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Registo 1: Carmesim

A olhar para a parede branca, ouço os passos atrás de mim. Passos de uma multidão a recuar. A evacuar aquele espaço de recreação para realizarem as atividades realmente importantes. De modo a executarem "os testes", como dizem os guardas e os cientistas com os seus gestos tranquilizantes.

Na verdade, ainda consigo escutar os apelos dos soldados. Eles que ordenam a evacuação do recreio mesmo até agora, agora que eu me pus a contemplar o canvas branco e rugoso da parede. Os guardas ordenam, guardas como o Leo. E nós seguimos. Mesmo sem ter um nome pelo qual nos possam chamar.

Em meado ao barulho dos pés descalços dos meus semelhantes a sair da zona em que me encontro, das vozes severas dos guardas e dos barafustos distantes de utentes a discutir, fico só.

Erguido no centro do espaço delimitado por três paredes e uma cancela a indicar o final da região de experiências e o início da região de descontração. Erguido, observo uma estrutura pura como o leite que vejo cientistas a beber enquanto anotam os resultados dos seus testes. Erguido, deixo-me ficar onde devíamos ficar apenas por alguns meros instantes. Erguido, fico cara a cara com uma barreira física. Erguido, enquanto todos os barulhos ao meu redor se dissipam e são reduzidos a nada perante aquilo que vejo erguido. Erguido.

Erguido, ao nível dos meus olhos, vejo um buraco minúsculo na estrutura.

Um furo disforme de alguns centímetros de comprimento e de menos de meio metro de largura. Com lascas de tinta seca a revestir os bordos exteriores da anomalia presente naquela arquitetura até então perfeita. Repleto de pedras e pedrinhas no seu interior, de vestígios da anatomia da parede. E é claro, além do que envolvia aquele buraco, havia o que ele escondia do outro lado.

O mundo exterior nunca antes visto por nenhum outro Classe C.

Ou melhor, uma das supostas engrenagens do mundo exterior: uma rosa.

À distância, bem no fundo, era possível ver aquela flor carmesim. Plantada firmemente no que devia ser uma multidão de pequenas protuberâncias esverdeadas. De caule igualmente esverdeado, esguio e de aparência suave. Verde. Tão verde. Apenas não tão marcante como a cor das suas pétalas, do seu corpo escarlate, rubro, flamejante. Apaixonante. De tamanha singularidade e beleza que me fez esquecer os espinhos escondidos a revestir o caule. Aqueles traiçoeiros gumes de dor providenciados pela natureza a fim de afastar malfeitores.

No entanto, acho que isto é o que é uma rosa, não é? Uma combinação de luz com escuridão. De beleza e fealdade. Trata-se de uma mistura equilibrada entre apreciação e aversão. Precisamente como descritas por Leo nas raras ocasiões em que ele se dava ao trabalho de responder às cobaias que devia manter em ordem.

Creio que os meus olhos se arregalaram algures no meio da minha admiração. Senti as minhas pupilas dilatarem, inclusive. Nem me posso culpar por ter reagido de forma espalhafatosa. Passei o dia anterior a ouvir as palavras dos guardas, de entre os quais Leo, a conversar sobre isso. Tudo porque alguns Classe C numas celas ao lado da minha não paravam de falar sobre o mundo exterior. Por isso, a melhor forma que eles arranjaram para os calar foi falar até à eternidade sobre o assunto, na esperança que os ignorantes na matéria ficassem saciados ou simplesmente calados num silêncio sepulcral ao perceberem a tamanha complexidade da matéria. Bem, funcionou. O ruído cessou e sempre consegui entrar no sono ou lá como os cientistas lhe chamam. 

Sim, adormeci. Mas adormeci a pensar no que eles tinham dito. Nas tais árvores com braços enormes chamados ramos. Os dedos de relva a crescer no chão que dizem ser castanho, signifique isso o que significar. Em correntes líquidas e translúcidas.

E nas flores, flores a exibirem uma palete de cores cuja existência nunca soube. Flores como a rosa. Cores como o vermelho. 

Eu aproximo-me da falha com vista direta para o plano oculto para qualquer um dentro daquela instalação. Apoio uma mão nas rugas da parede, encerro um olho e uso o outro para mirar na flor. Contemplo-a em silêncio. Na quietude que os soldados desejavam de qualquer Classe C. Se ao menos eles soubessem que a prática vale muito mais do que a teoria, eles teriam todas as alas quietas. Bastava ceder às súplicas dos prisioneiros. No caso de ontem, tudo se resumia a mostrar aquilo que eles tanto queriam ver. Garanto que ninguém iria piar. Pois eu nem consigo dizer nada de tamanha incredulidade.

Por alguma razão, recordei-me das palavras dos guardas. Especialmente naquilo que Leo disse. Sobre o facto de existirem outros seres vivos como nós por aí. Exato, seres vivos. Essa foi a palavra que ele usou para se referir também às plantas.

Uma peculiar escolha de palavras. Quer dizer, pelo que percebi, nós também somos seres vivos. Com isto, digo que somos indivíduos que pensam e respiram. E, como tal, vivem. 

Todavia, aquela flor...tenho a certeza que ela não respira ou pensa e que, como resultado, não vive.

Certo?

Mas, se assim é, porque é que Leo disse aquilo. Os soldados não se deviam enganar. Este é o mundo no qual cresceram. Eles são os nossos testemunhos da realidade que só agora consigo vislumbrar por entre a falha na muralha de concreto e betão. Não podem estar equivocados. Ou pelo menos não deviam estar equivocados.

A não ser que estivessem a fazer de propósito para induzir-me a mim e a todos os outros Classe C que também estivessem a escutar a conversa em erro. Ainda assim, se assim fosse, o que é que teriam a ganhar com isso? O que teriam a ganhar a enganar pessoas que nasceram há poucos dias? Já para não falar que os meus olhos comprovam a veracidade da descrição deles. Ao menos a descrição que eles deram das flores, das rosas está certo. E a minha experiência prática está a corroborá-lo.

Portanto não, eles não mentiam.

Assim creio. O que não me deixa tão confortável quanto queria. Sim, leva-me a acreditar que eles não mentiam e, apesar de tudo, não me livra da dúvida. Deixa-me ainda a questionar. A matutar a mesma pergunta, a mesma dúvida, a mesma constatação. O exato e idêntico porquê de antes.

O que é que uma flor e um ser vivo têm em comum?

Observo atentamente as curvas das pétalas no rebordo da detalhada obra da natureza. Mastigo o lábio ao mesmo tempo que inconscientemente arranho as lascas de tinta branca gasta com as unhas da minha mão de apoio. 

A esbranquiçar-me os dedos. A fazer a minha mente viajar por entre o pouco conhecimento que colecionei em aproximadamente um dia de vida. A vasculhar. A buscar e a voltar a buscar. A mastigar o meu próprio lábio no processo. A raciocinar e a processar o que vejo. A piscar o olho direito responsável por este ato de espionagem e a voltar a focá-lo na obra diante dele. A admirar. A passar os meus dedos manchados de branco pelos limites pontiagudos do buraco. A infiltrar o meu dedo indicador no mesmo, a passá-lo por entre o que restou do incidente que orquestrou esta brecha. A evitar encalhá-lo com as outras camadas da parede. A conduzi-lo rumo ao seu destino. Rumo ao toque, ao contacto, à proximidade. À descoberta, à suma e total entrega à aventura, a vivências nunca antes experienciadas ou vivenciadas por qualquer outro Classe C, a uma vida real-

Um estrondo faz-me retirar o dedo do furo e virar-me para trás quase por instinto.

Os meus olhos movem-se de um lado para o outro com urgência maníaca.

Rastreio o cenário.

As outras duas paredes.

A parede à minha direita.

A parede à  minha esquerda.

Todas brancas.

Olho rapidamente para o chão.

Limpo, salvo as impressões digitais dos pés descalços dos prisioneiros que evacuaram o recreio há demasiado tempo atrás.

Há quanto tempo é que sequer estou aqui?

Perdi a noção do tempo.

É a pensar neste tema que passo o olhar pelo solo debaixo de mim, indo desde os meus dedos gordos e nus até à  fronteira que demarca o fim do recreio, até à cancela de metal pintada de vermelho levantada, até aos portões de ferro encarnados, até ao corpo de costas no chão e envolto numa poça de sangue.

Os meus olhos não só repousam na visão à minha frente. Eles cravam-se nela. Cravam-se como nem se cravaram na rosa. Fincam-se naquela imagem nova para mim. Nova ao ponto de nem ter ouvido falar dela durante o dia de ontem, nesta minha curta vida. 

Um homem. Careca. De estatura média. Massa muscular mediana. Com ar de duas dezenas de anos de idade, mas que sei não ter vivido mais de dois dias. Enfiado num uniforme branco comprido a cobrir-lhe os braços, pernas, tronco, tudo exceto a cabeça, as mãos e os pés. Um ser vivo. Metido numa poça do próprio sangue.

Escarlate sangue a envolvê-lo, a molhar as suas costas e nuca. Vermelho sangue a abraçá-lo, a sair-lhe pelos cantos da boca e a escorrer para junto da foz que banha toda a secção anterior do corpo. Rubro sangue a acolhê-lo e a espalhar-se, centímetro a centímetro a afastar-se da fonte que é o corpo. Ruivo sangue a fazer do solo branco um canvas, oriundo de um incidente que eu nem consigo imaginar. Encarnado sangue a escapar-lhe do corpo como o mundo exterior nos escapa à vista, a manchá-lo e a marcar aquilo que presumo ser o seu fim.

Carmesim sangue a traí-lo, pois o fluído que outrora estava dentro dele agora escolhe vazar e trazer o seu fim.

O fim, pois reparo que o seu peito não sobe nem desce, os seus dedos estiraçados não têm espasmos em reação a serem molhados, as suas pupilas estão imóveis, o seu nariz petrificado, a boca aberta a demonstrar os seus dentes amarelados, as sobrancelhas permanentemente presas na exata mesma posição, os glóbulos oculares...baços...baços como os vidros das janelas pelas quais os indivíduos de bata observam as experiências às quais expõem as suas cobaias...às quais nos expõem.

Acontece é que desta vez, a cobaia não foi submetida a nada. E o mundo trouxe-lhe o que presumo que seja...

... a morte.

Na verdade, eu não o conheço. Nunca o vi. Deve ter estado numa cela longe da minha. Não sei, não estou vivo há tempo suficiente para perceber. Porém, sinto pena dele. 

Afinal, olhar para ele é como olhar-me no espelho da cela.

Então, eu quebro a minha passividade. Desato a andar. Reconheço que a rosa e o vislumbre do mundo exterior distraiu-me da minha tarefa de seguir a rotina que me foi atribuída e a todas as outras cobaias. Logo, teria de fazer por regressar aos eixos. Depressa. Antes que os guardas dessem pela minha falta.

Em passada larga, eu circundo a poça de sangue em crescimento sem que suje os meus pés. Por muito que tenha dó dos restos mortais do homem, sei que, se não me despachar, mais tarde ou mais cedo terei o mesmo destino às mãos dos guardas. Podem não esbanjar muito, mas os cientistas asseguram-se de avisar-nos sempre relativamente à  abundância de armas de fogo no arsenal dos soldados.

Lá no fundo, agradeço-os por estas advertências ocasionais. Neste momento começo a ver o uso delas em trazer-nos de volta ao caminho certo a levar. Como são úteis em retirar-nos das distrações hipnotizantes que encontramos no caminho.

A andar rapidamente, deixo para trás o recreio. O buraco. A fenda com um vislumbre inédito do outro lado. De um novo mundo, de um novo início. A vista igualmente inédita que tive da morte. De um fim cuja existência desconhecia.

Não me esqueço do que vi. Limito-me a empurrar tudo para um canto da minha mente. Para um local que seja acessível, facilitando a minha consulta num momento mais oportuno. 

No entanto, enquanto caminho, não consigo deixar de me abstrair do cenário. De me retirar do presente e recostar nos meus pensamentos frontais. Os meus pensamentos acabados de surgir, aqueles que ainda não tive tempo de negligenciar e organizar. E dou por mim assoberbado pelas questões e pelo quão semelhantes são com as que já tenho.

Aquilo era a natureza?

Leo mentia?

Para que serve a flor?

De onde é que veio o buraco?

Quem é que o fez?

Quem poderá ter sido o autor, sabendo que esta pessoa causou a brecha muito provavelmente consciente de que seria punido?

Será que esse indivíduo foi apanhado?

A morte é mesmo um fim?

O que é que aquele homem fez para ficar assim?

O que é ao certo a morte?

Porquê logo aquele homem em específico naquele instante em específico?

E, acima de tudo, a resiliente e teimosa questão: o que é que um ser vivo e uma rosa têm em comum?

Pensei, pensei e pensei, mas não cheguei a lado nenhum. Quando chegou a altura em que julgava estar a fazer algum avanço, os gritos dos soldados À  frente da fila de Classes C cortou-me o raciocínio. A seguir, infelizmente somente me ocorriam linhas e linhas de texto preenchidas com o meu nome.

Orlo.

Orlo.

Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo.

Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo.

Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo.

Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo.

Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo.

Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo.

Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo.

Depois de uma pausa reflexiva é que dei por mim a pensar na poça de sangue. 

No quão vívida era apesar de ser um sinal do contrário. No quão sedutora era. No quão viscosa parecia. No quão fria devia ser, quase tão fria como o chão em que piso. No quão vermelho era.

Tão carmesim.

Carmesim como a rosa que vi através da fresta que nunca deveria ter lá estado.


 
 
 

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