top of page
Catarina Rodrigues

Quarto vazio.

E aquele aroma invade as minhas narinas como um relâmpago invade o céu numa noite sombria, porém de uma forma estrondosamente suave.


Sinto o meu corpo ser esmagado por aquele toque delicado que me conforta e tranquiliza com toda a convicção do mundo, e com toda a convicção do mundo diria que quase posso sentir o meu corpo derreter naquele abraço quente, da mesma maneira que sinto as lágrimas salgadas escorrer pela minha pele estranhamente fria, exibindo o belo contraste entre o meu corpo e do da pessoa que me abraça.


E é então que a avassaladora verdade bate à porta de um subconsciente conturbado… a verdade é que este cheiro, este toque e esta voz que ensaio todas as noites sussurrar ao meu próprio ouvido não passam de uma mera invenção desta minha mente precária.


E de repente, estou novamente naquele quarto, que antes era preenchido de pequenas memórias bonitas e que agora é substituído por esta penumbra de dúvida, de dúvida em saber se realmente tudo aquilo que anseio que seja verdade não passa de mero fruto da minha imaginação.


E agora sozinha, os meus olhos vagueiam pelas paredes cada vez mais vazias, notando que tudo o que parece restar são as molduras partidas, cheias de pó e quase destruídas por algo que eu ainda não tenho coragem de reconhecer.


O eco dos meus passos faz se ouvir à medida que vou rondando pelos recortes de uma vida que eu sei que vivi, e como sempre (porque há sempre algo) surge uma distração que me impede de encontrar aquilo que procuro, por mais vago e por mais ténue que seja esta minha caça ao tesouro.


E eu sou obrigada a fechar a janela que deixava o frio entrar por este quarto adentro e permito que a minha atenção retorne para aquilo que me levou até aqui em primeiro lugar. Deixo que os meus pés me guiem até à pequena caixa de brinquedos junto à parede e sinto o meu corpo deixar-se ceder e ficar de joelhos junto à pequena mobília. Com as mãos não tão firmes como um dia chegaram a ser, abro a tampa que já foi mais fácil de levantar, para olhar para uma singela moldura lá dentro.


Por alguns momentos deixo aquele silêncio pesar comigo enquanto se faz escutar, ainda que baixo, uma respiração trémula que eu sei mais do que ninguém que é minha. E eu permaneço ali, pelo que parecem ser horas, a congelar, enquanto o meu olhar se fixa na imagem do que me parece ser um anjo a sorrir-me de volta, na dúvida se deveria arriscar retirar a fotografia daquele baú vazio ou se a devia deixar estar. E à medida que a minha mão se aproxima eu consigo ver a imagem desvanecer lentamente ao ponto de me cortar o ar. Num anseio de a perder eternamente tal e qual a uma criança com medo de perder o seu doce, as minhas mãos apressam-se a retirar aquela moldura a tempo de ver os últimos reflexos do que eu jurava ser algo que eu jamais me esqueceria, desaparecer.


E mais uma vez, aquela frustração de sempre percorre a minha espinha por ver mais um pedaço dela escapar-se de mim, não pela primeira vez e certamente não pela última, uma vez que o problema não será certamente esse, mas sim o facto de talvez um dia já não haver mais memórias para esquecer ou dúvidas para esclarecer.


E talvez por mera coincidência, ou não, a mesma porta que antes vinha com a realidade atrás, agora rangia à medida que se abria lentamente. E eu volto a vê-la de longe, agora apenas como uma sombra que já não entrava pelo quarto adentro para me reconfortar nos seus braços. Agora sem o cheiro, sem o toque e sem a voz que um dia conheci tão bem.


E permaneci ali, por tanto tempo, numa conversa sem palavras com a pessoa que mais me conhece e que eu mais desconheço à medida que os anos passam.


E pela primeira vez, eu pareço concordar com a triste realidade que é a verdade de viver num mundo sem alguém que eu amo.


A verdade é que este quarto vai continuar a ficar frio e cada vez mais eu me vou esquecer destas coisas simples que sempre a fizeram ser mais humana.


Essa é a infeliz realidade de perder alguém no mundo real, porque apesar do meu amor por ela não desvanecer, as molduras dentro deste meu quarto de memórias vão continuar a desaparecer.


E é por isso que todas as noites lhe digo boa noite, na esperança de algum dia ouvir o retorno, porque esta caça ao tesouro onde as regras do jogo pertencem ao luto já começam a perder a piada.


No entanto, acho que hoje ela escutou-me mais alto, já que jurei ouvir a sua gargalhada de novo, talvez seja do sono, mas amanhã estou cá de novo, porque foi ela que me ensinou sem ensinar a dizer, “Mãe, eu amo-te, mas o jogo ainda não acabou”.


Porque luto é isto, não querer jogar, mas ir jogando, porque esquecer o amor por ela é mais doloroso do que esquecer um cheiro ou um toque.


28 views

Recent Posts

See All

Comments


bottom of page