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  • A Importância da Representatividade

    Quando éramos crianças, ansiávamos pelo momento em que acordávamos às 7h da manhã e nos dirigíamos à sala de estar para ver desenhos animados. H20, Gormiti, Power Rangers, Porquinha Peppa, Oliver e Benji. Vibrávamos com cada segundo dos seus episódios. Uns anos depois, recordamo-los nostalgicamente, mas, por vezes, não nos apercebemos que até esses, e sobretudo muitos outros, começaram a moldar-nos enquanto pessoas. Num mundo em constante algazarra, onde se demorares 2 horas a ler 50 páginas de um livro de Direito Administrativo te culpabilizas pelo tempo que despendeste, apercebendo-te que devias ter tirado apontamentos ao longo da leitura e que, por não o ter feito, terás de te safar de outra forma caso contrário serás condenado à leitura das mesmas 50 páginas por mais 2 horas da tua vida; nunca valorizámos tanto os nossos momentos - também eles urgentes - de lazer. Estes passam, precisamente, pela visualização de um filme, de um episódio de uma série, de um vídeo no YouTube (ou muitos, porque é sempre “só mais um e depois vou estudar”), ou pela leitura de um livro. No entanto, já pararam para pensar que dessas séries, filmes e livros vamos captando as aparências, maneirismos e falas das suas personagens, seja consciente ou inconscientemente? Quantas vezes veem o casal heterossexual composto por um homem branco gerente de uma empresa e uma mulher branca que trabalha num salão de beleza nas novelas nacionais? Quantas vezes veem as irmãs gémeas separadas à nascença que se tornam inimigas? Quantas vezes veem o rapaz homossexual, branco, magro, histérico e fofoqueiro? Quantas vezes veem a mulher das limpezas, negra, pobre e obediente? Fruto desta mal representação, são estas imagens e perceções que ficam incutidas na nossa mente e que transparecem nas nossas atitudes. É exatamente essa representação irrealista, distorcida e perversa que tem efeitos depreciativos em muitos indivíduos abrangidos por essa representação sem representatividade, desde uma falta de um sentimento de pertença, de inclusão e, ainda, o desenvolvimento de doenças como distúrbios alimentares, (não só, mas também) motivadas pelo facto de apenas se verem - generalizando - raparigas magras e rapazes musculados. Ou, por exemplo, o clareamento da pele numa tentativa de corresponder aos padrões de beleza que a sociedade nos impõe. A criação de estereótipos podres, cada vez mais enraizados e com uma fundação tão sólida que tornaram árduo (mas possível) desenterrá-los por completo. O surgimento de um efeito dominó, sendo que essa representação infiel por parte dos media força a que as expectativas, esperanças e sonhos das crianças se encolham, normalizando preconceitos e rejeitando a realidade; acompanhando-as ao longo do seu crescimento. Enfim…, mas quem sou eu? Não tenho qualquer formação nesta área, apenas dois olhos e um coração. Acredito que a representatividade efetivamente contribui para a construção da identidade e do autoconhecimento. Confere poder de autodeterminação, faz com que acreditem que têm potencial, motiva a confiança. Ajuda a sentirem-se compreendidos/as. Incentiva a um diálogo aberto sobre os seus problemas. Combate a discriminação. Quanto é que isso não vale? Quando programas cheios de conteúdo fútil, como a “Ex-periência”, contribuem para o reforço desses estereótipos, neste caso, de género e que possuem 0 representatividade, nomeadamente, queer e negra; nota-se a urgência da mesma em Portugal, como em muitos países que ainda têm muito a percorrer. Quando vemos que as mulheres latinas ainda são percecionadas como donas de casa boazonas sem competências para “trabalhos sérios” e que personagens como a da Sofia Vergara em Modern Family contribuem para tal, é que finalmente percebemos a necessidade da inclusão da diversidade. Porém, felizmente, nos últimos anos, esta questão tem vindo a melhorar. São séries como HeartStopper, Ms.Marvel, Sex Education, Dear White People, The Fosters, Good Trouble e Love, Victor que, na minha opinião, têm contribuído para o virar da página deste paradigma. Algo que ainda é preciso aplaudir, apesar de não dever ser. Cada vez mais existe maior representatividade nas assembleias e parlamentos, e ainda bem, porque esta mudança é mais eficaz (através da aprovação de leis que conferem direitos ou estatutos que se revelam groundbreaking e exemplo para outros países) do que uma mudança de mentalidades, que, infelizmente, demora eternidades. Isto é, numa primeira instância, leis de paridade e quotas nos parlamentos e em empresas assegura que, pelo menos a curto prazo, exista alguma representatividade – embora parca – que poderá abrir asas a alguns avanços que, posteriormente, poderão resultar nessa tal viragem de arquétipo. Claro que não se pode imputar tudo e todos pela gravidade deste problema; afinal, sem quaisquer candidatos LGBTQIA+, negros, ciganos, indígenas, muçulmanos, latinos, mestiços, etc., para a indústria de Hollywood, para cargos políticos, para as empresas, ou quando têm menos competências, não podemos apontar dedos aos diretores de casting, aos partidos políticos e aos diretores das empresas – é uma questão de escolha dentro dos possíveis candidatos, claro, quando não é exequível a procura. A ideia de contratar/escolher pessoas exclusivamente para aumentar a diversidade na empresa, por exemplo, não se afigura eficaz porque deturpa o objetivo da representatividade e configura um sentimento de hipocrisia perante a entidade em questão. Mas é nos casos em que têm mais competências que as empresas, que os partidos políticos e que os diretores de casting devem atuar, deixando os preconceitos fora da sala de decisão e escolhendo realmente quem tem mais capacidades. Para além disso, as estruturas de poder dos media devem reconhecer o papel que têm nesta perpetuação do ciclo da discriminação e em todas as camadas que esta pode revestir, de forma a tomarem uma diferente abordagem em relação a todo este problema. Não que isso seja o suprassumo medicamento, claro, mas indubitavelmente ajudaria. Para terminar, proponho que cada um de vós, no vosso quotidiano, se questione acerca dos vossos preconceitos, suas origens e soluções, quer a curto quer a longo prazo, porque, a meu ver, é esse constante questionamento que fará com que as atitudes e os agentes da mudança efetivamente façam a mudança. NOTA DO AUTOR Com a elaboração deste texto apenas pretendo consciencializar o quão importante é a fiel representatividade porque influencia as nossas atitudes, comportamentos, viés e preconceitos. Não pretendo ferir quaisquer suscetibilidades das minorias, aliás, pretendia dar voz às mesmas e propor possíveis soluções relativamente a esta questão, após demonstrar o meu ponto de vista.

  • Mergulho da Próstata

    EPISÓDIO POEMA ESCOLHIDO A Água "Meus senhores eu sou a água que lava a cara, que lava os olhos que lava a rata e os entrefolhos que lava a nabiça e os agriões que lava a piça e os colhões que lava as damas e o que está vago pois lava as mamas e por onde cago. Meus senhores aqui está a água que rega a salsa e o rabanete que lava a língua a quem faz minete que lava o chibo mesmo da raspa tira o cheiro a bacalhau rasca que bebe o homem, que bebe o cão que lava a cona e o berbigão. Meus senhores aqui está a água que lava os olhos e os grelinhos que lava a cona e os paninhos que lava o sangue das grandes lutas que lava sérias e lava putas apaga o lume e o borralho e que lava as guelras ao caralho Meus senhores aqui está a água que rega rosas e manjericos que lava o bidé, que lava penicos tira mau cheiro das algibeiras dá de beber ás fressureiras lava a tromba a qualquer fantoche e lava a boca depois de um broche." - Bocage

  • Mergulho Profilático - Ep 2

    EPISÓDIO POEMAS ESCOLHIDOS "A dor é inevitável O amor é eterno! Partida não significa perda Vimos um barco no mar Deixamos de o ver, mas ele continua a Navegar" - Etelvina 4:40 "comportamento errante foi por isso que ele a deixou comportamento errante e hoje aqui estamos 4:40 num bar onde as casas de banho se transformam numa espécie de casa de fados em cocaína eu só bebo mas ainda assim inegável a beleza destes microclimas: fados no wc espelhado de um club onde só passam techno o saxofonista de jazz apanhado a dançar diz que gosta esta repetição em loop de alguma forma recorda-lhe coltrane hoje vim aqui à procura de alguém que não estava mas há o nietzsche, ele escreveu qualquer coisa sobre o desejo da necessidade a necessidade do desejo (demasiado tarde para o citar em condições) nos fados é obrigatório o desalento e por isso a elaine dizia 98% dos dias não sei o que faço aqui a sara dizia a mim só me apetece chorar e ela não falava da nostalgia do fado de beber demasiado e tudo junto referia-se sim a uma cicuta diária essa espécie de vazio inconsequente e por isso interminável. teimosamente fingindo saber o meu lugar no mundo ignorante de bençãos coroada de amores sádicos mas tentando recuperar as tropas eu agarrava o copo e explicava, ainda que pisando armadilhas, falhamos mas estamos aqui falhamos mas olha para nós tantos gatilhos que nunca chegámos a apertar isso só pode ser uma vitória uma meta que nunca ninguém anunciou quem eu queria não apareceu mas olha só estou em casa sã estou em casa salva e afinal não é o amor que resgata sou eu e o táxi que conseguiu aparecer apesar da chuva torrencial falta dizer o que ninguém diz destas mulheres é que a solidão é o preço a pagar pela resistência: às vezes seria mais fácil aprender a brincar às donas de casa ignorar o patriarca debaixo do tapete e os anelares encontrados debaixo da ponte mas é mais difícil matar um potro que não foge em sentido único e desse ponto de vista o que nos mata será também a única salvação. sabes, o que não se diz nunca sobre a errância é que quando se diz errância diz-se sobre tudo: liberdade." - Francisca Camelo

  • FACULDADE, E DEPOIS DE TI? – PARTE III

    NOTA DO AUTOR: Com esta terceira parte, concluo o que foi o meu Trabalho Criativo da disciplina de Introdução ao Direito e ao Pensamento Jurídico. Deixei a minha favorita para o final: a entrevista à Dra. Ana Margarida Santos, Senior Partner da própria firma, e que foi, até recentemente, Conselheira na Superior da Ordem dos Advogados. Especialista na área de Direito Fiscal, (quase) sempre trabalhou com instituições bancárias. Considero esta a minha entrevista favorita uma vez que esta senhora é uma pessoa que admiro muito, que sempre esteve disponível para o que precisei e que já tive o privilégio de ver defender os seus clientes e as suas causas. Assim sendo, o último agradecimento é para esta incrível profissional, que nos deixa entrar um pouco no seu mundo, não deixando de fora nem o bom, nem o mau. FJ: Olá Doutora. Em primeiro lugar queria agradecer-lhe por ter aceitado o meu convite. A primeira pergunta que tenho para lhe fazer é a seguinte: Licenciou-se na Faculdade de Direito da Universidade Lusíada de Lisboa. Como foi a sua experiência enquanto estudante? Ana Margarida Santos (AMS): Eu é que agradeço o convite. Dos três aos quinze anos, andei num colégio, a Academia de Música de Santa Cecília. Ora, como pode imaginar, nada conhecia da vida. Quando aos quinze, passei para um liceu, o Liceu Rainha D. Leonor e, aí, só fiz disparates. Tanto que só fiz disparates que não consegui ter média para as melhores faculdades de Direito na altura, a FDL e a Católica. Assim, acabei na Universidade Lusíada de Lisboa. Chumbei 2 anos, e saí do curso a sentir que não sabia absolutamente nada. Era um curso extremamente teórico, sem nunca sequer me ensinarem como fazer um requerimento, uma petição inicial, nada. Nos dois últimos anos de curso, trabalhei como paquete num escritório, onde aí sim ganhei experiência. Fiz, após o curso, uma pós-graduação em Direito Fiscal no ISG. Isto em 1995. FJ: Após esta pós-graduação, começou o estágio, correto? AMS: Exatamente. Fiz um estágio com um patrono, um amigo do meu pai, mas logo me fartei e, por isso, pedi ajuda a uma amiga, para trabalhar com ela. Na altura, ganhava 30 contos por mês, o que me dava apenas para o combustível no meu carro. Eram 5 advogados que geriam o escritório. Ao fim de um ano, já estava a receber 500 contos, mas dormia 6 horas por dia. A dada altura, este conjunto de 5 advogados transformam-se numa sociedade, e fazem-me uma proposta para ser sua associada. Eu recusei, e decidi abrir a minha própria firma, com uma amiga e uma solicitadora. FJ: Como foi este processo de abertura de firma? É a firma onde estamos agora? AMS: Não, não é. Estamos a falar de 1998, firma onde estamos agora foi aberta em 2005. Em primeiro lugar, deixe-me que lhe diga que o mais difícil na nossa profissão é que temos duas opções: ou vamos trabalhar para uma sociedade, ou abrimos a nossa, e aí a principal dificuldade é arranjar clientes. Não havia clientes. Assim, quando um amigo do meu pai me oferece um trabalho de solicitadoria, disse que sim, apesar de que 90% das pessoas teriam dito que não. Aí sim comecei a gostar da gestão da advocacia. Fiz de tudo, registos nas conservatórias, entrega de distrates, entre outros. FJ: Ora mas após esta “pausa” na advocacia, começou a trabalhar com instituições bancárias, certo? AMS: Certo. Em 1999, foi me proposta uma avença no banco com três processos judiciais, a qual eu aceitei, e um ano depois fui convidada para ficar como advogada nesse banco, que na altura já era um banco internacional. Tinha cerca de dez mil processos. Passado um tempo, começo a ter avenças com outras empresas. A equipa começa a crescer e em 2003 sou convidada para restruturar o departamento de desinvestimento (os imóveis que o banco revende) do banco onde estava. Tivemos que pegar em todos os imóveis, e analisá-los um a um. Em novembro de 2004, fui eu que organizei o primeiro leilão imobiliário através da banca em Portugal. Um ano depois, criei uma sociedade com o meu ex-marido e outra colega, sendo eu a principal sócia. Esta sim, a firma onde estamos agora. Tínhamos cerca de 12 colaboradores. AMS: Em 2007, a convite do presidente de um outro banco, crio um departamento de desinvestimento nesse banco, com outras 6 pessoas. Nesse mesmo ano, tenho um esgotamento, um burnout, algo tão comum entre os advogados e, por exemplo, os gestores. Tive de ficar de baixa durante 3 meses, e quando informei alguns colegas nos bancos, um pouco recetiva e tímida, o que me disseram foi: “Que sintomas tiveste? Ando a sentir umas coisas esquisitas.”, o que mostra o quão frequentes são estes acontecimentos. Após estes 3 meses, não consegui recuperar, e, portanto, fui para a Galiza 15 dias sozinha, para longe dos meus filhos, e só aí melhorei. Passados dois anos, em 2009, divorcio-me. Termina-se a sociedade, ficando só eu, e apercebo-me que o meu ex-marido me deixou cheia de dívidas. Voltei à estaca zero. Isto coincide com a crise do Subprime, pelo que volto a trabalhar muito com a banca, mas os meus principais clientes agora tinham falido. AMS: Mais um ano se passa, e em 2010, recebo outra proposta, de um terceiro banco, onde fiquei cerca de 3 anos. Note que nunca deixei os outros, portanto nesta altura trabalhava com 3 instituições bancárias. Em 2012, mais um banco me faz uma proposta, um dos com que me mantenho até hoje. Não chego a trabalhar com 4 bancos em simultâneo, uma vez que um dos bancos anteriores começa a pedir-nos para cometer umas irregularidades, algo com que não compactuei, e, portanto, larguei-o. FJ: Ora mas porquê o caminho pela própria sociedade? Não era convidada para as grandes sociedades? AMS: Era sim. Tive inúmeras propostas para grandes sociedades. Nunca quis. Atualmente, os clientes procuram um atendimento personalizado, um advogado que esteja lá para o cliente no matter what. Não querendo dizer que nas grandes sociedades isso não acontece, mas é mais difícil termos um atendimento perso-nalizado quando contratamos uma firma com centenas de colaboradores. O outro problema das grandes sociedades é que quando lá trabalhas, aquilo é como uma máquina, uma linha de montagem. Ou acompanhas, ou és engolido pela máquina. FJ: Para além de ser advogada, é Conselheira no Conselho Superior da Ordem dos Advogados. Em que consiste este órgão? AMS: Exato. Desde 2020, sou conselheira do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, sendo que o meu mandato termina este ano. O Conselho Superior é basicamente o órgão máximo jurisdicional da Ordem. Comparado ao Estado, seria como o Tribunal Consti-tucional da Ordem dos Advogados. Decidimos recursos a processos deontológicos, assim como processos de laudo – que são análises técnicas dos honorários dos advogados. FJ: Chegamos então ao fim desta entrevista. Que conversa esclarecedora! Muitíssimo obrigado.

  • Amante

    Acho que sou um mau namorado. Certamente serei. Deixo demasiadas coisas por dizer. Deixo sempre as palavras pela metade; há sempre um rastro de silêncio imperscrutável que caem de todas as palavras com que te escrevo (com que te beijo, com que te toco) – mas ainda assim penso que o que te digo se amontoa amiúde para sentires esta montanha vertiginosa de emoções que guardo em mim; esta montanha irrecuperável de silêncio enamorado. Se as palavras alguma vez pudessem dizer algo, talvez rogasse para que nunca desistisses de me escalar; talvez te suplicasse para nunca te desapaixonares pelas cores do meu silêncio. Bem vistas as coisas, talvez sejam as palavras que são más. Mas se é das palavras que somos feitos, talvez esteja condenado a ser um mau namorado – um namorado que fica sempre pela metade. Talvez eu não queira ser das palavras – penso que não é com as palavras que eu te amo; eu amo-te apesar delas. Eu amo-te com as mãos (as que te escrevem isto; as que mergulham amedrontadas na obscuridade do quarto [das palavras] à tua procura); eu amo-te antes de o dizer; eu amo-te antes de pensar; eu amo-te porque sou – porque és. Eu não tenho jeito nenhum para ser um namorado. O amor dos namorados é estéril – porque, no fundo, é tudo o que eles têm, o amor, que tentam a todo o custo fixar, prender, instituir (e o que institui mais que a palavra?). Eu desenho o teu nome na minha pele todos os dias, e ela apaga-a todos os dias – porque todos os dias tu és diferente; e todos os dias eu me apaixono por ti. Todos os dias as palavras que te descrevem são diferentes, e é talvez por isso que desisti de as tentar agarrar; de TE tentar agarrar – aprendi contigo que a melhor maneira de prender um espírito é libertando-o. Despe-me as roupas e coloca-nos à frente do espelho. Abre-me o peito ao céu e aprisiona os meus olhos à liberdade das tuas mãos – para o mundo somos iguais. Ou melhor: para o mundo EU sou igual a ti. Nunca serei um bom marido. Talvez porque não o queira ser nunca. Eu quero ser o teu amante – a pessoa para sempre situada fora da instituição; da realidade mumificada. O teu certo para sempre errado. O imprevisível. O livre. O verdadeiro. Aquilo que somos. Aprendi contigo que o verdadeiro amor nunca poderá vir das palavras, do conforto. Do conforto das palavras. O verdadeiro amor é o que quer que nós façamos dele. É o que a tua pele nua contra a minha desejar no momento. É o que os rasgos tresloucados da nossa paixão nos fizerem fazer em cada instante. O verdadeiro amor é tendencialmente perigoso – e eu aprendi contigo a não ter medo de arriscar. Aprendi contigo a ver no erro o epicentro da liberdade. Aprendi contigo a ver no interdito o espaço privilegiado da natureza pecaminosa do meu ser, e a não ter vergonha disso. Aprendi contigo a ser um mau namorado. Nunca alguma vez irei querer ser teu namorado ou teu marido. Eu serei para sempre o teu amante ( lover , amant , amante , liebhaber ).

  • Ontem sonhei que estava acordada

    Ontem sonhei que estava acordada. Sonhei porque sou humana, achei que estava acordada por mero engenho da minha mente: traiçoeira, gosta ela de me pregar partidas. Na verdade, não havia muita diferença: o mundo mantinha-se distante e reservado, exatamente como uma criança na presença de um desconhecido. Era rodeada por um ambiente descomplexificado, um tanto quanto descabido, por vezes. E eu notava, sabia que estava a sonhar, mas guardei esse segredo no maior abismo da minha mente, até me esquecer que, verdadeiramente, não estava mais consciente: deixemos a ilusão durar um pouco mais, expandir-se, modificar-se, tornar-se algo bonito talvez. E bem, bem eu sonhei que estava acordada, bem eu esperei algo de fantástico e inusitado acontecer: queria voar, mas, por sentir que estava acordada, os pés continuaram assentes no chão. E então ocorreu-me: e se fingisse que estava a sonhar dentro do meu próprio sonho de clareza? E se imaginasse que a minha consciência onírica dormia, quando o meu corpo já repousava há muito tempo? Mas não, permaneci enraizada ao chão, o corpo puxado pela gravidade fictícia: além de infiel, a teimosa não se deixa enganar por si própria. Que massada, não irei voar hoje, talvez noutro dia consiga ganhar asas. E que mente irrequieta, no entanto insuportavelmente realista: nem a sonhar consigo escapar ao martírio do dia-a-dia. Invejo aqueles que escapam, que têm sonhos cor-de-rosa, que se invadem do comum e previsível, viajam por terras desconhecidas e pouco lógicas, exploram e não se enraízam ao factual enquanto caem nos seus próprios devaneios. Esses, que não são como eu, são felizes, pelo menos enquanto sonham, dentro da sua bolha - uma válvula de escape ao panorama dececionante que é a realidade em que nos inserimos. Mas enfim, que fazer: não se voa, não se sonha cor-de-rosa, ainda menos a preto e branco. Por vezes um certo delírio decide fazer a sua visita, desestabiliza o outrora sono profundo e calmo, causa ondas na nossa consciência: mas mesmo os pesadelos têm um certo toque e efeito emocionante no espírito de alguém que sonha que está acordado. Mesmo quando acordamos num sobressalto, numa ansiedade de escapar aos medos e inseguranças que criamos inconscientemente, há algo de poético, há algo de empolgante, há algo de novo. E agora vem a desilusão: esperei, esperei um pouco mais, talvez não tenha esperado de todo - quem sabe como o tempo funciona do outro lado -, e tanta (ou nenhuma) espera, paciência e expectativa, e nada. Nada mudou, nada de extraordinário aconteceu, não se originou algo bonito (como outrora previ): continuei a sonhar que estava acordada, em todos os sentidos pragmáticos da coisa, com todas as cores aborrecidas, sons e cheiros normais do mundo. Acordei, já não sonhava que estava acordada, estava efetivamente de volta ao universo das coisas palpáveis e concretas. Olhando à distância, fui confrontada com a fadiga do mundo. Que aborrecimento, verdadeiramente não posso fugir de quem sou, e muito menos da realidade que eu própria ajudei a reproduzir. Ontem sonhei que estava acordada. Hoje, acordada, desejo estar a sonhar.

  • Mergulho Profilático - Ep 1

    EPISÓDIO POEMA ESCOLHIDO "A spirit moved. John Harvard walked the yard, The atom lay unsplit, the west unwon, The books stood open and the gates unbarred. The maps dreamt on like moondust. Nothing stirred. The future was a verb in hibernation. A spirit moved, John Harvard walked the yard. Before the classic style, before the clapboard, All through the small hours of an origin, The books stood open and the gate unbarred. Night passage of a migratory bird. Wingflap. Gownflap. Like a homing pigeon A spirit moved, John Harvard walked the yard. Was that his soul (look) sped to its reward By grace or works? A shooting star? An omen? The books stood open and the gate unbarred. Begin again where frosts and tests were hard. Find yourself or founder. Here, imagine A spirit moves, John Harvard walks the yard, The books stand open and the gates unbarred." - Seamus Heany

  • Rabisco Azul

    Fizeste um rabisco nas notas do meu telemóvel. Era meio de julho, íamos no autocarro lado a lado a voltar para casa para as férias grandes. Estava muito calor, mas saía uma brisa fresquinha de uma janela perto do teto, que fazia mexer, de quando em vez, um ou dois cabelos teus. Pegaste no meu telemóvel - como tinhas feito tantas vezes antes - e fizeste o tal desenho de criança. Eu nem percebi a forma que tinhas desenhado, mas lembro-me de pensar que o ia guardar para sempre: acho que o meu subconsciente sabia que era das últimas coisas que ia ter vindas de ti. Lembro-me de olhar para ti durante muito tempo nessa viagem, mas o teu foco estava várias vezes no teu telemóvel. Em aplicações novas. Em coisas novas. Em pessoas novas. A meio da viagem tiraste os fones da mochila, puseste um no meu ouvido - como tinhas feito tantas vezes antes - e puseste música a dar. Já não eram os teus fones com fios que costumavas usar. Estes eram com Bluetooth, e eu já não gostava tanto deles. Outra coisa nova. Já ninguém usa fones com fios. As pessoas só querem coisas novas. Disseste que me querias mostrar uma música – como tinhas feito tantas vezes antes – e mostraste. Abriste o Spotify e puseste a letra à minha frente; nunca to disse, mas tu já sabias que eu adoro ler as letras quando oiço música nova. Afinal, sempre foste a pessoa que sabe mais coisas sobre mim. Ouvimos música atrás de música e eu esforcei-me muito para perceber o que tentavas dizer com cada uma, porque nós só falávamos assim. Mas acho que nesse dia não estavas a tentar dizer nada. Acho que nesse dia as músicas eram só as músicas, e os significados já tinham sido gastos nas pessoas novas. Houve um momento em que pousei a cabeça no teu ombro – como tinha feito tantas vezes antes – fechei os olhos, e tudo pareceu voltar ao normal. Desejei o nosso normal com muita força. Mas nada daquilo era normal. De repente havia entre nós muito espaço - tu estavas sentado à entrada do autocarro e eu estava nos últimos bancos de trás - e eu não o conseguia preencher, por muito que quisesse. Não podia sair do lugar que estava escrito em tinta desbotada no meu bilhete. E tu não podias sair do teu. Éramos vítimas do motorista distraído que nos separou, filas de cadeiras entre nós: eu nunca quebraria as regras, nunca me sentaria num lugar que não era o meu – era esse o teu problema. Tu quebrá-las-ias, noutros tempos, levantar-te-ias e virias para o lugar vazio ao meu lado; mas não mais. Já chegava de quebrar regras que eu não estava disposta a quebrar. E depois quando abri os olhos estavas ao meu lado, contemplativo, a responder a uma mensagem. A música continuava a soar, mas parecia-me cada vez mais longe. Disseste que estavas a ficar sem bateria, então trocámos para o meu telemóvel, e fiquei eu a escolher. Esforcei-me muito para que percebesses o que estava a tentar dizer, mas se o percebeste fingiste bem que não. E tu nunca foste um fingidor (apesar de te fascinar o meu gosto pelo poema). Também não te riste muito nessa viagem. Lembro-me de pensar que não te ouvia a rir a sério há muito tempo; de pensar que antes estávamos sempre a rir. Lembro-me que me passou, por uns segundos, uma imagem na cabeça: tu, deitado de barriga para cima, com os olhos fechados com muita força e a rir como se toda a alegria de todas as crianças do mundo tivesse entrado dentro de ti. Nem me lembro se fui eu que disse alguma coisa engraçada. Mas sei que perdemos as coisas engraçadas para dizer um ao outro algures no caminho do tempo. Gostava de ter feito um vídeo desse momento para nunca me esquecer dele: nós esquecemo-nos das coisas pequeninas; acho que é delas que dói mais lembrar. Mas queria poder vê-lo na caixinha de memórias com que ando sempre no bolso de trás das calças. As pessoas dizem que pertenço a uma geração de viciados, mas ninguém me convence de que ter uma caixa de memórias não é um superpoder – eu tenho o superpoder de voltar atrás no tempo sem sair do lugar. Devíamos ter tirado mais fotos e vídeos enquanto tínhamos vontade de criar memórias. Devíamos ter enchido a caixinha de nós. E assim eu não me esqueceria. E poderia viajar no tempo. Estávamos prestes a chegar e o lusco-fusco do autocarro tornava-nos ainda mais pesados do que já estávamos. Aquele era um dia de finais, e eu sabia-o. Fiz as minhas despedidas silenciosas. Olhei-te durante muito tempo. Mostrei-te todas as músicas que queria e disse tudo o que queria dizer através delas. Encostei a cabeça no teu ombro e teletransportei-te para a minha imagem mental favorita de ti. Guardei o rabisco como prova de que, pelo menos por um dia, ainda estavas lá. Porque nunca farias o rabisco se não estivesses. Nesse dia, ainda estavas comigo, apesar de estares de partida para destinos novos. E eu sabia-o. Se não o soubesse, não teria feito as minhas despedidas silenciosas. Mas fi-las sem saber: às vezes, o meu coração sabe coisas antes de o meu cérebro sequer as compreender. Às vezes, o cérebro nunca chega a compreender o que o coração já sabe. E às vezes, parece que estão num ringue de boxe a lutar para ver quem leva a sua avante, quem compreende melhor, quem sabe primeiro. O coração tende a ser mais perspicaz, mas mais discreto. O cérebro demora mais, mas quando compreende é brutalmente honesto. Acho, no entanto, que nesse dia o coração tinha o ringue todo para ele. O cérebro ainda não tinha percebido que aquele autocarro era o nosso final. E, então, a honestidade impetuosa não estava lá. E o coração deixou-me ter as minhas despedidas sob a ilusão de que eram só os mesmos velhos hábitos, de que nós ainda existíamos juntos. Até esse dia, sempre tinha gostado de autocarros. Sempre tinha pensado que eles traziam histórias muito diferentes de pessoas muito diferentes em momentos muito diferentes. Eram um pouquinho como as caixinhas do bolso de trás das calças: mais recatados, mais secretos, mas igualmente testemunhas de fantasmas da vida, e da felicidade, e da tristeza, que deixaram outrora riscos nas cadeiras, desenhos nos vidros embaciados, botões do ar condicionado ligados e cortinas fechadas. Fantasmas da amizade e fantasmas do amor, que se sentaram nos lugares onde nós nos sentámos e partilharam esperanças e planos para o futuro. Mas para nós não havia futuro. E eu deixei de gostar de autocarros. No fim de contas, toda a gente sabe que os autocarros nunca são novos. E as pessoas só gostam de coisas novas. Sempre que abro as notas do telemóvel, e vou à procura das mais antigas, encontro o teu rabisco azul. Dei-lhe o teu nome – pareceu-me justo. Continuo sem perceber a forma. Vê-se melhor quando o telemóvel está no modo escuro. O raio do desenho. Não é uma foto da minha caixinha de memórias, então quando abro as notas nunca estou à espera de o ver. Vejo-o. Lembro-me. Fecho as notas. Nunca o apago. Tê-lo dá-me um superpoder de voltar atrás no tempo. Tê-lo deixa-me agarrada à esperança de que, se te voltar a ver, vais rir (com toda a alegria de todas as crianças dentro de ti) quando to mostrar e fazer outro ao lado, igualmente desajeitado. E então, mesmo se eles não forem novos – especialmente se eles não forem novos – eu vou voltar a gostar de autocarros.

  • Os anos não olham para trás

    Quase todos já sentimos o sufoco que é ver a vida a escorrer-nos pelos dedos. Fazemos contas de cabeça, calculamos os anos que faltam para chegar aos 20, aos 30, aos 40, somamos os que ficam para trás e subtraímos os que nos restam . E quando já não temos o que subtrair, apercebemo-nos que vivemos com uma certa obsessão por toda esta precisão matemática. Um hábito e uma insistência que nos persegue e nos tortura de dentro para fora. Repetimos as contas, ano após ano, enquanto cobiçamos o que fica para trás. Não é por acaso que Fernando Pessoa escrevia incessantemente sobre a infância: é nela que residem as memórias das quais somos forçados a despedirmo-nos. Vemos os anos a fazer as malas e a partirem, após nos terem envolvido e despedaçado o coração e a alma. E quando o presente se torna demasiado penoso, olhamos para trás, na esperança perdida de reencontrá-los. Esquecemo-nos, inocentes, é que os anos não olham para trás. Refletimos neles o que fomos e eles refletem o que já não somos. Voltamos a contar pelos dedos reticentes quantos anos estão por chegar, encarando com puro desalento aqueles que se juntam à soma. Atormenta-nos a consciência de que, quanto maior for o resultado, mais responsabilidades teremos de assumir. Mas aqueles que ainda procuram pelos anos que se foram, riscam essa palavra do dicionário com tinta permanente. Tememos a existência futura como um fardo, que nunca nos pesou nem nunca carregámos às costas. O ser humano incorre assim numa circularidade implacável em si mesma: olha para trás para, de seguida, olhar para a frente, vezes e vezes sem conta possível. Mas a verdade é que por mais que revolvamos e voltemos a revolver, não temos um vira-tempo que nos permita reviver o que outrora foi vivido e que não pode ser repetido. Vinte, trinta, quarenta voltas ao sol não tornam uma pessoa menos digna de viver, mas insistimos em andar no sentido contrário aos ponteiros do relógio. Fazer tantas contas reduz o verbo “viver” ao absurdo e ao ridículo, esmaga o seu sentido, torna a existência numa ampulheta efémera que faz tremer o chão onde pousamos os pés. Não é só sobre viver o presente, nem nunca foi: é sobre deixar de viver um passado que não conseguimos reviver.

  • A resistência do feminismo e a justiça da exclusão

    A discriminação no mundo jurídico é uma questão significativa que tem atraído a atenção de vários estudiosos do direito, profissionais e de vários decisores políticos. Apesar do amplo e crescente reconhecimento do problema, a discriminação nas profissões jurídicas continua a ser um problema persistente em muitos estados, incluindo o português. Como é de common sense a discriminação pode assumir múltiplas formas, incluindo etnia, sexo, orientação sexual, idade e incapacidade(s), e pode ocorrer em várias fases de uma qualquer carreira jurídica, ou outra, desde o recrutamento até à promoção, progressão numa carreira e atribuição de novas funções. Neste texto, centrar-me-ei na discriminação contra as mulheres nas profissões jurídicas em Portugal, tentando tocar nos vários factores que contribuem para a discriminação de género e o impacto de tal discriminação nestas profissões. Especificamente, irei analisar o papel dos estereótipos e preconceitos de género normas culturais, práticas e políticas institucionais na perpetuação da discriminação de género na profissão jurídica. Irei também tocar aqui e ali formas como a discriminação de género limita as oportunidades de avanço das mulheres e mina a diversidade e inclusividade das profissões jurídicas. Com está análise, espero lançar alguma luz sobre a prevalência da discriminação de género no mundo jurídico em Portugal, bem como oferecer recomendações de como abordar esta questão tão crítica. Uma vez identificadas as causas profundas da discriminação de género, (que não terei tempo de fazer na economia desta pequena apresentação) e propondo eventuais soluções baseadas em provas, poderemos trabalhar no sentido de tornar as profissões jurídicas mais inclusivas, diversificadas e equitativas. A questão da discriminação de género no domínio jurídico em Portugal está intimamente ligada à questão mais vasta do todo da desigualdade de género e aos desafios enfrentados pelas mulheres na sociedade de forma mais ampla. Apesar dos progressos significativos registados nas últimas décadas, as mulheres em Portugal continuam a enfrentar barreiras a uma plena igualdade, incluindo no local de trabalho. Isto abrange, claro, o mundo da advocacia, que registou um aumento significativo do número de mulheres que entraram neste campo nos últimos anos. Ter-se-á este movimento diretamente refletido em práticas concretas? Não! A crescente feminização dos contingentes que tem acedido cada vez mais a profissões jurídicas, na prática não se traduziu, em boa verdade, numa maior igualdade de género. As mulheres a trabalhar em profissões jurídicas em Portugal continuam a enfrentar barreiras significativas, muitas vezes “de vidro” à sua progressão, e a sofrer discriminação de género em múltiplas fases das suas carreiras. Isto levou a uma proatividade crescente dentro dos movimentos feministas em Portugal, onde as mulheres aceleram no defender de uma maior representação e inclusão e a desafiar as barreiras sistémicas e culturais que continuam a limitar as suas oportunidades de progressão. “A justiça da exclusão” é um fenómeno particularmente prevalecente nos escritórios de advogados, onde as mulheres e alguns grupos tidos como marginais vêm-se frequentemente subalternizados em posições de poder e influência. Isto tem tido um impacto significativo no que toca tanto a diversidade como inclusividade nesta profissão. É essencial que a lei reflita as necessidades e interesses de todos os membros da sociedade. Este fenómeno, como disse, não se aplica apenas às mulheres. Repetindo, a discriminação, discriminação no mundo jurídico inclui etnia, orientação sexual, idade e incapacidades. Os membros destes grupos podem enfrentar – e muitas vezes enfrentam - discriminação na contratação, promoção, e outros aspectos das suas carreiras. Normas sociais e culturais, sublinho, podem também contribuir para a discriminação, perpetuando estereótipos e preconceitos. Creio que para combater a discriminação em profissões jurídicas é fundamental implementar políticas e práticas que promovam a diversidade e a inclusão, destes agrupamentos. Tal pode incluir medidas como o combate a uma cristalização de preconceitos – muitas vezes inconsciente- fomento de iniciativas positivas de contratação (positive discrimination) de diversidade, e programas de mentoria e trabalho em rede para grupos sub-representados. É também crucial levar a cabo práticas e políticas institucionais que possam estancar o avanço de certos grupos nas várias profissões jurídicas, porventura criando mecanismos de discriminação positiva que equilibre a composição destes. As mulheres, a discriminação e equidade Após assistir ao simpósio que contou com a presença da Professora Helena Pereira de Melo e empreender alguma investigação pude iluminar o facto de que ainda hoje as mulheres enfrentam obstáculos significativos nas profissões jurídicas. Insisto, mexendo nos preconceitos e estereótipos implícitos, na falta de acesso equitativo a posições de liderança, e na discriminação em decisões de em bónus e outras compensações e promoções. Mais chocante ainda, sabemos que as mulheres nas profissões jurídicas são também mais susceptíveis do que os homens em sofrer assédio sexual e discriminação. Muitas vezes tal e feito com base em argumentos economicistas - como a gravidez e as responsabilidades familiares. Questões que não prejudicam os homens, mas que devem por razões que julgo óbvias, apesar de existentes diferenças há que garantir, la onde é possível, alguma equidade. A situação existente gera problemas sérios. O impacto da discriminação de género nas mulheres que exercem as profissões jurídicas é significativo. Isto leva a vários cenários infelizes. As mulheres são bem mais propensas a abandonar a profissão mais cedo do que os homens devido às discriminações que estão sujeitas, e frequentemente enfrentam disparidades salariais significativas em comparação com os seus homólogos masculinos. A discriminação, sabemos, limita as oportunidades de progressão das mulheres, tornando-lhes mais difíceis de alcançar posições de liderança ou de efectuar mudanças significativas no âmbito das profissões jurídicas. Com a finalidade de atingir este objetivo, há que reconhecer a importância de ir denunciando os estereótipos e preconceitos de género, fomentar políticas e práticas que apoiem o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal por um lado, e por outro o desenvolvimento na carreira. Criando uma cultura de inclusividade e respeito. O que requer colaboração e envolvimento de toda a comunidade jurídica, incluindo estudiosos do direito, profissionais, decisores políticos e organizações da sociedade civil. Visão constitucional A discriminação das mulheres no mundo jurídico português, não viola apenas preceitos e valores socialmente reconhecidos num estado de direito. Viola, também, vários artigos da Constituição da República Portuguesa (CRP), que garantem a igualdade entre homens e mulheres em todos os domínios da vida pública e privada – direitos constitucionais esses que muitas vezes infelizmente não são cumpridos. Em primeiro lugar, o artigo 9.º da CRP estabelece que "incumbe ao Estado promover a igualdade entre homens e mulheres", incluindo no acesso ao emprego e na igualdade de remuneração pelo mesmo trabalho. A discriminação de mulheres no mundo jurídico português também viola este princípio, uma vez que as mulheres muitas vezes enfrentam obstáculos ao acesso a posições de liderança e são remuneradas de forma desigual em relativamente aos colegas do sexo masculino. Para além disso, o artigo 13.º da CRP estabelece que "todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei", sem mencionar a distinção de género, visto tomar como tácito que a dignidade social e igualdade perante a lei a implicam. Sublinhe-se a alto e bom som: discriminação de mulheres no mundo jurídico português viola este princípio fundamental da igualdade, uma vez que dificulta às mulheres o acesso a posições de poder e influência e as limita também a oportunidades de carreira deste setor. Importante é também o artigo 26.º da CRP, que estabelece o direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional. A discriminação de mulheres no mundo jurídico português pode impedi-las de aceder à justiça e à tutela jurisdicional em igualdade de condições com os homens. A falta, falta de representação e influência feminina pode resultar em decisões judiciais desiguais e por isso injustas. Vale a pena, igualmente, mencionar que o artigo 59.º da CRP garante a liberdade de escolha de profissão e o direito ao trabalho. A discriminação de mulheres no mundo jurídico português pode impedir as mulheres de exercerem a sua profissão escolhida em igualdade de condições com as dos homens. O que viola este princípio fundamental da liberdade de escolha de profissão e do direito ao trabalho que o artigo plasma. Final remarks Numa última análise, as profissões jurídicas têm um papel diacrítico a desempenhar na progressão da igualdade de género e por essa via na da justiça social em Portugal. Ao reconhecer e abordar os desafios da discriminação de género em profissões jurídicas, podemos transformar o nosso sistema jurídico num mais justo e equitativo para todos. Num novo sistema no qual todos têm a oportunidade de ter sucesso e de contribuir para o avanço do Estado de direito e dos direitos humanos.

  • As meninas também sabem jogar à bola

    É indiscutível que, desde sempre, o futebol foi visto como um desporto de homens, e para os homens. Da mesma forma que desportos como a ginástica sempre foram vistos como sendo de mulheres, e para as mulheres. Este estereótipo dos desportos existirem para serem praticados consoante um género específico é algo que está presente desde cedo - os meninos jogam futebol no recreio, as meninas não. É uma ideia parva, atrasada e não é uma realidade, existe apenas aos olhos de certos membros da sociedade, também eles parvos, e atrasados. Felizmente, é também indiscutível que esta ideia tem sido ultrapassada ao longo dos tempos, e parece que as pessoas estão cada vez mais preparadas para se abrirem à ideia de que sim, as meninas também sabem jogar à bola. O problema da falta de representação das mulheres no desporto não existe só no futebol, mas sendo ele o desporto preferido dos portugueses, é fácil de perceber o porquê de lhe ser dado prioridade neste debate. Este problema também não parte apenas da falta de interesse dos adeptos. Francisca Nazareth, jogadora do Sport Lisboa e Benfica e também da Seleção Portuguesa de Futebol, falou recentemente, na eleven sports, sobre um encontro que teve com adeptos do seu clube, que a questionaram sobre o porquê de os jogos da equipa feminina não serem todos no Estádio da Luz, tal como os da equipa masculina. A mesma disse que também gostava que assim fosse, mas que não sabia se valia a pena abrir o estádio para jogos que, muitas vezes, apenas tinham 200 pessoas a assistir. Os adeptos responderam que, não importa o jogo ser de futebol feminino, as pessoas vão querer apoiar o seu clube. Ao abrir mais vezes as portas ao futebol feminino, mais oportunidades os adeptos vão ter de ir ver, de apoiar, até se tornar um hábito, vão se gerar melhores resultados, porque as atletas também vão estar mais motivadas, e com esses resultados, ainda mais pessoas vão começar a aparecer, e é assim que o desporto cresce - “A partir daí, as pessoas iam começar a ir aos jogos, a ver que o nosso futebol é bem jogado” - como disse a mesma. Claro que neste exemplo falamos do Benfica, um clube com mais condições de desenvolver a modalidade em comparação a outros, algo que também é um problema impossível de ignorar. Esta dificuldade que o desporto feminino tem em desenvolver-se parte muito do pouco destaque que lhe é dado por aqueles que têm esse poder. Afinal, como é que as pessoas sabem que podem apoiar o futebol feminino se muitas vezes nem sabem o que está a acontecer? Por exemplo, em fevereiro, a seleção portuguesa feminina de futebol venceu os Camarões e garantiu o apuramento para o mundial do próximo ano, algo que nunca antes tinha acontecido. Este acontecimento chegou à capa do jornal “A Bola”, sim, mas em letras pequenas e no rodapé, certamente um lugar de destaque digno para o que as atletas portuguesas conseguiram conquistar. É possível chegar à conclusão que o grande problema não é a falta de interesse das pessoas, sim, este ainda não é enorme, mas está a crescer. Os jogos têm cada vez mais audiência - atingiu-se um novo recorde de assistência num jogo de futebol feminino oficial em Portugal (15032 espectadores) em janeiro deste ano, num dérbi entre o Sporting e o Benfica - o que demonstra o novo entusiasmo que se começa a sentir entre os adeptos. O que falta realmente é esse entusiasmo ser acompanhado com informação e notícias sobre os jogos, as atletas e as novas conquistas que tanto custam a ganhar. Afinal, sendo o futebol um desporto tão querido em Portugal, de certeza que também há espaço (e vontade) para ver as meninas a correr atrás da bola.

  • Ode à menina adolescente

    Um dia acordei. Um dia que, à partida, se parecia com tantos outros. Um dia acordei e olhei-me ao espelho. À minha frente não se apresentava, ao contrário de todas as outras vezes, o meu rosto habitual, aquele que instantaneamente reconhecia. Em vez disso, pensei ter recuado no tempo, ao ver naquela superfície refletora uma versão mais jovial de mim. Olhei incrédula para a imagem que diante de mim se encontrava: exatamente as mesmas feições, mas menos marcadas pela passagem do tempo. Era eu, a mesma eu, com 13 anos. O primeiro instinto foi tocar desesperadamente na minha própria cara. Verificar se, de facto, o que estava refletido tinha uma materialização na minha fisionomia. Levei as mãos à testa, tentando detetar as cordilheiras de erupções que me costumavam atormentar. Quanto mais percorria a minha pele em busca das montanhas e vales que nela costumavam existir, mais me afligia quando tudo o que encontrava era uma vasta e suave planície. Olhei nos olhos daquela criatura. Quem também pudesse contemplar aquela imagem não repararia de imediato nas regiões escurecidas debaixo dos meus olhos. Antes, seria presenteado com um brilho inofuscável irradiado pelas duas órbitas, que nem duas lanternas. O cabelo, apesar de manter o mesmo tom, havia alterado o seu comprimento. No espelho, estava substancialmente mais comprido, cobrindo parte da face daquela miragem. Eu sabia que na realidade atual, no eu atual, ele só ia até aos ombros. Mais calma, decidi afastar-me do alcance do espelho, dando um passo ao lado. Depois, voltei ao sítio onde me encontrava inicialmente, mantendo o contacto com a superfície refletora. A figura voltou também. Repeti o processo mais uma, duas, três vezes. E de todas as vezes que me olhava, olhava para o outro eu. Saí daquela divisão. Fui procurar um espelho mais pequeno, que tinha guardado na mesa de cabeceira. Ao retirá-lo, esperava ansiosamente pela comprovação de que o primeiro espelho sofria de um qualquer problema técnico, para o qual eu não tinha explicação. Olhei, a medo, e confirmou-se: a reflexão mostrava uma adolescente. Confusa, e com o coração a mil, parti em busca de todos os espelhos que me lembrava possuir. Sem exceção, em cada um deles o resultado foi o mesmo. Desesperei. Dei voltas à casa. Toquei vezes e vezes no meu rosto e cabelo. O que as mãos sentiam não coincidia com o que os olhos viam - as mãos tocavam numa adulta de 23 anos e os olhos viam uma adolescente de 13. A dada altura, olhei para o relógio, e apercebi-me que, com toda aquela correria e aflição, estava a atrasar-me para sair de casa. Vesti-me em frente ao espelho. Em pé, enquanto decidia se devia apertar ou deixar aberto mais um botão da camisa, refleti sobre a imagem bizarra que se formara diante de mim: a minha cara de puberdade no restante corpo adulto. Contemplei o ensemble que tinha escolhido. Além da camisa branca, vestia uma saia preta. Parei uns segundos para examinar as minhas pernas, e lembrei-me que quando tinha 13 anos acreditava que pernas não serviam para mais do que andar, correr ou saltar. Matutei sobre o momento em que esse pensamento foi substituído por outro, que consistia na análise obsessiva não da função, mas do aspeto daquele membro. Não o consegui descobrir. Acho que foi algo que se foi formando progressivamente na minha consciência, como um empilhar de tijolos na construção de um edifício. Já no autocarro a caminho das aulas sentei-me num dos bancos do fundo, num lugar junto à janela. Conseguia ver-me através do vidro, e, mais uma vez, o reflexo não era o habitual. A dada altura do percurso, dei-me conta de que um sujeito, que não conhecia de parte alguma, olhava fixamente para mim. Desviei o olhar, e contemplei a vista da minha janela. Encarei o sujeito novamente. Este permanecia imóvel, com o olhar vidrado. Senti um desconforto percorrer-me o corpo, e uma questão inquietou-me: qual dos dois eus estaria ele a fitar? Aquele homem cravava os seus olhos de forma ininterrupta, invasiva, incómoda, sobre uma jovem no início da adolescência ou sobre uma jovem no início da idade adulta? Qualquer um dos cenários causava-me um aperto no peito. Agarrei-me à mala que trazia no colo, de tal modo que os nós dos meus dedos ficaram salientes. Receava que aquele simples ato de olhar escalasse para algo mais dolorosamente marcante. Algumas paragens depois, naquilo que me pareceu uma eternidade, o homem saiu. Até aí, sentia que carregava um saco cheio de pedregulhos às costas. No momento em que ele abandonou, permiti-me finalmente voltar a respirar normalmente. Na faculdade tive a confirmação de que, de facto, para as restantes pessoas tudo estava como habitualmente, quanto à minha aparência exterior. Toda a gente com quem interagia tinha reações costumeiras, nada fugia ao exemplo paradigmático de um dia como outro qualquer. Exceto para mim. Enquanto estava nas aulas, imaginava vezes sem conta o cenário em que o meu eu de 13 anos tomava o lugar do meu eu atual, naquela sala de aula, com aquelas pessoas, a aprender aquelas coisas. Não conseguia evitar perguntar-me o que pensaria sobre o caminho que tomara, sobre as escolhas que fizera. Tinha agora a perceção de que, há 10 anos, não tinha a mais ínfima ideia das possibilidades efetivas que se poderiam revelar. Na altura trabalhava no domínio do abstrato, na consideração momentânea de que no futuro aquela coisa me iria trazer a máxima felicidade. Qualquer sonho parecia concretizável, estando apenas à distância da vontade. O mundo estendia-se aos meus pés como uma autoestrada. No presente, aproximava-se a passos largos o momento de entrada na verdadeira vivência adulta. Era intimidada pelo peso das decisões cada vez mais definitivas, e pelas implicações futuras das mesmas. À conta disso, vinha-me constantemente à lembrança a analogia da figueira da Sylvia Plath: “Eu via a minha vida a ramificar-se à minha frente como a figueira verde daquele conto. Da ponta de cada galho, como um enorme figo púrpura, um futuro maravilhoso acenava e cintilava. Um desses figos era um lar feliz com marido e filhos, outro era uma poeta famosa, outro, uma professora brilhante, outro era feito de viagens à Europa, África e América do Sul, outro era Constantino e Sócrates e Átila e um monte de amantes com nomes estranhos e profissões excêntricas, outro era uma campeã olímpica de remo, e acima desses figos havia muitos outros que eu não conseguia ver. Vi-me sentada debaixo da árvore, morrendo de fome, simplesmente porque não conseguia decidir com que figo eu ficaria. Eu queria todos, mas escolher um significava perder tudo o resto, e enquanto eu ficava ali sentada, incapaz de tomar uma decisão, os figos começaram a encolher e ficar pretos e, um por um, desabaram no chão aos meus pés.” Naquela noite, enquanto comia sozinha o meu jantar aquecido, pensava na minha avó, que utilizava os alimentos como veículos do seu amor. Fonte inesgotável de conforto, acreditava que, se desejasse muito profundamente, o prato que comia se poderia converter magicamente num dos que ela me preparava. Pensava também na minha mãe, na mão dela que jamais deixou de estar estendida para mim, e em como o amor dela foi transformador, tanto para a adolescente do espelho, como para a jovem que dava lentas garfadas na comida. No dia seguinte acordei. Um dia que, à partida, parecia diferente de tantos outros. Corri para o espelho, esperando deparar-me com um cenário idêntico ao do dia anterior. Uma onda de desilusão instalou-se assim que me apercebi de que na imagem refletida já não se encontrava a menina de 13 anos, mas antes, eu mesma, no presente. Fui invadida por uma tristeza súbita quando cheguei à constatação de que não voltaria a ser ela, e, ainda pior, que nunca pude dizer-lhe adeus.

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