Simone enterrou os pés na areia, provocando um agradável contacto entre os grãos finos e a sua pele. Havia colocado a sua cadeira de praia numa zona intermédia entre a areia seca e a areia molhada, afastada dos resquícios de conchas e algas que davam à costa. Aquele lugar parecia-lhe perfeito, corria uma suave aragem, e não existia o mínimo risco de, caso uma onda decidisse rebentar mais à frente, os seus pertences ficarem alagados. Na sua posição estratégica, Simone observava os veraneantes a ir e a vir ao longo do vasto areal. Se virasse o seu pescoço o máximo que podia, para um lado e para outro, as pessoas transformavam-se em pequenos pontos no horizonte de areia e ondas.
A porção de areal que antecedia a zona da rebentação era ocupada por gentes de diferentes gerações que jogavam à bola ou com raquetes, em campos delineados com o indicador ou com algo pontiagudo que estivesse à mão de semear. Simone ouvia as gargalhadas estridentes das crianças que, sentadas na areia, construíam castelos utilizando baldes, pás e forminhas, amontoavam sedimentos que se transformavam em pequenos muros, e cavavam buracos, sendo surpreendidas com o aparecimento de água no fundo destes. Simone fixou, então, a sua atenção numa mulher que praticava ioga no meio da aglomeração de gente. Vários transeuntes olhavam demoradamente enquanto a sujeita movimentava delicadamente, mas decisivamente, os seus quatro membros e o seu torso, alternando entre as posições de guerreiros. A dada altura, quando se sentiu cansada de transferir o peso do seu corpo dos pés e pernas para as mãos e braços, e vice-versa, a mulher sentou-se, à semelhança das crianças que povoavam o areal, de pernas cruzadas e de frente para o mar. Simone reparou nos seus braços, outrora elevados em direção ao sol, pousados sobre os joelhos dobrados, e na sua respiração serena, acompanhando o ritmo das ondas que subiam e desciam.
Alguns minutos depois, a mulher levantou-se e aproximou-se de Simone, afundando-se na cadeira de praia que se encontrava ao lado da desta. Estiveram em silêncio por momentos, com a mulher, de olhos cerrados, a banhar-se no calor que o sol irradiava.
“Acho que vou dar um mergulho.” – acabou por dizer. Levantando-se da mesma maneira abrupta com que se tinha sentado. – “Queres vir?”
“Vai andando. Eu já lá vou ter.”
A mulher assentiu. Fez descer os calções pelas pernas, ficando apenas de bikini. Simone viu Júlia, assim era o seu nome, afastar-se mais e mais. A determinada altura tornou-se numa silhueta que rasgava o mar, difícil de identificar ao longe.
Simone não se mexeu um milímetro que fosse. O calor que incidia no lado direito do seu corpo gerava em si uma sensação de inércia total. Como tal, prosseguiu o seu trabalho de perscrutação dos estranhos que habitavam aquela praia. Contemplava as pessoas de variadas idades que brincavam de variadas formas na areia molhada junto à rebentação, as que caminhavam à beira-mar, as que penetravam as ondas e davam braçadas irregulares da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. Pensava que toda aquela matéria humana, todos aqueles pontinhos que polvilhavam o horizonte, continham dentro de si histórias. Desde o homem com a pele escurecida pelas muitas horas a caminhar ao sol, vendendo os doces que carrega nos antebraços em dois cestos, à criança com o regador que se deleita a verter água nas pernas da mãe, do pai, dos irmãos, e quando o conteúdo do mesmo se esgota, corre em direção ao mar para o encher. Todos eles são ilhas com vários X’s à espera de serem descobertos. Simone sentiu-se subitamente assoberbada. O tão só pensamento de que lhe era impossível conhecer cada uma dessas histórias fê-la sentir-se insignificante naquele mar de organismos vivos. Quão bizarro seria aproximar-se de um estranho e pedir-lhe que começasse a dissertar sobre a própria vida, e que nesse relato não economizasse na pormenorização. Infelizmente, mesmo que concretizasse a interação, nunca ultrapassaria o circunstancialismo. Com essa conclusão, levantou-se, por fim, e foi passo a passo até ser abraçada pelo oceano.
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À noite, Simone encontrava-se sentada à mesa da salinha do aconchegado T1 que havia arrendado, a meias com Júlia, a uma magnata da vila com olhos muito claros e cabelos muito brancos. Diante de si estava novamente um documento de texto. A sua prima-quase-irmã já dormia a sono solto numa das camas do quarto que ambas partilhavam. Simone travava a sua habitual batalha com um ecrã de computador. Nos últimos tempos congratulava-se por chutar as suas dúvidas existenciais para canto, e, assim, lograr transformar os seus pensamentos em caracteres de cor negra. Algumas vezes a escrita fluía de forma tão natural que, com a delicadeza de uma bailarina, produzia um capítulo completo em questão de poucas horas. Outras vezes, [nunca deixarão de existir essas vezes], meia dúzia de linhas eram arrancadas a ferros. No entanto, não se podia queixar. Era com satisfação que constatava que, numa perspetiva geral, a sua empreitada literária se desenvolvia em velocidade de cruzeiro.
Agora era outra a indagação que a visitava com frequência. Não de forma angustiante como a anterior, antes com uma dose saudável de curiosidade. Simone cogitava a existência de musas, de fontes inesgotáveis de inspiração. No seu ponto de vista, qualquer artista quererá alcançar esse filão. Ela sentia não o possuir. Ou estaria enganada? Seria possível dispensar a busca por um algo ou alguém a quem pedir o néctar infinito que alimentaria o seu impulso criativo? Talvez não fosse preciso um objeto soberano dos seus afetos, ou suplicar aos céus, ou rogar aos deuses. Talvez a sua musa fosse a fenda na parede que se assemelha a um relâmpago, ou a concha desfigurada por embater na água e nos restantes sedimentos, uma e outra e outra e outra vez. Talvez aquilo que a incentivaria a levantar a caneta fossem as pegadas que se sobrepõem infinitamente no areal, o vento carregado dos aromas do mar salgado, a sua prima Júlia que amava as flores desde que eram pequenas, e, por isso, decidiu estudá-las e fazer delas a sua vida. Talvez aquilo que a levaria a não desistir por completo nos dias em que a escrita não se mostra satisfatória sejam todas aquelas histórias que desconhece, e também as que conhece. Todas merecem ser eternizadas.
Simone bateu nas teclas até o seu cérebro permiti-lo. Baixou o visor do portátil, e ergueu-se enquanto esticava os seus braços ao alto. Subiu as escadinhas que levavam ao terraço. Daquela não muito alta casinha conseguia ver uma faixa de mar. Era noite de lua cheia. Simone assistiu, como há muito não fazia, a um perfeito diálogo silencioso entre o astro e o oceano.
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