Nunca me falaram de guerras até ter idade para as perceber. Ouvia falar da batalha x ou y, de quem as ganhava, de quem conquistava a terra. Ensinaram-me a invariável da guerra: que era para ganhar ou perder. Não precisei de me pôr em bicos de pés para ver o caixão branco. É uma memória sem qualquer sabor que guardo comigo e à qual volto para relembrar. Lembro-me de olhar para a minha mãe e de lhe perguntar “e agora?”, como a criança inocente que era. E ela respondeu-me secamente “a vida continua”. E eu fui, de lábio a tremer, abraçar a L. e repetir-lhe em tom de murmúrio “a vida continua”. Não me respondeu, e hoje em dia eu também não saberia o que responder. [Desculpa, L.. Tenho consciência de que é injusto falar sobre isto. Mas tu também já não existes para me dizeres isso. Quem me dera que o dissesses.].
Foi nesse momento que me apercebi do verdadeiro significado de guerra sem ter de procurar pelo sentido etimológico da palavra.
A partir daí fiz a minha coleção de cartas e vi outros a fazerem a sua. É uma narrativa melancolicamente bonita, mas que sempre me soube mal na boca. Ver-me a mim e aos outros a pintar quadros de romantismo, em telas gastas e com pincéis usados, para depois chorar lágrimas secas porque temos todos mãos destreinadas [tenho tendência para pintar com a mão esquerda sem ser canhota]. Resta-me pôr-me em bicos de pés e oferecer o ombro e um abraço, mesmo tendo estado no mesmo lugar, horas antes, a extravasar a cabeça e o coração, e repetir a cantiga que me embala os dois: a vida continua.
“O mundo não é só isto, o mundo é tanta coisa!”.
“Mas o mundo grita-me aos ouvidos e eu sofro de surdez crónica.”
Pergunto-me constantemente se as guerras são para ganhar, perder ou apenas sobreviver. Rendo-me sempre ao responder pela ignorância. Ninguém tem respostas para tudo [e está tudo bem com isso]. Mas é uma verdade amarga de que, na maioria delas, tudo o que se pode fazer é sobreviver.
Não há sentido ou razão inerente ao ato de disparar numa guerra. Talvez seja porque o barulho à volta se torna ensurdecedor e só queremos que ele faça silêncio. “Nunca quis cravar-te uma bala na carne, perdoa-me, até peguei na arma sem querer”. Está tudo bem, asseguro que está tudo bem, porque a voz falha e o cansaço ganha.
E no meio do caos estupidamente excessivo, apercebo-me de que ninguém me falou das balas que se perdem pelo caminho.
Falam-me das que acertam no peito ou numa perna, das que matam e das que ferem, mas nunca souberam aproximar-se e sussurrar-me ao ouvido “em todas as guerras há pelo menos uma bala disparada em vão. Ou várias. Mas há sempre uma que se perde pelo caminho.”
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