ideológica nem fomos arbitrários, mantivemo-nos empenhados na criação de pontes e não de barreiras, de criar plataformas de diálogo e de cooperação mesmo quando o problema era legalmente sério, sim reporto-me à Nova Assembleia. Contudo, o nosso trabalho não se esgota na participação das reuniões dos núcleos e da marcação e direção de todas as Assembleias Gerais, trata-se, igualmente, paralelamente ao Conselho Fiscal verificar que toda a nossa atuação encontra-se legitimada pelos Estatutos que não existem irregularidades que o Conselho Fiscal tenha de se pronunciar e, se calhar, das tarefas mais árduas, a de coordenação das eleições para todos os órgãos sociais da Nova Law Students’ Union. Posto isto, não podia abandonar as minhas funções sem antes fazer uma segunda introspeção mais profunda e pessoal da Students’ Union. Como garante último do cumprimento dos estatutos, e dado que mesmo cessante, ainda sou o Presidente em exercício pleno, há várias situações a reportar. A vida de uma Students’ Union não é para servir propósitos políticos nem para proliferar ideologias políticas. A Students’ Union é um espaço de diversidade de opinião, de respeito institucional e de solidariedade institucional e, o que tenho visto desde dezembro último, tem sido um verdadeiro desrespeito institucional não somente pelos órgãos, mas também pelos associados. Apesar do considerável aumento de presenças de alunos nas Assembleias Gerais, motivados decerto, pela preocupação das estratégias, ou da ausência delas, da instituição que deve de os representar junto dos diversos órgãos da faculdade, este mesmo órgão, mantém-se inerte em estabelecer pontes de cooperação, em estender a mão e a trabalhar em conjunto remetendo-se sempre para o foco em lutas ideológicas e em lutas políticas quando sabemos que isso, por si só, não chega. Não chega só lutar ideologicamente, quando, numa faculdade tão pequena, a mínima inércia se espalha. Para espanto de muitos, ou até mesmo de poucos, a diferença que uns propagandeavam não era diferente pela diferença positiva ou construtiva, era pela diferença na inércia, ou a diferença na diversão, pois a faculdade serve para nos divertirmos e não para reforçar laços académicos com momentos de pedagogia e de lazer. A minha posição de garante de cooperação acabou hoje como Presidente da Mesa da Assembleia Geral, mas não acabou como aluno desta casa que já tantas felicidades e amizades me trouxe assim como desejos e vontades de luta e de trabalhar para fazer melhor, para ajudar a fazer melhor. Caros convidados, Caros alunos, Não posso despedir-me sem acrescentar algo meu a este discurso. Como insular que sou sempre me foi ensinado a ser reivindicativo e, isso transparece-se em cada passo que dou na minha vida. Portanto, por esse mesmo motivo, peço a cada um de vós, tanto aos que hoje tomam posse, como a todos os restantes que sejam atentos à vida institucional que vos rodeia, à vida académica e pedagógica que querem ver formada. Que nunca deixem de lutar, mesmo quando a luta não se trata de fazer algo de diferente mas sim de atacar uma pessoa em específico. Mesmo quando a luta se travar suja, mesmo quando as batalhas são manchadas pela anti democraticidade presentes em pseudo-ditadores, nunca deixem de lutar nem de libertar o vosso espírito reivindicativo tendo sempre consideração pela cooperação e auxílio dos vários intervenientes. Renuncio e saio porque, apesar de saber que a missão está incompleta, que poderia ter feito mais e melhor, este foi um ataque pessoal ao qual a minha conclusão foi a de não prejudicar o órgão. Contudo, renuncio e saio de cabeça erguida deixando a Rita que tanto também tem de identidade da lista que encabeçou. Todos os atos que realizamos, todas as palavras que dizemos basicamente a nossa forma de estar na vida, a história acabará por julgar, contudo, nós próprios avaliamos e tomamos partido numa formulação de uma opinião positiva/negativa sobre a atuação de várias pessoas. Que os desejos que realizei de bom trabalho em dezembro último estejam ainda na mente da Direção cujo trabalho parece ser inerte, ou muito concentrado em manifestações ou até mesmo somente em momentos de lazer. Que os desejos que fiz em dezembro último não tivessem sido usados para criar uma disputa eleitoral manchada de anti democraticidade, com falta de originalidade e por mero oportunismo pseudo-ditatorial. Queira salientar novamente uma citação frequente nos meus discursos, “Vivemos com o que fazemos mas marcamos a nossa vida com o que damos.”, Churchill. Sei e tenho consciência disso, que marquei a vida associativa desta Students’ Union enquanto presidi à Mesa da Assembleia Geral. Entreguei-me juntamente com a minha equipa e posso dizer que a minha vida sai daqui marcada tanto pelos bons motivos que muitos me trouxeram como pelas inércias que outros me trazem. Por fim, e no sentido de não me alongar muito, queria agradecer imenso a todos os órgãos da faculdade que cooperaram com a Mesa da Assembleia Geral que presidi. Agradecer ao Pedro, o meu eterno companheiro por me ouvir e me orientar sempre. Agradecer à Marta Pena e ao Leandro Pinto por serem os meus guias no início de mandato. Agradecer à Rita e à Ana Sofia, por serem uma equipa formidável, única e unida. Agradecer ainda a todos aqueles que me ajudaram e encorajaram a nunca desistir, a sempre persistir mesmo quando o que queriam era afastar-me. A todos eles, o meu obrigado do fundo do coração de um madeirense que tem eterna saudade da sua terra. Bem-haja a todos.

  • Lembro-me que... versão Gala Lex

    Maria Leonor Baptista Lembro-me que estava a pôr os brincos e a minha amiga estava a esticar o cabelo. Lembro-me do nervosismo no fundo da barriga, mas depois éramos só nós as 3 a rir num carro e a ir ter com os nossos amigos. Os amigos fáceis, que não era preciso pedir conselhos, que eles próprios vinham ter connosco, as "irmãs" mais velhas e as madrinhas. Os vestidos e a música inebriante. Lembro-me que vi copos na mão e alguns a cair no chão. Lembro-me que sonhei que a gala continuava já depois da gala terminar. Lembro-me que… António Subtil Lembro-me que estava tudo muito turvo, a não ser alguns amigos e amores, a que chamamos de família. Sofia, minha irmã mais culta e mais lerda, chamando-me para receber o prémio que ela ganhou com ela, dedicando-me. Tola. Fofa. Beatriz, minha nova irmã, dizendo-me que não me roubaria a minha madrinha. Tola. Fofa. A Mello é demasiado especial para só ser minha. Maria, minha filha, na casa de banho, preocupando-se. Tola. Fofa. Não te preocupes, minha filha, enquanto eu cá estiver, tudo farei por ti, nenhum mal te tocará. Eu não acredito na Família. Não fui educado para tal. E ainda assim, este sítio, esta praxe, deu-me-vos. Sofia, Beatriz, Mello, Maria, família. Amo-vos. Sofia Dias Lembro-me da mala cair ao chão, porque a estraguei e da Isabel a arranjar, lembro-me dos 3 cigarros (ou se calhar foram 4, 5? Não, 5 não podem ter sido), lembro-me dos copos de vinho no início, lembro-me dos copos de água com a Sofia no fim, lembro-me das flores dela, lembro-me da câmara da Bea, lembro-me do elástico da Mello, lembro-me do casaco do António. Acho que é mais fácil recordar os momentos quando estávamos a segurar nalguma coisa. Por exemplo, lembro-me de falar com o Rafa e de ele ter o meu prémio na mão enquanto eu me calçava, porque tinha perdido os sapatos (andei a correr atrás dele na relva, não sei por que razão e fiquei sem eles). Já calçada, ele disse-me: “Então, não queres o teu prémio?”. Acho que peguei no lex e o encostei contra ele e disse algo ao longo destas linhas: “Sabes, isto devia ser teu. E eu sei que isto não interessa para nada, estes prémios não significam nada materialmente, não dizem nada sobre a tua inteligência. Mas, merecias mais que eu. O problema é que és totó por não exibires a tua intelectualidade e a esconderes. Ignora-la até (sinto que não fiz a pronominalização correta na altura). Por isso, fica com ele, não o quero.” Este foi o último momento em que me lembro de ter aquilo na mão, nunca mais vi o prémio desde aí. Ved Lembro-me que estava a jantar com os meus amigos e, a dada altura, acabei deitado num sofá aleatoriamente. Lembro-me que tive uma conversa fantástica com alguém, mas não sei quem, nem faço ideia do que falamos. Rafael Guerra Lembro-me que estávamos todos com frio no início. Lembro-me que quando descemos do jantar todos o perdemos algures. Lembro-me das nódoas de vinho em todas as calças, casacos, camisas e vestidos; e lembro-me dos sorrisos urdidos em embriaguez e descomprometimento. Lembro-me de a Laura estar deslumbrante, e de o ficar tanto mais quanto mais tempo olhava para ela. Lembro-me de gritar quando a Gi e a Sofia ganharam os prémios. Lembro-me de o discurso do Professor Filipe Brito Bastos envolver troça do monopólio que o Professor Miguel Moura tem sobre os prémios Lex. Lembro-me do amor. O álcool faz-nos disso. Algum sítio cá dentro haverá para onde isso tudo vai; espero nunca perdê-lo. Inês Fonseca Lembro-me que abracei mais pessoas naquela noite do que na minha vida inteira. Lembro-me de ter julgado o tamanho das porções de comida, sem saber que seria essa mesma quantidade que ia almofadar a queda do álcool no meu estômago. Lembro-me de ter chegado ao final da gala e ainda existirem as corajosas, de saltos, com os pés arruinados. plenas e belas. Lembro-me que os sofás exteriores foram ponto de convívio. risos, mimos, conversas, bebidas (e outras coisas) partilhadas. Mello Lembro-me que a Isabel entrou no meu carro no meio do caos, e fui deixá-la a casa. Numa viagem de 10 minutos, não falamos de nada, e falamos de tudo. Chamei-lhe filha. Chamou-me mãe. Não significou nada. Nada, para além de que temos carinho uma pela outra. Lembro-me que a Sofia Dias tinha o vestido digno de uma pintura. Como a primavera, como os lagos da minha terra. E ele caía de vez em quando. Tentei ajeita-lo. Ela disse que estava mal. Pouco depois, senta-se ao pé de mim e pede que encontre o botão certo para o prender. Não havia botão. Tirei do meu ultimo elástico de cabelo e amarrei o vestido. Ela beijou-me a face. Disse que tinha muito amor por ela. Lembro-me que toquei no braço da Beatriz Jesus ao passar por ela. Ela chamou por mim várias vezes. Virei-me, e ela pegou-me na mão. Encostou-me perto da parede, e garantiu-me que não estava bêbada. Pediu-me em madrinha. Chamou-me gentil. E levei as mãos à cara — em choque. em felicidade. em incredibilidade. Acenei que sim. Acenei que sim. Abraçamo-nos. Ela tombou o meu copo de gin com o pé. Gritei de felicidade. Lembro-me que não queria beber durante o dia e tinha frio. Estava ansiosa. Era tudo demasiado. A Margarida Mouquinho pediu-me para lhe fazer companhia na casa de banho. Ficamos juntos um longo tempo, longe de todos, longe do barulho. Só nós. Ela no vestido vermelho de princesa, e eu com o meu véu negro. Senti-me segura. Senti-me feliz. Lembro-me que a Sofia Paulino tinha perdido a flor da pulseira dela. Rosa e branca. Ela estava triste por isso. Franziu as sobrancelhas e fez uma cara de choro na brincadeira. Voltei para a nossa mesa e olhei para o chão — lá estava ela. Atravessei a sala para a entregar. Ela refez a cada de choro, desta vez por emoção real. Agradeceu-me — pela flor, e por ter me conhecido. Disse-lhe que tê-la na minha vida era uma sorte. Abraçamos-nos.

  • Quando o tacho é grande, todos querem de lá comer

    É regra das faculdades de Direito a formação de pessoas com grande capacidade crítica, e, diga-se desde logo, que qualquer jurista que se preze consegue sair da sua bolha político-social para refletir não só acerca do mundo que o rodeia, como da sua própria condição enquanto participante da sociedade. Ao fim de algum tempo a frequentar os corredores desta casa, e já sem a êxtase da novidade e do falso sentido de poder que ser estudante de Direito cria nos mais deslumbrados, consigo hoje reconhecer em mim sentido crítico suficiente para identificar os pontos mais fortes e os mais fracos da instituição que escolhi para me formar. Embora haja pano para mangas no que toca a pontos fracos, há que admitir que a Nova Direito continua a ser uma, senão a melhor, faculdade de Direito do país – uma Universidade pública, contemporânea, livre de assédios, e que se preza pela inovação no ensino e nas matérias que oferece. Fora esta análise de questões estruturais de quem já muito viveu nesta escola de Direito, há uma outra questão que se tem vindo a instalar na comunidade estudantil e que salta cada vez mais à vista – intenções políticas não declaradas. Apesar de ser grande apologista da liberdade de expressão e do confronto direto com controlo de danos, passou a ser difícil ignorar o palco que se insiste em dar a uma politização maldosa daquilo que é o ensino e cultura da nossa faculdade. Por mim falo, que aqui escrevo para que alguém leia e se identifique com a minha causa. Embora saiba que a vida é politizada e que quem não o é, é porque vive confortavelmente o suficiente para não precisar de o ser, custa sempre engolir que campanhas feitas à volta dos valores mais fundamentais de um estudante, não passam de uma mera manobra populista para se conseguir um pouco de destaque fora do mundo académico, e bastante atenção dentro dele. Jogada atrás de jogada, as peças mais populares vão limpando o tabuleiro neste jogo minucioso e complexo que é o xadrez da carreira política. Ao fim ao cabo, parece que não existe uma grande vontade de contrariar aquilo que tanto se critica – continua a ser nas faculdades de Direito que nascem a maioria dos políticos governantes. Desde a Associação de Estudantes a núcleos da mesma, vão surgindo como cabeça de cartaz figuras que estabelecem subtilmente paradigmas ideológicos na sua (pouca e medíocre) atividade – vão se levantando as bandeirinhas até que o público-alvo aplauda de fora, enquanto se atira areia para os olhos dos eleitores ao tentar dissimular as suas decisões mais questionáveis. Parece-me que está lançada a ideia de que isto é uma guerra e que alguns são mártires que dão o corpo ao manifesto pelos direitos dos estudantes. A guerrinha foi declarada: os estudantes contra o sistema. Mais complicado é constatar que efetivamente a guerra tem dado frutos – nem se viram mudanças significativas, nem se manteve o compromisso de atividade de qualidade a que estes mártires se propuseram. Não vendo resultados nem novas dinâmicas na esfera da comunidade estudantil, toda esta revolta só me leva a crer que é quase certo que os resultados estejam na esfera individual de alguém. No meio de tantas publicações indignadas, protestos legítimos, e campanhas revolucionárias, dou por mim estagnada exatamente no mesmo lugar – nem há novo conteúdo informativo de qualidade, nem há atividades que acrescentem algo de inovador aquilo que já foi feito. Dada a inércia da dita revolução, surgem boatos de falência, demissões, guerras pessoais, disputas de ego e, fundamentalmente, surge uma grande falta de prospetivas de futuro para aquilo que deve ser uma comunidade estudantil imparcial e livre. Como perspetivar negociações de paz com quem tem a faca e o queijo na mão se se insiste em odiar gratuitamente? Verdade seja dita sobre estes protagonistas: parecem vir a revelar-se pouco interessados nos momentos cruciais de decisão crítica e sensata, já que os seus olhos estão noutra meta. Já se sabe que quando o tacho é grande, todos querem de lá comer. Meus caros, as revoluções fazem-se com luta, alicerçadas de valores fortes, e sustentadas por aquela que deve ser uma realidade livre, mas acima de tudo, fazem-se por e com pessoas convictas e desprovidas de qualquer intenção que não a revolução em causa. Não é progressista derrubar ideais para os substituir por outros igualmente deficientes e contaminados, representados por pessoas que desejam mais do que qualquer revolução e bem comum estudantil, subir no pódio e gritar de cravo ao peito “Nós somos a verdadeira mudança”. Não é inovador pegar em problemas reais de estudantes reais, e fazer com eles campanha para carreira política. E, por fim, como qualquer bom político deve saber, não é revolucionário tentar sabotar relações diplomáticas com instituições que não se pautam pela opressão. Tudo isto não é revolucionário, é reacionário.

  • Portugal joins the list of countries that practise postmortem insemination

    A Portuguese woman, Ângela Ferreira, has been able to get pregnant in 2023 trough postmortem insemination. Her husband, Hugo, passed in 2019. Insemination is a medical procedure that consists of retrieving sperm from a donor and implanting it into the uterus of a woman. Studies about artificial insemination have circulated for over four centuries. However, a more complex ethical issue in this area is postmortem insemination. Postmortem insemination as the name suggests, consists of an insemination procedure which resorts to the semen of a deceased person. This issue makes its first appearance in 1981, with the Parpalaix case. The legal decision of the Judicial Court of Créteil triggered a legal conversation concerning this controversial topic, by allowing Corrine Parpalaix to conceive a child using her deceased husband’s sperm, who had cryopreserved it before starting chemotherapy. Since this milestone within the mentioned controversial issue of postmortem insemination, few other countries, like Spain, Belgium, and the UK allowed the practice. In Portugal, in 2019, Ângela Ferreira filed a petition when she faced hardship due to a gap in the existent law, that goes back to 2006. The applicable law, in Article 22, mentioned “postmortem insemination” to only allow embryo transfer. Due to this, Ângela could not fulfill her and her husband’s dream of having a baby. This gap most likely came from the ethical concerns surrounding this procedure. i. A first concern pertained to the intentional will of creating a life, without the father being alive, that is a person that yields a significant impact on a child’s development and that cannot be entirely replaced by someone else. ii. Secondly, there were succession issues following this type of insemination since the birth occurs after the death of a parent. Portuguese law failed to regulate the succession rights of the person that is still to be born, making it difficult for them the access to inheritance rights. Related to this aspect, there is the possibility for the mother of the child to use this gap as a tool to gain direct rights to the inheritance. iii. In addition, some scholars, such as Vera Lúcia Raposo and Eduardo Dantas1, have also put forward concerns in relating to the dignity of the deceased person. In 2021, Ângela Ferreira, alongside with thousands of other citizens, managed to advocate for and obtain the passage of a new law. This law allowed postmortem insemination and tackled many of the aforementioned issues. First, in order for a woman to be able to use her deceased partner’s sperm, there must be a clear parental project and the explicit consent of the dead person, mitigating the risk of circumventing the will of the deceased person. Thereby, the child that could be mentally affected for being fatherless, manages to quickly overcome this by knowing that arises from a strong desire of two people who love each other. In the words of Marcel Gauchet, “the more a child is the result of an invention opposed to the nature, the more is wanted”. As to the succession issues, the law states that this procedure can only be carried out within three years from the date of death and that inheritance has to remain unclaimed until the birth of the child, thereby assuring the protection of the succession capacity of the concepturo. However, some questions remain open, such as the rights of the unborn child, that might be seen as just an object of a desire rather than a life itself. Some scholars, such as Paula Martinho da Silva and Marta Costa2, defend that the birth of a child in these circumstances would put in a secondary position the superior interest of the child, for the benefit of the interest of the parents. Therefore, in some extent, we would witness a violation of the principle of human dignity. Furthermore, should the mental state of the woman that is going to a grieving process be evaluated, in order to understand if there is a legitimate reason to go forward with this procedure? Or is the child being treated as a replacement for the love of the deceased partner? Leaving aside these brief remarks, what we know is that Ângela Ferreira became pregnant in february 2023, with the sperm of her late husband. Her baby, Guilherme, will be the first Portuguese baby legally born through postmortem insemination. Research conducted within the Jean Monnet Module EU Family Law held at NOVA School of Law. NOTES: 1. Raposo, Vera Lúcia and Eduardo Dantas, 2010. “Aspetos Jurídicos da Reprodução Post-Mortem, em Perspectiva Comparada Brasil- Portugal”. In Lex Medicianae- Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Separata, edited by Coimbra Editora, 7(14): 84. Acessed May 1, 2023. 2 Martinho da Silva, Paula and Marta Costa, 2011. A Lei da Procriação Medicamente Assistida, Anotada e Comentada (e legislação complementar). Coimbra Editora, 119. Acessed May 2, 2023. P

  • Clube de Leitura - "Flecha", Matilde Campilho - textos (parte I)

    INÊS FONSECA Noite. Silêncio no quarto. Uma só pessoa dentro da divisão, na companhia das suas memórias. Os anos passam, as feições mudam, vêm as rugas, mas aquilo que se guarda a sete-chaves, a sete-chaves fica. Idades congelam no tempo, e na arca frigorífica permanecem os desenhos, os escritos, os bilhetes, as fotografias… O monstro surgiu no papel, e para a memória passou. Pobre monstro. Nem faz ideia da importância que carrega para o rapaz. Numa só folha de papel, ele consegue observar o que fora e o que dentro de si continua a viver. Basta um pequeno lamiré direcionado ao monstro, para que o rapazinho que o desenhou retorne a casa. Para que pelos corredores se ouçam as imitações rascas de ruídos de motores de carros e motas; para que haja um nova luta pelo fim da sopa na tigela; para que os chupa-chupas pós-dentista tenham um sabor mais doce. Tudo para que as cores do mundo ao seu lugar se posicionem, para que menos um humano seja daltónico. Com certeza, depois de dada por terminada a obra-prima, o seu autor se ergueu das suas pernas-à-chinês, e com rapidez, passou por cima do mikado formado aleatoriamente pelos lápis de cor, e em direção aos seus pais foi. “MÃE! Olha o que eu fiz!” “PAI! Gostas? Fiz-lhe um bigode igual ao teu!” Conhecendo a essência de progenitores babados como conheço (e ainda bem que assim o foi/é), o monstro antes de figurar na parede do rapaz, possuiu papéis importantíssimos no teatro elaborado pelos demais desenhos presentes no frigorífico. Criou-se, ali, naquela tarde enfadonha, um melhor amigo de papel e carvão colorido. Aquele dia, numa cápsula intemporal, ficou. O rapaz foi crescendo, sob olhar atento do seu monstrinho. Ia ao frigorífico buscar gasolina para o seu corpo, e deparava-se com o ser que criara. Só lhe faltava falar. Dizer: “Devias pedir desculpa à tua mãe, ela só quer o melhor para ti” ou “Tenta ajudar mais os teus pais” ou “Já ligaste aos teus avós hoje?”. Há certas coisas que passam despercebidas no dia-a-dia do menino, afinal 24 horas não chegam para tudo, amanhã também é dia. Mas, e se não for? O monstro vai continuar pendurado pelas orelhas algures? Os avós vão continuar a preparar o almoço perfeito, que deixa qualquer um a rebolar de uma cheiura prazerosa? Tantas questões que surgem para a passagem do tempo, que infeliz ou felizmente, não é problema para o monstrinho. Os anos passam por ele, vê o jovem em adulto se tornar, e só ele continua naquela folha, depois de muitos piratas e cowboys enfrentar. Bem é precisa a reforma, mas uma reforma conjunta, onde pode discutir com o rapaz como foi o seu dia, ou o que se passou entre ele e os seus amigos… O monstro não faz parte dos amigos do menino. Um dia, fez, mas esse dia não é interminável. O autor seguiu com a sua vida, e por cima da criatura, outros posteres mais atuais foi colocando. Às tantas, a vista periférica do monstro eram folhas de papel, já não fazia jus ao seu bilhete de fila da frente para o dia-a-dia do jovem (talvez precisasse de reclamar um bilhete novo). O monstro pensa que o seu fim chegou. Apercebe-se que não se lembra da última vez que viu a cara do rapaz, ou da última vez que com ele partilhou lágrimas e risos. Porém, ele não pode desistir agora. Não agora, monstrinho. Aguenta firme só mais um tempo. No silêncio da noite, o rapaz vai lembrar-se do que fora. Dos seus hábitos estranhos, que teve de abandonar pela aceitação da sociedade; dos seus truques de magia (fracos, mas, ensinados pelo pai); dos seus gostos incomuns (como comer pão com banana); e até do nome dos seus antigos melhores amigos. E dentro desta lista, tu vais aparecer com um sublinhador amarelo fluorescente. Vais gritar, sem usar a tua voz “EU ESTOU AQUI! E SEMPRE ESTIVE!”. E dos olhos do rapaz, lágrimas escorrerão por ver o que perdera, por concluir que a sua única existência, nem a si retornará. A ti, ele se agarrará, e em súplicas, por entre murmúrios, dirá “Perdoa-me, monstro”. Tão pouco o menino sabia quando o desenhou, como sabe agora. Só há uma certeza na vida, e ela foi a certeza que ele precisava para a energia e a ingenuidade infantil recuperar. Desde então, o monstro (bastante viajado, deixe que se diga), do frigorífico à parede foi, e de momento, encontra-se na carteira do rapaz, que sempre que a abre, sente o coração a aquecer com a presença do seu eu pequenino. Guardemos um lugar à lareira para a única pessoa que devemos orgulhar: o nosso eu que pensa que a Dora nos ouve (e é, simplesmente, cega); o nosso eu que gosta de espetar o dedo nos restos de massa de bolo, e lamber até ao osso; o nosso eu que tinha genica suficiente para acordar mais cedo que os galos, só para ver o que quer que estivesse a dar no zig zag; o nosso eu que dizia “XAUuUUuu” aos aviões que nos sobrevoavam. Está na altura de recuperarmos os nossos monstrengos, e sobrepô-los aos posters dos tenistas de ‘81. ISABEL COSTA Porque é que haveremos de fugir ao que nos dá liberdade? Aquilo que nos faz ganhar asas e voar para um qualquer patamar apenas imaginado nos mais belíssimos filmes; aquela nossa parte mais movediça que nos obriga a aspirar ser algo mais, que nos rouba o chão e pinta no seu lugar uma escadaria para o desconhecido; enfim, aquelas partículas inovadoras que compõem a nossa coragem. Porque é que haveremos de apagar essa parte inebriante do nosso ser e a tingir de medo? Porque é que nos haveremos de tornar meros corpos lívidos a flutuar na nossa (in)existência nos escassos anos que a temos? Porque é que haveremos de deixar a pessoa repreensiva que vive em nós (leia-se, o cadáver anêmico em que nos tornaremos) vencer o rapaz com a fisga no combate interno pela nossa personalidade? E transformar esta nossa parte cintilante num banal herói incompreendido, refugiado na pele de aventureiro acriançado que sucumbiu à loucura? O medo do ignoto estampa o selo da loucura em tudo o que seja minimamente díspar, marcando-o como hostil e rebelde; porém, a própria História já ditou que é apenas debaixo da asa desta excentricidade que o mundo se altera e evolui. É naqueles que se recusam a seguir o status quo que o futuro emerge e só com estes poderá ele ser uma realidade. Assim, acho que só resta uma nota final: Meus amigos, se dizem que viver já é, só por si, ser louco, porque é que haveremos de ficar por aí? Eu digo que mais vale almejarmos à grandeza (e, claro, à pura insanidade) Para quê viver com medo do desconhecido se é nas nossas singularidades que encontramos as cores belas que o céu esconde, se é nelas que ouvimos as vibrantes sintonias dos jardins escondidos, se só assim somos capazes de saborear os frutos deleitosos que os nossos próprios preconceitos nos vedam? Quanto de nós encontramos no rapaz com a fisga? E na senhora que o repreende? ANTÓNIO SUBTIL Eu, provavelmente, Fodia uma árvore. Já mijei numa. Ambrósio, chamei-a. Porque não? Não havia casa de banho Era escuro e Vai morrer o mundo. Fodia uma árvore. E fodia um mar, E fogo e terra-pedra Turma e família Império além-porra. Tudo fodia. Porque não? Já fodi tudo: Fodi a minha vida.

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