o que procuras?
391 results found with an empty search
- Planta
Eu vivia num quarto sem portas nem armários. Tinha umas 2 janelas. Eu era feliz. Tinha uma pequena planta no centro do meu quarto. Uma ninharia. Eu regava-a todos os dias; com os meus crimes. Pois, sim, com os meus crimes – as plantas e os homens sempre cresceram mais com os crimes, claro está. Tinha uma carrada de corpos e corações humanos no canto do quarto. Era feliz. Regava a planta com os meus crimes – e muito sangue. Mas o raio da planta crescia e extravasava fecundamente para fora do seu vaso; e parecia tão bonita que escondia a sua verdadeira natureza – dissimulava; mentia; parecia honesta. E eu era feliz. E as pessoas às vezes passavam pelas janelas, e viam a planta e sorriam. Era tão bonita. Mas não viam os corpos. Não viam os crimes. Tinha a minha pilha de podridão ali comigo, com aqueles cadáveres e aqueles corações frágeis todos, e havia vezes que me refastelava no sangue todo, em toda a enormidade da minha baixeza vil. Mas as pessoas não sabiam; nem viam. Eu era feliz – as pessoas amavam a minha planta, e eu amava os meus crimes. Desde que não soubessem a minha verdade. Desde que vissem apenas a mentira verdadeira da minha planta e eu escamoteasse a minha verdade mentirosa. Mas a planta continuou a crescer. Crescia, crescia e crescia. Para todos os lados. Mal me conseguia mexer naquele quarto. Espraiava-se pelas paredes, chegava ao teto, espalhava-se por ele como um cancro fértil. E um dia cravou-se na minha carne. Não soube o que fazer. Gritava exasperado com aquele punhal que me cortava o corpo. Os meus crimes. Enleei-me nos seus estiletes, e a planta varou-me no diafragma, nos braços, nas coxas. Talvez uma crucificação. Eu chorava à noites com as dores que me lancinavam o corpo. Mas eu era feliz. A seiva beijava-me os lábios; escorria pegajosa pela minha pele abaixo, vertia e ressumbrava para dentro das minhas chagas e fístulas sangrentas – talvez, de uma forma insondável, também me fizesse crescer. Eu sabia que eu a fazia crescer, que eu era o seu alimento mais nutritivo – a sua panaceia. Ela deliciava-se furiosamente comigo. Fustigava-me o ventre. Corria-me espinha abaixo, fazendo-me estremecer numa constante vertigem. Às vezes caía desmaiado no soalho do quarto, bêbedo com o meu sangue, com a terra daquele vaso húmida. Com os meus crimes. Insalivado e engargantado por aquela planta demente. Sentia os estomas dentro de mim – a abrir e a fechar, a abrir e a fechar. Eu era parte da planta. Osmoticamente um só com ela. Sentia em todo o meu corpo o seu ardor virente e viçoso, a penetrar-me a vida e a sugá-la; a exaurir-me até à última das minhas inocências. Eu deitava sangue para todos os lados, e a planta sorvia-o, ávida. Aquilo tudo era inebriante. A minha cabeça entontecia com as hemorragias toda – um delírio alucinante. Talvez o meu purgatório. Mas eu era feliz. As pessoas passavam pela janela e acenavam com entusiasmo ao verem aquela união apaixonada entre mim e a minha planta. Algumas retinham-se fixos por uns momentos na janela – assombrados com o que viam. Apaixonavam-se pela minha planta pantagruélica, que se dilatava perfidamente pela cal do meu quarto. E eu ali, apaixonado pelos meus crimes. Repassado e todo esburacado pelo que fiz. A minha sentença. As pessoas odeiam o crime, mas almejam o amor – como se de duas coisas diferentes se tratassem. Abominam o crime, repudiam, condenam. Matariam para condenar o criminoso. Mas quando viam aquela planta enorme, fecunda, verde e imarcescível, agarrada apaixonadamente a mim, e me viam a mim entrelaçado violentamente nos seus braços, deliravam num desejo de emulação e fogo de cobiça. E não percebiam porque é que aquilo as atraía tanto, não percebiam a sua essência irresistível – os crimes; sempre os crimes. E o sangue. Um dia meti uma porta no quarto. E as pessoas começaram a entrar. Embriagados pela verdade da minha planta. Mas depois viram os meus corações. E todos aqueles corpos inanimados espalhados pelo chão do quarto. E gritavam em terror. Algumas desmaiavam com a incredulidade e o medo. Corriam infrenes pelo quarto fora como se fossem pequenos animais histéricos e imbecis. Tropeçavam estupidamente nas mil e uma ramificações da planta, nas suas raízes grossas e fecundas, chapinhavam nas poças de sangue, e ficavam de olhos muito abertos e terrificados a olhar para mim, trespassado de cima a baixo, insofismavelmente feliz com o fado que urdi a mim mesmo (e talvez isso aterrorizasse-os ainda mais: o criminoso ciente dos seus crimes; pior, o criminoso apaixonado por eles, meticuloso, premeditado, que se deleita com os seus atos). A fachada caíra: a mentira estava à vista, e a minha verdade não podia ser aceite. O delinquente atreveu-se ao mais barbárico e impensável dos crimes: entregou-se à vida. Mergulhou-a no seu sangue. Fê-la sua. Uniu-se a ela. Por osmose – como com a planta. Deixou-se atravessar por ela; deixou que ela a rasgasse por completo, em nome do amor; em nome do crime; em nome dela. A pena é capital: institucionalização e submissão absoluta à norma. Mais nenhum pingo de sangue será rojado por ti, seu inominável monstro. Como tal, os chuis apareceram-me um dia à porta. Ou talvez terei sido eu a chamá-los. Um homem está sempre a pedi-las quando decide meter uma porta no quarto. Eles eram desfigurados da cara; animalescos. Senti em mim um arrepio que me estremeceu o corpo chagado quando os vi. Um alívio transtornado enorme. Podia sentir as lágrimas sulcarem-me o rosto. E as lágrimas ardiam-me na pele – e eu nunca cheguei a entender se elas foram de felicidade ou de tristeza. Eles entraram abruptamente. E de repente um enorme remorso paralisante tomou conta de mim. O que é que querem de mim?, supliquei. Esteja quieto e calado, pulha, disseram eles. O que é que eu fiz? Afastem-se, vão-se embora, não, não, não, eu não quero isto, não, deixem-me, vão-se embora e tirem-me a porta do quarto, tirem-me tudo, levem-me tudo mas não me levem a vida, não me levem a planta, não me estanquem as feridas, imploro-vos. E eles pareciam não me ouvir. Continuavam a aproximar-se de mim. Cilindravam as raízes da minha planta com os pés, enquanto cuspiam desprezo à minha verdade. Sentia-me febril. As minhas pernas tremiam. O meu estômago desfazia-se num cerrar de vómitos. Comecei a vê-los desfocados – o meu quarto tornou-se uma miragem; uma mera possibilidade, talvez. Não me façam isto, não me façam…, eu…, a minha mentira… eu… Sacaram de uns grandes facalhões afiados: você vai aprender a nunca mais desrespeitar a norma, canalha. Você está doente, está na altura de pagar pelas suas mentiras. Não…, eu… eu só fiz o que…, as palavras não me saíam. O crime estava à mostra. Como poderiam elas sair, quando as palavras lhes pertencem a eles? Merda para as palavras, merda para tudo, o meu erro foi achar que alguma vez poderia algum dia defender o crime. O crime é indefensável, injustificado, indesmentivelmente desarrazoado. Um impulso fecundo que se aborta a si mesmo. As palavras nunca nos poderão salvar – incriminar-nos ainda mais, no máximo. Salvar, nunca. E eu gemia em prantos. Com os meus suores frios e as minhas lágrimas e o meu sangue e a minha planta e a minha seiva e… e tudo. Uma vida toda para quê, afinal? E eles continuavam a rosnar – esteja calado, imbecil. E de repente lançaram os seus facalhões no ar. Desferiram uma golpada na planta, mesmo onde ela me tinha perfurado a pele, ao pé do braço direito. Gritei de horror. E eles deram outra. No braço esquerdo. E eu caí para trás, suspenso pelas feridas nas pernas. Bati com a cabeça no soalho gelado e perdi por um segundo os sentidos. E sentia a carne a arder; a seiva a arrancar-se da minha pele gangrenada. E mais uma. Na perna direita. E eu gritava, gritava de medo, de dor, de assombro. A epiderme ficava-me nos estiletes gordos da planta, e a epiderme dela ficava-me na carne esburacada, e eu sentia desfazer-me aos poucos. A ruína de uma vida. A ruína de um criminoso, ela chega sempre – uma vida toda para quê, afinal? E quando me desprenderam finalmente da planta, fartaram-se dos meus gritos, e deram-me uma cotovelada no sobrolho. Esteja calado, mentiroso nojento, gritaram eles. E outra cotovelada, na boca, e na garganta. Espancaram-me o rosto, socaram-me e pontapearam-me o corpo encolhido prostrado no chão. Sou tão pequeno. Sou tão pequenino e frágil. A grandeza de um criminoso – à luz do dia não se basta para uma semente de verdade. Encolhia-me de vergonha. De remorso. A norma pesava sobre mim. E eu ouvia a planta gritar e suplicar, enquanto era decepada com aqueles facalhões ensanguentados. Eu via aquilo tudo enquanto chorava. Agarrado ao chão, encolhido, minúsculo, como um aborto, com a boca a salivar para a madeira, e as lágrimas, e o sangue – chorava, como nunca chorei. Chorava desesperadamente. E eles não paravam de a mutilar, de a violar com aquelas facas, enquanto riam doentiamente com o sangue e o sofrimento todo. Uma vida toda para quê, afinal? Desmaiei. E quando tornei a ganhar consciência eles agarravam-me com as suas mãos grossas e calejadas de crimes. Puseram-me de barriga para cima. E eu vi o lampejo dos seus facalhões outra vez, e o meu corpo vacilou. Esventraram-me ali. Esquartejaram-me, tiraram-me tudo o que tinha. Fizeram-me esvair em sangue, enquanto me gritavam imprecações e impropérios. Cuspiram-me no corpo despido, na minha nuca desprotegida que chorava. Eu era tão pequenino. Mas era o monstro – os monstros são sempre os mais pequeninos e indefesos. Tinha de sofrer. E sofri. E deixei que me arrastassem o corpo inconsciente pelo corpo, enquanto eu me derramava em sangue. Gritei. Gritei até morrer, talvez. Deixaram-me prostrado no soalho, todo aberto. Espraiado à vida. Foram-se embora. Fiquei para ali, moribundo. Sentia o peso da morte sobre mim. Adormecia devagarinho, devagarinho. Os meus olhos ficavam cada vez mais pesados. Entrevia pelas minhas hemorragias e pelos meus hematomas todos pedaços cortados da planta. Dezenas de pequenos pedaços da planta. Dezenas de pequenos pedaços meus. Espalhados e atirados por toda a parte. Como eu. Chorava. Mas talvez correra pelo meu rosto um último sorriso. O último devaneio feliz do criminoso. Esperneei-me e estrebuchei-me no meu esvaimento para tentar agarrar um dos pedaços da planta, ali mesmo à minha frente. Consegui agarrá-la. E quando o fiz senti-me finalmente em paz. Uma vida toda para quê, afinal? Adormeci rapidamente. Serás para sempre minha. Que morra, mas que leve comigo um fragmento teu. O mundo ensurdeceu-se à minha volta. O sangue já estava quase todo no meu chão. Ouço como de debaixo de água. Mas pela mudez do meu quarto conseguia entreouvir algo no corredor. Um rumor. Uma música talvez. Tocava de leve pelas paredes. Abraçava-se às coisas, e fluía pelo ar. Entrava no meu quarto. De repente percebi. Reconheci a melodia. Eram as nossas músicas preferidas. Ecoavam nos corredores, de fininho. Ecoavam até à infinidade do espaço. Coroavam-me a morte de uma saudade mutilante. Chorei descontroladamente. Chorei delirantemente até perder os sentidos. Chorei como só um mentiroso compulsivo chora. Como um infante. Um recém-nascido. Tu lembras-te? Se ouvisses as nossas melodias no corredor ao pé do meu quarto, também chorarias por mim? Lembrar-te-ias? Será que me vês aqui espojado no chão? Agarrado à minha vergonha. À minha loucura. Ou serei só eu que me (des)fiz neste espetáculo ridículo de sangue e de crimes para morrer esventrado agarrado ao teu último pedaço? Ao último pedaço nosso. Ou serias tu um dos chuis? Talvez tenha sido mesmo eu a chamá-los. Talvez tenha merecido tudo isto. Será que poderias sentir comiseração uma última vez por aquele que te trouxe todo este inferno? A vida é só para os que não transgridem. A vida é só para os que não a vivem. Tu lembras-te? Chorei doentiamente até perder os sentidos. E morrer, talvez. Uma vida toda para quê, afinal? Lembras-te? Do nosso carro, os dois à frente, ninguém atrás. Naquela reta sem fim. Na reta infinita. Éramos só nós, o mundo, o nosso carro e aquela reta. À noite. Sempre à noite. E tu gostavas tanto quando eu acelerava desenfreadamente. Sentias o arrepio doce que te corria peito abaixo até ao ventre ensanguentado. E apertavas as pernas uma contra a outra – adoravas a sensação quando íamos os dois no carro. Eu acelerava, desmedidamente por aquela reta adentro, e rasgava-se no teu rosto o mais macabro e desaforado sorriso que eu alguma vez vira. O maior sim que eu alguma vez lera nos versos de alguém. E os postes de luz que passavam repetidamente sobre nós eram como súbitos ilhéus de lucidez e claridade no meio da nossa obscuridade. E na rádio davam as nossas músicas preferidas, de fininho. Ah, as nossas músicas. Essas melodias que sempre nos coroaram a vida com a descomplicação do amor. E eu acelerava cada vez mais, e olhava para ti enquanto o fazia, com a minha mão na tua coxa fremente. E sentia-te cada vez mais excitada. O peito arfante, o sorriso descontrolado, as pernas que tremiam. Fechavas os olhos num tremor de loucura e demência apaixonada. E deixavas que eu acelerasse ainda mais, e abrias a janela. E deixavas que o vento te cortasse os anzóis negros do teu cabelo. Sorvias o amor do mundo num só trago. O amor todo no teu suspiro desalmado. A possibilidade da salvação num corpo. A aparição do sangue. Mas um dia distraí-me. E escancarei o carro todo naquela reta. Lembras-te? Tu nunca mais quiseste andar comigo. Demoraste meses até seres capaz de abrir a porta do carro novamente. Quando voltámos a andar não era mais a reta infinita a que estávamos habituados. Eram curvas apertadas e cruzamentos ininteligíveis. Becos sem saída. Estradas de terra batida intransitáveis. Subidas e descidas abruptas. Nunca mais foi a mesma coisa. Mas nós lá atinámos outra vez. Atinávamos sempre. Andávamos por aquele encruzilhada de estradas de um lado para o outro e a certa altura até lhe apanhámos o jeito. Apanhávamos sempre. E talvez houvera mesmo uma altura onde eu julguei ver ecos de um sorriso teu. Aquele sorriso passado, consumido em loucura e desejo no teu rosto, enquanto eu tentava acelerar naquelas sinuosidades todas. E eu tentava, de facto. Deixava o pé afundar-se no acelerador. Mas tu imploravas para que eu parasse. Não éramos mais capazes de andar rápido. Nunca mais foi a mesma coisa. Os acessos da tua loucura cega eram submersos pelo medo. Pela desconfiança em mim. O medo das minhas mãos no volante. Tu já não eras capaz de fechar os olhos e deixares-te ir desamparada no banco enquanto eu acelerava. As tuas pernas já não tremiam premidas uma contra a outra. Acabou tudo naquela nossa última descida. Lembras-te? A terra toda abriu-se diante de nós. Foi tudo devorado. E tínhamos à nossa frente apenas uma descida vertiginosa. Enorme. Não lhe víamos o fim. Talvez fosse infinita – como a reta. Descia até às profundezas do mundo. E eu lembro-me do teu olhar espavorido. Agarravas-te à porta cheia de medo, mas eu tentava ignorar. Coloquei as nossas músicas mais altas. E comecei a acelerar. Vimos naquela descida infinita a nossa possibilidade de salvar tudo. Mas tu entraste em pânico. Pedias para eu acelerar numa voz trémula, de olhos fechados, enquanto te encolhias no banco. E eu acelerava. Como nunca tínhamos acelerado desde o acidente. E eu ouvia-te chorar, enquanto me pedias para parar. Mas quando abrandava pedias que acelerasse. O medo desgastava-te violentamente, e eu vi-te naquela descida envelhecer séculos. Os teus anzóis negros grisaram-se, e o teu rosto turvou-se de rugas e de uma pele flácida mortificada. Sucumbiste à tua contradição irreconciliável. Sucumbiste à maldição com que te floreei. Acelerei mais. Estávamos a descer freneticamente aquela estrada, quando tu não aguentaste – quando tu sucumbiste. Abriste a porta do carro e atiraste-te. Morreste degolada. Matei-te degolada. Uma vida toda para quê, afinal? Acordo de súbito. E está tudo branco. Desperto agarrado ao soalho do meu quarto. Não há mais corpos. Não há mais corações. Não há mais sangue. Não há mais planta. As minhas vísceras encontram-se todas dentro de mim. Levanto-me assustado. Olho freneticamente para todo os cantos do quarto – uma porta, duas janelas, e uma brancura inenarrável. Uma normalidade inquietante. Deito-me na cama e choro. Choro sem motivo. Como um longo grito no escuro – ainda me ouvirias se eu o fizesse? Ecoam nos corredores músicas e melodias que já não são as nossas. Ou talvez continuem a ser – apenas se desprenderam de ti. Não sinto o sangue. Tremo de repente a pensar nos chuis. E se eles voltarem? E se eles voltarem? Adormeço dormente, a pensar na possibilidade de eles voltarem. Se eles voltarem, provavelmente seríamos amigos. Estou estéril. Sou estéril. Uma esterilidade alva – como a brancura deste quarto. Choro a minha inocência. Os crimes acabaram. Paguei a minha sentença. Caio da cama. Agarro-me ao meu tapete, e choro em prantos, soluço num terror visceral. Os crimes acabaram-se. Rebolo-me no chão e acabo de barriga para cima, a olhar para o meu teto. Igualmente branco. Cândido. E penso, Talvez viver assim não seja assim tão mau. Talvez ter um quarto branco seja o que eu mereço. Toco no centro do soalho, onde antes vivia a minha planta. Onde antes vivia eu. Percorro as suas raízes imaginárias. Os seus estiletes. Tento imaginar os estomas dentro de mim outra vez. Falho num exercício infantil de imaginação. Não consigo imaginar mais. Sou um eunuco. Tento imaginar a planta na sua grandeza. Em toda a sua fecundidade passada. E de repente reparo nas marcas do teto. Onde a planta se tinha colado, com as suas ventosas transbordantes de seiva e de sangue. Braços alongados castanhos que percorrem os cantos de todo o meu teto. Sorrio em desespero. O crime persiste. Uma vida toda para quê, afinal.
- MAIS UMA DA NOVA ESCOLA DA LEI
Caros leitores, Este é um sticker do meu grupo de turma do WhatsApp, a par dos muitos que são partilhados sobre os vários e várias professoras, que, para não ser processada (sendo que estamos todos no curso certo para isso), garanto que não ofendem, não difamam, são apenas caricatos e dão a conhecer um pouco sobre cada um deles. Contudo, estou a desviar-me do rumo. Estou aqui para relatar o que, para mim, constitui este dito “Mais uma da NOVA Escola da Lei”, que, de resto, varia de aluno para aluno, e acredito mesmo, que também varie de funcionário para funcionário, e no extremo, e com algum descaramento, de professor(a) para professor(a). Como a página do Instagram gosta tanto de anunciar, a NOVA School of Law (a designação em inglês também já deu que falar e já foi para alguém o seu “Mais uma da NOVA Escola da Lei”), encontra-se nos lugares mais elevados de quase todos os mais prestigiados rankings educativos. Assim, calcular-se-ia que não haveria nada a apontar nesta faculdade de excelência. Mas não é bem assim. Ora, o meu “Mais uma da NOVA Escola da Lei” é a NOVA SOL e o seu Cartão de Estudante. Pelo que os gatinhos que passeiam na faculdade me contaram, dos últimos anos de curso, apenas uma rapariga (estrangeira) conseguiu obter o seu Cartão. Como, gostava eu de saber. Sendo que já fui aos Serviços Académicos presenciais perguntar sobre o dito cujo, e me redirecionaram para o Santander, banco com que a faculdade estabeleceu parceria para emitir os Cartões (como a Universidade de Lisboa e a Universidade Católica Portuguesa estabeleceram parceria, só que com a Caixa Geral de Depósitos, que, pelos meus parcos conhecimentos e informações privilegiadas – nem tanto – já os alunos receberam o seu Cartão pouco depois do início do seu primeiro ano letivo). Esperançosa, fui ao balcão Santander, mesmo ao lado da nossa faculdade, o que veio mesmo a calhar. Ora, os funcionários redirecionaram-me para os Serviços Administrativos da Faculdade, porque são eles os responsáveis, declararam. Que grande palhaçada. Enviei email para os Serviços Académicos. Enviaram-me um link para preencher com os meus dados. Contudo, este link serve para a dupla modalidade de Cartão Estudante com conta bancária associada. Mas eu não quero conta bancária associada, já tenho a minha. Liguei para o Call Center do Santander. A “senhora” que me atendeu, que só me apetece chamar de incompetente e outros nomes, após serena e calmamente eu lhe ter exposto a situação, começou a gritar comigo, a mandar-me (quem é que ela pensa que é?) para os Serviços Académicos da Faculdade. Após muito se debater e barafustar, desligou-me o telefone na cara, e eu não resolvi nada. Frustrada e melindrada, tentei fazer uma reclamação online no Livro de Reclamações, mas ou sou eu que sou muito incompetente e não percebo nada disto, ou então é algo novamente criado pelo complicómetro tuga, que ninguém consegue perceber e desiste pelo caminho. (Não, não concluí a reclamação). Adiante. Depois de me ter exaltado com isto tudo, liguei outra vez para o Santander. Desta vez, Deus abençoou-me com uma senhora extremamente educada e competente, que se prestou logo a pedir perdão pela (…) colega e a resolver com a rapidez e eficácia desejáveis a situação. Ora, guiou-me, como um pastor guia o seu rebanho pelo website desta Instituição Financeira, e lá pedi APENAS o Cartão de Estudante. Afinal, é possível, se não se amarrar o burro e se não se autoproclamar a detentora de toda a verdade, fornecer-me uma solução (quem me dera ter fixado o nome da primeira “senhora”). Contudo, e isto sem culpa dela, parece-me que não vai dar em nada, porque se pede o cartão de maneira muito simples, sem dados pessoais quase nenhuns, afirmando que o Cartão vai ser emitido e enviado para os Serviços Centrais da Faculdade. Procedendo tudo isto, enviei email aos Serviços Académicos a relatar as minhas aventuras e a pedir que me informassem da chegada do meu Cartão, para o poder requisitar. Aguardo resposta ainda. E os meus queridos e prezados leitores, também aguardarão pelos próximos capítulos. Pois, prometo não vos deixar com um final aberto. P.S.: escusado será mencionar a importância do Cartão de Estudante, mas, mesmo assim, fá-lo-ei e recordar-vos-ei a todos, para que a quem de direito se consciencialize e possa resolver esta situação com a máxima brevidade e urgência (preferencialmente para ontem), para que todos os alunos desta ilustre instituição sejam restituídos do seu Cartão de Estudante. Ora, ponto número 1: serve de documento de identificação na faculdade (apesar de eu saber que este ponto não há de ter muita utilidade — mas poderia vir a ter, como por exemplo, para a realização dos exames, para a identificação do aluno). Ponto número 2: para os mais pragmáticos e práticos, este Cartão providencia várias bonificações e vantagens em diversos serviços e situações exteriores à Faculdade (já tive de pagar um bilhete por inteiro na Rede Expressos, porque não tinha o Cartão. Sim, eu sei, ridículo, é 1 euro a mais, mas o português é de si forreta, e ajuda a minha argumentação. Também poderia ter mostrado a Área Reservada, mas estou a defender o lado oposto e NÃO quero — e quem não tem dados móveis?). Ponto número 3: para os mais emproados e snobes (quiçá eu me insira nesta designação), apenas quero o cartão de recordação sentimentalista (como as minhas amigas gostam tanto de gozar comigo, afirmando que levarei o letreiro da Faculdade quando acabar o curso – isto porque elas já presenciaram, inúmeras vezes, a minha obsessão com o merch da Faculdade), mas também para apresentar o meu Cartão da NOVA SOL, com o maior orgulho de ser sua estudante, e com o merecido show-off (que, de resto, o meu namorado e a minha melhor amiga estão fartos de me mostrar os seus e eu quero competir com eles, porque não gosto de ficar para trás). Concluo, com o veredicto de que toda esta situação é muito caricata. E se já perdi um ano a tentar obter o meu Cartão, este ano azucrinarei outra vez o juízo a muita gente para o obter (or die trying).
- Patente do Amor
“Acho que gosto de me prostituir emocionalmente”, digo ao Afonso. Ele ri-se e encosta a cara à janela da carruagem do metro, enquanto olha para mim. Estamos os dois levemente embriagados por causa de uma festa que a Mafalda e o Rodrigo deram em honra da compra da casa nova. Sim, a Mafalda e o Rodrigo têm dinheiro para comprar casa em Lisboa, impressionante, eu sei. “Gosto das pessoas muito facilmente. Gosto de colecionar cérebros, apaixono-me rapidamente por eles. Uma amiga minha disse-me que não via ninguém a apaixonar-se pelo dela, mas mal sabe a tonta que eu o tenho guardado numa gavetinha, decorada com brilhantes e estrelas. Para mim, é comum tropeçar num cérebro e querer metê-lo logo numa caixa ao lado do dela.” O Afonso sorri carinhosamente e diz: “E, eu que pensava que eras uma mulher independente, que não se apegava às pessoas assim e que se focava na carreira e no trabalho! Onde está o teu feminismo?” O homem que estava no banco ao lado do Afonso sai da carruagem, eu levanto-me e sento-me no banco abandonado por ele. “Ó, sabes muito bem que esse discurso me irrita. Repugna-me a importância que se dá ao indivíduo na nossa cultura atual e em certos tipos de feminismo. Quando falamos que queremos estar numa relação com alguém o que nos dizem é: “Para quê? Estás tão bem sozinha! Aproveita o tempo enquanto ainda és jovem para seres independente!”, como se partíssemos da premissa de que a nossa liberdade é, automaticamente, subtraída por gostarmos de alguém. Acho que a minha vida sem a comunhão com os outros seria menos satisfatória, independentemente da “quantidade” de amor próprio que tenha.” O Afonso faz uma expressão de contentamento, como se a nossa conversa fosse um jogo de ténis de mesa, em que ele sabe calcular a força com a qual eu lancei a bola, antes sequer de eu a ter lançado. Ele mexe-se no banco e fica mais perto de mim, enquanto uma mulher com uma criança ao colo se senta à nossa frente e o bebé entretém-se, mexendo no pendente do colar que ela tem ao pescoço. A mulher olha para mim e esboça um sorriso. Eu retribuo-lhe a expressão e ela vira-se para o bebé e diz, enquanto lhe toca na cara: “Aquela senhora também tem covinhas como tu!”. O Afonso leva o dedo indicador às minhas bochechas e diz, entusiasticamente: “Pois tem!” Sinto a cara quente e sussurro-lhe ao ouvido o óbvio: “Estás bêbado.” Ele confirma-o e acusa-me do mesmo. “Sabes, Afonso, acontece-me muitas vezes olhar para um quadro e sentir um sentimento incontrolável de raiva para com o autor da obra. Isto, porque o artista descobriu uma coisa que eu só percebi que estava escondida em mim depois de olhar para a pintura, depois de ele a descobrir primeiro. É, essencialmente, inveja. Inveja de não me ter lembrado daquilo antes, de não o ter pintado antes, aquilo que é uma coisa tão minha, mas também tão dele. Acho que sinto isso relativamente ao Amor também. Sei que não fui eu que inventei o Amor, mas eu sinto-o como se ele fosse meu, como se ele fosse invenção minha, como se eu o tivesse pintado com todas as cores do universo, para depois voltar a cobrir tudo de branco, enquanto deito lágrimas dos olhos, porque é isso que faço sempre. ” Ele faz-me uma cara de pena, dirigida, essencialmente, ao que eu disse por último e retorque: “Ser criador do Amor é soberbo! Imagina venderes a patente do amor, ficavas rica!” “Acho que estou sempre a vender a patente do meu amor, mas desta vez do meu amor com letra minúscula. As vendas é que não correm muito bem, o produto acaba sempre por valer menos do que o preço pelo qual o consumidor está disposto a dar. Claro que, por valer menos não quer dizer que valha pouco.” Confuso, pergunta-me: “Porque é que achas que o teu amor tem valido menos do que aquilo que estiveram dispostos a pagar por ele?” “Aquilo que mais me chateou nas minhas relações anteriores foi o facto de os meus parceiros me terem colado a uma imagem de uma personagem secundária que é divertida e cintilante, cujo papel no filme é apenas ajudar o protagonista a encontrar a felicidade. Quase todos amaram a ideia que criaram de mim, muito mais valiosa, e não amaram a Catarina em si.” Ele acena afirmativamente, mostrando que compreendeu. “Romantizar-te em prol de desejos egoístas, invalidando e ignorando o que queres e o que sonhas é cruel, mas não será impossível amar a Catarina em si? O teu eu primário?” Finjo que fiquei ofendida, tocando com a mão no peito e dizendo agudamente: “Uau, obrigada pela parte que me toca, não sabia que era uma pessoa impossível de amar!” O Afonso revira os olhos. “Sabes que não falo nesse sentido. Acho que é impossível amar qualquer pessoa em bruto, nós apaixonamo-nos sempre pela perceção que temos uns dos outros, pela ideia que criamos. Seria errado eu dizer que gosto de ti como a Mafalda gosta de ti. A Mafalda gosta da perceção que tem de ti, que é diferente da minha. Qual destas perceções corresponde ao teu eu primário?” “Nenhuma” “Exato. Para mim, a realidade e o amor são contraditórios. Quando amas, amas uma versão distorcida daquilo que é a realidade. É como se cada um de nós tivesse óculos personalizados. Podemos estar a olhar todos para a mesma coisa, mas se trocarmos de lentes com outra pessoa aquilo que vemos é, astronomicamente, diferente.” O bebé deixou cair o colar que a mãe, anteriormente, tinha retirado do pescoço para ele lhe poder mexer livremente. Eu inclino-me para o apanhar, sentindo que a minha cabeça está presa a um saco com pedregulhos, e devolvo-o. O bebé esboça-me um sorriso, enquanto encosto a cabeça ao ombro do Afonso. Continuo a olhar para a criança, que mexe nas contas do colar, e digo: “Isso até é bonito. Pensar que cada uma das pessoas que gostam de mim tem a sua própria Catarina para amar. Dantes deprimia-me a ideia de ninguém conseguir gostar do meu eu em bruto.” Ele toca-me no joelho e diz: “Para isso acontecer, era preciso encontrá-lo.” “Achas que ele anda fugido, Afonso?”, levanto a cabeça do ombro dele, olhando-o nos olhos, como se, ao fazê-lo, conseguisse encontrar a resposta que procuro neles. “Penso que todos os nossos eus em bruto andam fugidos. Foram comprar cigarros e nunca mais voltaram, nem deixaram rasto para os podermos encontrar. Aquilo que somos anda perdido dentro de nós e, talvez, o desejo mais profundo do ser humano seja descobrir o que não se deixa encontrar.” Contento-me com a resposta, inclino a cabeça para trás e fecho os olhos e decido que, talvez, vá pôr o cérebro do Afonso numa das minhas caixas.
- O comboio da vida não tem paragens
É comum presumirmos, na nossa inocência, que existe apenas um de nós no universo. Por incrível e inacreditável que pareça, existem vários e diversos eus a vaguear, por aqui e por ali, a criar laços e a interagir com o mundo, todos dentro de um mesmo ser, um mesmo complexo de carne e osso. Talvez seja por esta ideia de multiplicidade interior que, sempre que me sinto obrigada a falar do ser-humano, o descrevo como diverso, multifacetado, e, até mesmo, fragmentado. Acredito vivamente que cada um de nós possui muitas vidas, muitos eus a coexistir dentro de si (nem sempre em harmonia). Alguns são companheiros de longa data, habitam esta carcaça terrestre desde o primeiro momento, e, dificilmente, desaparecerão antes dela. Outros, mais tímidos, apenas aparecem quando lhes convém, preferem manter-se longe dos holofotes do momento, e deixam as luzes da ribalta para os mais rotineiros. Há ainda aqueles que desconhecemos, que ainda não se apresentaram, mas que, eventualmente, se mostrarão para demarcar uma nova etapa da nossa vida. Apesar de múltiplos, todos desempenham uma função, todos têm o seu lugar dentro de nós. Excluir um seria chacinar um pedaço daquilo que consideramos ser. Todos os momentos, sentimentos, pensamentos e ações associados cairiam num sono profundo, uma lembrança daquilo que outrora fomos. Mas é necessário, se não crucial, o conjunto completo para fazer a máquina funcionar. Vejamos: um comboio apenas funciona com os seus maquinistas. Sem eles, a locomotiva permanece imóvel, estancada no tempo e no espaço. No entanto, já que pegámos nesta metáfora, podemos ir mais longe, estender o olhar para as suas carruagens, os seus passageiros. No comboio da vida transportamos memórias e vivências, mas também pessoas, que, de alguma forma, se destacaram pelos vestígios que deixaram para trás, com cada um de nós. Cada parte de quem somos dita uma porção do destino final destes passageiros, tem a inevitável responsabilidade de lhes assegurar o lugar correto e garantir uma confortável estadia. Caso contrário, o que os impediria de sabotar a nossa locomotiva e tornar a viagem mais morosa e difícil do que é necessário? O comboio da vida não foi concebido para efetuar paragens. O seu ritmo deve ser constante, focado no progresso, de forma a atingir o destino último de todos os seres humanos. Mas, por vezes, a máquina sofre as suas interferências, avarias e coisas do tipo, nas quais raramente possuímos mão: fazem parte das facetas do destino. É aqui que nós, múltiplos e diversos, entramos para cumprir a única tarefa que nos foi incumbida: manter a máquina a funcionar até à estação final. Mas o comboio é, mais uma vez, apenas uma metáfora, um recurso estilístico que os escritores sempre tiveram um especial apreço por utilizar. Existem outras formas, mais cruas e insípidas, de descrever a vida e as suas reviravoltas. Prefiro manter este panorama vago e criativo, garantir que cada um retira a interpretação que acredita ser mais indicada, que se encaixa melhor às suas vivências. Retiro-me apenas com uma questão à qual ainda não encontrei resposta adequada: o comboio da vida não funciona sem maquinistas… funcionará sem passageiros?
- Amor: um fogo que arde sem se ver?
O que é o amor? Porque o sentimos? Em que nos transforma? Camões diria que o amor “é fogo que arde sem se ver”. Não estará ele certo? Amor aquece-nos o coração, mas também o queima e magoa. Aparece quando menos o esperamos, fica à espreita num canto da porta pelo momento perfeito para fazer a sua entrada e, quando a faz, leva consigo tudo o que temos para entregar de nós. Defini-lo é trabalho árduo para qualquer um. É um sentimento diverso, repartido, fragmentado. Uma emoção complicada, que faz jus à complexa natureza humana. Toma como palco a nossa vida. O enredo é ele que escolhe. É ator e encenador de toda a peça, e só ele conhece o desenlace da ação. Acabará em tragédia? Como Romeu e Julieta ou Amor de Perdição . Ou entregará um final feliz? O final pelo qual todos anseiam. Amor é, portanto, um arriscado jogo de apostas, em que podemos perder mais do que tínhamos para dar, ou ganhar mais do que sequer desejávamos. Todos participamos nesta brincadeira, nesta encenação. Não há sequer como recusar: no seu campo, o amor funciona como um verdadeiro tirano, não ouve a lógica da mente e controla o coração como bem entende. Portanto, que mais fazer se não o aceitar de braços abertos e cabeça erguida? Lutar contra ele é uma batalha perdida. Tentar destroná-lo requer esforço desmedido. Nem todos podemos ser estóicos e epicuristas, procurar atingir a aponia e a ataraxia na vida, ideais tão afastados da essência humana. Deixemos antes estas filosofias gregas para Ricardo Reis e Lídia e observemos, contentes ou descontentes, a tragédia ou a comédia que ele nos teceu, como espetadores, como atores, mas nunca como dramaturgos, no palco da vida. Amor é, será e deixará de ser. Amor tem-se, escreve-se, pinta-se, fala-se, exprime-se, demonstra-se. Mas amor não se controla, não se restringe, não se evita. Por vezes finge-se, por vezes engana, por vezes mente. Amor é, na sua essência, um fogo que arde, chama que se sente, uma brasa impaciente, lume impertinente.
- Crescer: um olhar atento ao coração
Francisco, carinhosamente chamado pelos pais de Chico, sempre foi um menino extremamente resguardado, assim como muitos da sua idade: circunscritos por uma bolha estanque de inibição, constituída pelo distanciamento em relação aos outros e pelo refúgio em meios impessoais, protótipos de uma suposta interatividade social, para “fazer passar os dias”. Em sua escola, mantinha conversas com um ou outro, sempre portando uma forte armadura social, sem externalizar os seus sentimentos, pois, para ele, bastava abrir-se com os pais, o que de si só já exigia um grande esforço. Neste mundo tão confuso, as faces o assustavam; contactá-las e encarar reações em diferentes medidas seria muito perigoso. "Então e se fizessem uma cara feia? E se discordassem mesmo da maior frivolidade que eu poderia inventar? É muito arriscado, prefiro estar acompanhado dos meus brinquedos e videogames , que nunca me surpreendem". Apesar da nítida introversão, os pais satisfaziam-se e permaneciam estáticos, pois Chico sempre foi muito bem comportado, como todo o pai gosta: "te recompensamos pelo seu bom comportamento, compramos mais um jogo ou o novo lego". E assim permaneceu até aos seus 16 anos, nesta constante ociosidade, caracterizada pela profunda solidão disfarçada pela imagem do menino bom e obediente. Todavia, a perspetiva se altera drasticamente: nesta altura da vida, surgem as dúvidas profundas (ou "perguntas últimas") quanto ao seu lugar no mundo e ao sentido final da existência e, com o ingresso à faculdade no retrovisor, Chico, incentivado pelos pais, decide adotar outra postura: “Será que essas faces são mesmo tão assustadoras?” "Que tal dar uma chance às pessoas?" Então, ao chegar à faculdade, procurou logo dar-se com todos. Prática-solução de um passado tímido e sossegado, caracterizado pelo olhar aos próprios pés e pela pura inatividade. De fronte com qualquer pessoa, esforça-se ao máximo para usar as palavras mais certeiras e usuais no intuito de não a deixar escapar. É assim que, paulatinamente, constrói um forte cimento relacional sobre o terreno baldio e inócuo que lhe é reminiscente. Recorre aos meios mais fáceis e inofensivos ao seu dispor (hiperboliza sentimentos fugazes, acelera processos, põe uma estrelinha verde no Insta, etc) na virtude de conservar essa fulgurante sensação que lhe é inédita. Nesse sentido, no regresso à casa, o seu maior alívio é ter encarado as faces de forma corajosa, porém com a segurança de que não saiu por aí a tocar em corações, pois esses, ainda, são inatingíveis. Está a apreciar intensamente essa vida de contar cartas e registar o novo inventário. Afinal, quem não se vislumbra com a repentina metamorfose da solidão diária para estar sempre rodeado por quem nomeia como amigos? Ergue-se então a pergunta: "esta metamorfose, contudo, é apenas repentina ou também apressada?" Para Chico não importa, pois é como se tivesse nascido outra vez: sai de seu invólucro solitário assim como saiu do ventre de sua mãe e está agora a ver a vida com o mesmo olhar fascinado que portava quando se abriu ao mundo em uma sala de um hospital. Nesse sentido, completamente encantado por estar a “ver a vida pela primeira vez”, opta por adotar uma simples e otimista interpretação: retira do pouco que sabe de cada figura que recentemente conheceu (essencialmente a face) a conceptualização mais solene e pura do Ser Humano, fruto de uma pretensa gratidão por terem, de certa forma, preenchido imediatamente o vazio terreno de sua alma, isto é, o terem conduzido ao seu renascimento para o Mundo. Ademais, mesmo que pense que está iludido ou demasiado inocente, não lhe será importante, devido à proeminência desta inédita e confortável abordagem. Atentamente a esse ponto, temos nós o poder de conceder juízo sobre como Chico está a abordar a sua vida? Penso que não. É comum que optássemos por subir no estandarte de nossa arrogante experiência pessoal, constituída por todas as nossas deceções, incertezas, inseguranças e pequenas ambições, e julgássemos o menino, atribuindo-lhe uma pueril ingenuidade, dissonante de sua já não tão tenra idade, mas afinal, qual de nós, benditos experientes da vida, nunca teve a vontade de retornar à própria infância para escapar desta sóbria e crua realidade, que tanto nos machuca e nos pauperiza? Qual de nós nunca desejou retroceder a um tempo em que não tínhamos nem sequer a audácia de conhecer as pessoas suficientemente para nos dececionarmos? Esse é um sentimento corrente, um aparente escapismo das corriqueiras situações que tanto nos afligem. Precisamente, é o olhar cuidadoso às fotografias da infância que sempre podem nos animar, provocando-nos um distintivo sorriso inocente em meio ao diário esmorecimento. Todavia, mesmo que não seja completamente honesto de nossa parte julgar Chico, é possível aduzir que a sua prática não é duradoura e, ainda por cima, não leva a um correto realismo, no melhor, colabora com uma efêmera utopia. Considerar os indivíduos apenas ao nível de sua epiderme significa obstar-se completamente à verdade inextirpável de que todos os indivíduos atribuem sentimentos aos factos que os rondam consoante o seu coração , ao passo que corrobora a realidade premente de que os mesmos se revestem das mais sofisticadas armaduras para acobertar as suas emoções (provenientes dos sentimentos) no sentido de produzir imagens-tipo para a tácita anuência de terceiros. Todos os indivíduos percebem, em certos momentos decisivos, de escala temporal indeterminada, que a força interior que nos conduz exige um olhar mais complexo, que não se satisfaça simplesmente com estas faces produzidas e comuns, mas que foque nos corações ferventes determinantes à nossa conduta (é o “tudo bem?”*, a preocupação intimista com o outro). Isso para elucidar a existência de duas diferentes realidades, uma mutável remetente ao exterior e outro singular e imensurável, ligada ao nosso coração ("interior"), que devem ser cuidadosamente analisadas e distinguidas, partindo, em adição, de um olhar revestido do mínimo preconceito, a "pobreza de espírito", o que nos leva a igualmente valorizar a conduta levada a cabo por Chico na faculdade, caracterizada por ser pura (não superficial) e dissociada de preconceções. Portanto, o "bom e comportado" rapaz a qual nos detemos, agora que é corajoso o suficiente para encarar as faces, deve aprender a olhar através delas, para descobrir uma bonita realidade. Esse passo não trivial é indispensável, pois, apesar de desafiador, (devido às faces cada vez mais intimidantes) e não-linear, é fulcral para o crescimento do Ser Humano, elemento capaz de considerar a realidade de forma total. Assim, finalmente, o Chico torna-se Francisco! “Não tenhas medo da quebra de expectativas! O teu amadurecimento requer algo além do mero reconhecimento de sorrisos fáceis e fisicalidades intencionalmente dóceis, grita por sentir o fervor do coração, mesmo que te queimes". *A própria expressão refere-se à busca da totalidade da realidade de seu interlocutor, apesar de que banalizou-se, sendo dita automaticamente e descarregada de seu significado original.
- Uma união (im)provável
Existe a narrativa comum de que grupos religiosos e grupos Queer são como cão e gato, que funcionam como polos opostos, não existindo quaisquer alianças entre os dois. O que o livro Queer and Religious Alliances In Family Law Politics And Beyond pretende, ambiciosamente, revelar, segundo Nausica Palazzo, uma das editoras e autoras da obra, é que tal narrativa poderá conter algumas falhas, alguns recantos escuros que são necessários iluminar. O Jur.nal esteve presente no lançamento do livro que se realizou no dia 12 de junho, pelas 16 horas. No evento, participou a Professora Doutora Mariana França Gouveia, que nos elucidou sobre a importância da Nova School of Law promover e dar espaço a eventos como este. Para além disso, tivemos o prazer de ouvir os autores da obra: Jeffrey A. Redding, da Universidade de Melbourne; Nausica Palazzo, da Universidade NOVA de Lisboa; Robin Fretwell Wilson, da Universidade de Illinois; Noy Naaman, da Universidade de Toronto; Ayelet Blecher-Prigat, da Academic College of Law and Science e Laura Kessler, da Universidade de Utah. À discussão, juntou-se Ruth Halperin-Kaddari, da Universidade de Bar-Ilan e Adrienne Davis, da Universidade de Washington em St. Louis, ambas convidadas para comentarem o projeto. Segundo Palazzo, o livro apresenta a possibilidade de grupos conservadores religiosos e grupos progressistas poderem trabalhar em conjunto para expandir o reconhecimento do Direito da Família para além da família tradicional, “patrocinada” pelo Estado. Salientou que vários grupos religiosos demonstram interesse em promover estruturas familiares alternativas. Por exemplo, certas comunidades muçulmanas e mórmons ao defenderem a poligamia vão de encontro com o interesse de grupos Queer em superar a incorporação da monogamia na lei estadual. Para além disso, o anseio de conservadores religiosos norte-americanos por reformas em favor de famílias não conjugais e contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo coincidem, também, com certos esforços queer, destinados a legitimar amizades e famílias que se distanciam da dita “tradicional”. Jeffrey Reading mencionou o facto de o livro levantar questões cruciais no que toca a política queer, ligadas aos principais desenvolvimentos da matéria em questão, ocorridos nos Estados Unidos, na Índia e noutros países. Cada um dos autores procedeu a uma pequena apresentação do capítulo que redigiu. Robin Wilson argumentou contra a separação do Casamento do Estado, sustentando-se no desenvolvimento da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo nos Estados Unidos. Já Noy Naaman e Ayelet Blecher-Prigat sustentaram o contrário, tendo por base do seu estudo Israel, defenderam a abolição do casamento civil como um projeto queer e religioso, crendo que só assim é que os dois grupos beneficiavam. Laura Kessler propôs algo igualmente provocante: a ideia de conseguir igualdade sem a existência necessária de uma Constituição. Kessler revelou que, no livro, aborda a possibilidade de desenvolver uma pluralidade de respostas que vêm acompanhadas de legislação eficaz para proteger grupos Queer, sem a necessidade da existência de uma Lei Fundamental. Reading abordou, ainda, o facto de o livro ser, pelas palavras de Laura Kessler, um “pandemic baby”. As formas com os autores exploravam os assuntos mudaram com o confinamento, dando-lhe novas perspetivas acerca das relações interpessoais que estudavam. Por outro lado, também revelou a complexidade do processo de edição da obra, já que, ao ter vários autores, era difícil conseguir uma linguagem consistente ao longo do projeto, nomeadamente no que toca à nomenclatura que utilizaram para falar nos diferentes grupos sociais objetos de estudo. Questionada acerca de quais os temas que poderiam ter sido deixados de lado, para dar espaço a uma investigação mais detalhada em certos ramos, Nausica Palazzo afirmou que ainda há muito por onde explorar, conectando a questão, por exemplo, ao Direito dos Contratos. O importante, realçou, é que se construiu um vocabulário essencial para se falar sobre estas questões, pronto a ser utilizado, quem sabe, até noutro livro. Afastando-se das narrativas dominantes das chamadas “culture wars”, o livro é oportuno para o entendimento de uma problemática em constante mudança. Esta não é apenas uma questão de juristas, mas de Direitos Humanos, tal como os oradores o conseguiram transmitir, pelas suas áreas de estudo e diferentes opiniões, oferecendo ideias cruciais para o entendimento da problemática em questão. Demais, o jur.nal felicita esta iniciativa pioneira da parte da Professora Nausica Palazzo e dos autores e espera continuar a acompanhar este projeto, alusivo a um assunto assaz relevante.
- Luz ao Fundo da Garrafa
Acordo exausto. Lembro-me de quando acordava sem sequelas, refrescado. Agora até a memória seca. Vozes chamam por mim, António? dizem do lado esquerdo, mas do lado esquerdo só chama a roupa de ontem que não me lembro de despir, com a garrafa que despi de vodka. Chamam mais e mais, coro de vozes que conheço, desprovidas do dono, António? António? António? António António António. Sons de preocupação. A realidade desfalece e os lábios são pressionados, caio na cama mas não caio, foi só susto, e levanto-me no quarto escuro. Olho para o telemóvel. 10 da manhã. Mais uma aula perdida. Às 10 da noite há jantar e bar. Ocorre-me que não estaria a sair da cama e comer, se às 10 da noite não houvesse jantar e bar. E que não comer me fizesse bem de vez em quando, se não quero a barriga do meu tio que opina altamente sobre o estado do SNS no bar da vila às 3 da tarde. E que, debaixo da cama, expirando profundamente, há quatro garrafas cheias. Mas não faço nada com o facto, não teria piada, só tem quando há outros iguais à volta, quando hoje à noite gritarmos Vai uma saúde!, e tragarmos saúde, até alguém vomitar a um canto e entrarmos em pânico, como parteiras em pânico por estar a nascer um bebé. Brincamos sobre como somos drogados com o riso ligeiramente nervoso de que talvez seja verdade, a conta de 36 euros em copos suportada pelo facto de ter sido culpa de grupo. Piadas não a têm sem que todos a entendam. De outra forma, seria só triste. Trágico, sermos empurrados por quem foi também empurrado a juntar-se à comédia. Mas todos sabemos a verdade: procuramos o bem e evitamos o mal. Não nos culpo, nem me arrependo, nem nada expio. Enquanto isto nos fizer mais feliz que miseráveis, enquanto nos ajudar a evitar este curso que nos amarra e abraça, esta cidade que nos encanta enquanto engana, é a calçada escura mas branca por que iremos cambalear. Alguns dizem que isto não é uma vida. Mas deixem-me dizer: também não é uma morte.
- Sem título
Corro atrás do tempo. Ele foge. Corro tanto que fico cansada. Neste jogo das apanhadas incessante e perpetuamente circular que é a vida, o tempo ganha sempre. Nunca o apanho. Ele vira-se para trás e vê-me aflita. Então abranda. Deixa-me aproximar. Tudo para depois me despistar. E perco-o de vista outra vez. No dia a seguir meto-me no comboio rumo a casa. E assim que chego, o tempo senta-se comigo. Não há pessoas a ir e a vir, nem carros a arrancar. Não tenho medo de adormecer e perder o autocarro. Nem tenho de contar os minutos até ao intervalo. Nos primeiros momentos em casa o tempo dá-me um desconto. Há silêncio. Há calma. Há paz. Mas, como se o tempo me quisesse mesmo atraiçoar, de repente estou outra vez no comboio, rumo a um sítio onde ele não pára. Tento esticá-lo, pedir-lhe para me deixar ficar mais tempo. Onde há conforto, e família, e tanto tanto verde. Onde o cheiro da comida se espalha docemente pela casa. Onde cantam comigo as músicas que oiço desde pequena. Onde os abraços são mais aconchegantes. Mas o tempo não deixa. Leva-me dali para fora, como outrora me arrancou do escorrega do infantário onde aprendi que as feridas nos joelhos se curam, um pouco como as feridas do coração; como me puxou da carteira da primária onde aprendi a ler; como me levou da madrugada do meu baile de finalistas. Leva-me dali para fora como noutros momentos acabou com as tardes de praia ao fazer o sol pôr-se, ou com as vésperas de Natal quando fazia com que soassem as doze badaladas. O tempo traz-me para o sítio onde ele adora correr. Aqui os minutos são contados aos segundos para que tudo encaixe nos vaivéns rotineiros dos transeuntes que agora passam por mim. Levanto o pulso esquerdo para ver as horas num gesto automático, apesar de hoje não estar com pressa. Não ter nada para fazer parece anormal, ao ponto de me pesar na consciência. Mas não penso nisso. Se o tempo insiste em correr, eu insisto em estar parada. Quero, nem que seja por um dia, que seja o tempo a correr atrás de mim. Por isso, começo a medir o tempo não em horas, mas em lugares. Meço-o em palavras, em gestos. Meço-o em canções que me transportam para diferentes momentos. Meço-o em pessoas. Deixo de olhar para o relógio. Tomo um café com uma amiga e só me levanto quando me dói o rosto de tanto rir. Almoço às cinco da tarde no jardim, deitando-me na relva a ouvir a minha música favorita vezes sem conta. Abraço alguém de quem gosto até sentir as pernas dormentes. Tiro fotografias mentais à flor bonita na berma do passeio, ao casal de mãos dadas que passou por mim, e à cor dourada dos pastéis de nata que acabaram de sair do forno. Recuso-me a deixar o tempo apagá-las. Só saio do metro no fim da linha, já noite caída. Faço conversa com o senhor que parece stressado para que ele tire um tempinho para pensar noutra coisa que não o tempo a esgotar-se. Leio o meu livro sem pensar na hora a que tenho de parar para ir dormir. No dia seguinte coloco o relógio no pulso, obrigada a mergulhar na minha rotina. Ao longo do dia tenho pressa muitas vezes, mas a certa altura estou sentada a almoçar com os meus amigos e apercebo-me que não existe qualquer preocupação dentro de mim. Apercebo-me que consigo apanhar o tempo de vez em quando, em instantes particulares. E penso: talvez nestes momentos ele pare de correr. Ou talvez seja eu a forçar-me a não correr atrás dele, porque, apercebendo-me de que ele se esvai por entre os meus dedos de cada vez que tento fechar a mão, decido que quero tornar esses momentos eternos dentro da sua inevitável efemeridade. E então, retenho-os ao máximo, guardando-os para sempre na minha memória. Guardo-os com todos os sorrisos e olhares e sons e cheiros e sentimentos que consigo absorver. Tiro fotografias e coleciono objetos que me façam mais tarde abrir gavetas de memórias. Vivo-os intensamente; para não esquecer. Estes momentos são microcosmos em que o tempo cessa, em que “para sempre” não tem rasteira. Momentos a que posso sempre voltar, porque são perpetuados em mim. Na memória, no coração, na alma, o onde fica à escolha de cada um – só sei que os encontro algures cá dentro. E se passo grande parte do tempo a correr, concluo que é por isso que valorizo mais os tais momentos em que estou parada. A brevidade é o que me faz querer memorizá-los. A raridade é o que os torna únicos. E eles, os mais experientes passageiros, são parte da minha felicidade. Concluo que construo o meu caminho entre a corrida e a paragem, num equilíbrio que me faz ir avançando. Concluo que não posso estar sempre a correr. Concluo que sessenta segundos podem ter dentro de si uma eternidade. E que dentro dessa eternidade eu posso estar parada. Não corro atrás do tempo. Ele que fuja se quiser.
- Fundo da piscina
O Afonso deixa-me à porta do edifício e dá-me um abraço de despedida. Saio do carro e entro com o cabelo preso nos botões do casaco e com a franja despenteada, por causa do vento. Não visito a avó Lúcia há algum tempo, mas a minha mãe está sempre a chatear-me para a ir visitar. Vejo-a de longe, está sentada na mesma cadeira de sempre e na mesma posição, com as mãos uma em cima da outra, pousadas no colo. Caminho na direção dela e digo “Olá, avó!”, sentando-me na cadeira ao lado da dela e da de outra senhora. Ela diz-me olá. Anseio por uma expressão de reconhecimento, mas recebo a mesma expressão confusa de sempre. A minha avó não se lembra das vezes que encostou a cara dela à minha, quando eu cabia nas mãos dela, para me cheirar. Nem se lembra de quando me vinha buscar à escola e eu demorava muito tempo a ir ter com ela, porque tinha ficado a falar com as minhas amigas no recreio. Esqueceu-se que me levava ao café do bairro para irmos comer torradas e eu ficava cheia de gordura na cara. Às vezes reconhece a minha mãe, mas já não se lembra de mim. “Avó, sou a Catarina, tua neta, acabei de vir do trabalho.” Ela sorri e eu começo a contar-lhe como foi o meu dia para a distrair. Muitas das visitas que lhe faço são assim agora. Ela ouve relatos aborrecidos sobre o que se passa na minha vida, sorrindo e acenando. Acabo de descrever a visita guiada que fiz hoje à nova exposição que está na galeria e ela sorri e acena. “Já chega! Não quero o “sorrir e acenar”! Isto é ridículo, sempre que cá venho só sorris e acenas. Não quero isso, quero que me digas que estou demasiado magra e que devia comer mais, como dizias sempre, quero que me digas que estou muito alta, apesar de saberes que já não cresço mais, quero que me dês uma nota para eu comprar um gelado. Chega de me acenares com a cabeça, quero que me grites, que me corrijas e que me digas para endireitar as costas. Porque é que já não me dizes para endireitar as costas? Já não te lembras do que me disseste quando tinha dezoito anos e achava que nunca ninguém me ia amar, porque o Pedro da secundária não respondeu à carta de amor que lhe escrevi. Nessa altura, pensava que ele era o único rapaz de quem eu ia alguma vez gostar. Lembro-me de olhares para mim e dizeres, calmamente: “Catarina, para de ser tolinha! Vais amar outra pessoa e vai ser como deve ser. Não vai ser como gostas deste patife. Vais amar com todas as entranhas, porque é isso que fazes. Vais dar todo o teu ser à criatura e mergulhar na piscina que é a alma dela até encontrares o fundo e lá deitares a tua cabecinha e adormeceres, lentamente, como fazias quando eras pequenina. Ser amado por ti vai ser o maior privilégio que alguém poderá ter, tal como vai ser amar-te.” Avó, não percebes? O que mais quero é adormecer, mas no fundo da piscina que é o teu colo e que me contes a história dos três porquinhos. Antigamente, bastava olhar para ti para perceberes que o que queria era só mais uma história, só mais um bocadinho acordada para depois adormecer, lentamente, a pensar no castanho dos teus olhos, que é igual ao castanho dos meus. Porque a coisa da qual mais tenho certeza é que eu sou feita de pedacinhos teus. Não falo de genética e dos teus olhos, falo de pedacinhos da avó Lúcia, da Lúcia pessoa. Eu sou feita de ti e tu és feita de muitas outras pessoas que já se cruzaram com os teus lindos olhos castanhos. Talvez até sejas feita de pessoas que se cruzaram com as pessoas que se cruzaram com os teus olhos. E eu também sou feita delas. E sabes o melhor de tudo, o mais fascinante nisto tudo? É que tu também és feita de mim, o que quer que eu seja. Somos reciclagem uma da outra. Já viste? Nenhum de nós é original, nenhum de nós é completamente “puro”. Eu sem os “outros” não sou nada. E tu também. De todas as coisas que dizem sobre a Humanidade, esta é a mais bonita. Na epígrafe do “Todos os nomes”, de Saramago está escrito: “Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens.” É verdade, a mim deram-me o nome de Catarina, mas esse é apenas o nome que me deram, não o nome que eu tenho. Eu sou uma substância feita de outros nomes. O Sr. José, no final do livro, chega à conclusão que separar os vivos dos mortos, quer no sentido literal, como se faz com as fichas das pessoas na conservatória, quer no sentido metafórico, é, para além de ridículo, impossível. Somos todos uma coletânea de pessoas que já morreram e de pessoas que ainda estão vivas. Não é maravilhoso? Sabes como sou cética, mas de todas as coisas suscetíveis de serem verdade, para mim, esta é a mais acertada.” O que é certo é que não digo isto, não digo nada disto. Limito-me a perguntar como é que ela se está a sentir, como se entretém durante o dia e se precisa de alguma coisa. Ela diz-me para me ir embora, porque a vida é muito mais do que estar a falar com uma velhota quase a bater as botas. Pode não se lembrar bem de mim, mas o sentido de humor continua o mesmo. Faço o que ela diz. Levanto-me e despeço-me, dando-lhe um abraço apertado. EXTRA - Carta de amor ao Pedro da Secundária: Querido, Pedro Venho falar-te do assunto que deixa todos os poetas acordados à noite, as velhinhas curiosas e as barrigas doridas. Já adivinhaste qual é? Ainda não? Vou dar-te mais uma pista. É aquela coisa que “quando se revela não se sabe revelar”. Custa desvendá-la, custa descobri-la, quanto mais contá-la. Explicá-la é a coisa mais difícil no mundo e a mais fácil ao mesmo tempo. Estou a ser paradoxal, eu sei, mas a coisa também o é. Coisa misteriosa esta… Toda a gente que é gente a conhece. Para muitos é uma coisa enfadonha e que não merece ser digna de palavras – “Para quê escrever sobre o amor (ups, escapou), se é mais útil escrever sobre coisas muito mais importantes e dignas, como os escalões do IRS?”. O amor não já não é matéria dita “intelectual”, porque um curso não te vai fazer entendê-lo. Descrevo-te com frases ocas o que é o amor e falho e falharei sempre, porque quando falo parece que minto. O amor não precisa de fazer sentido para ser sentido. Prefiro sofrê-lo a cogitá-lo. Acho que cogitar o amor é coisa de Ricardo Reis, que se aplicarmos as regras da lógica ao amor, chegamos à conclusão de que não devemos enlaçar as mãos com ninguém, porque isso é muito cansativo. Mas, eu gosto de me cansar, prefiro cansar-me a ficar a ver o rio passar. Sempre gostei mais de Álvaro de Campos. Ensinou-me que as cartas de amor são ridículas, mas também é ridículo aquele que não as escreve. E, tu, Pedro, escreves cartas de amor? Da tua colega do lado nas aulas de Português, Catarina. NOTA do autor: Isto é uma carta de amor à Beatriz, porque me mostrou que escrever cartas é uma forma muito bonita de arrumar a tralha inútil (pensamentos) do meu sótão (cabeça).
- Untitled
You’ve eaten And satiated Your ego demands a room To vomit The verbal fruit Inflated You’ve eaten And now you’ll feed the masses The feedback like black molasses From you, loudspeaker Passes Onto the floor Saturated They shall all slip Upon it Plant their face in your murky vomit They’ll regurgitate What, copied, they did not meditate They’ll swallow You, prophet As you swallowed Politely And seedlings, in black molasses Shall grow tall trees with such shade That’ll hide famine, death and trade That, biased, highest classes favored When classes made And no eyeglasses No platonic sunlight Shall protrude such darkness For trees themselves are murky, fathered By black molasses YOUR black molasses Oh, how mistaken I am, you regurgitated Just as them Suicide is passed down from man to man Without pause and contemplation That legacy The bird’s education Eat the liquid and jump flying Those who death have manned defying Gravity When the gravity’s in their wings compliance To the wind Of olden doctrine read and written You in the floor Have not lived And aren’t dying Only quitting For you’re the bird whose name reverbs As the loudspeaker who did no thinking Reverbed Politely
- Quem?
A brisa fresca num dia quente tem algo em comum com a pele que há em nós. Há algo na matéria que compõe esse ar tão leve que também se encontra na fibra que se enlaça para compor este tecido que nos reveste. E isto é como uma abelha que, ao entrar numa flor, sabe que o açúcar que se lhe oferece, irá garantir-lhe sustento. Dá vida a esse encontro com o néctar que a espera, desejoso, e depois faz o mel. Também o calor que nos habita se regozija ao sentir-se tocado pelas partículas de frescura que furam de levezinho a pele e nos chegam, uma a uma, ao que temos cá dentro. Não sei se todos entendem isto, se pensam nisto sequer. Não, isso acho que não, tenho quase a certeza. Há a quem baste sentir e pronto. Ah, que fresquinho , e já está, lá voou o pensamento com a próxima corrente de ar fresco incessante, que há de ir e voltar depois. Mas percebe que isto não é isto e mais nada. Há mais sobre o que eu disse, mais para além desta vaga noção. Quando as cordas vibrantes de uma guitarra provocam o ar farto que descansava vazio em si, enchem-no de qualquer coisa que lhe faltava, e toda a gente repara. O ar toma forma de onda e essas vêm a nadar aos nossos ouvidos, que se deleitam com a harmonia. Agora, o ar está pleno. E se se juntar um pranto cantado a esse instante, choram-nos os olhos de qualquer coisa que sentimos e não sabemos dizer. Fomos nós que criámos as palavras. Elas não estavam lá no início e por isso não aprenderam a contar o que há no mundo. Pelo menos não tudo, são muitas coisas. É que isto parece tudo propositado, percebes? Só podia ser tão perfeito assim se alguém tivesse pensado nisso antes de o ser. Não, alguém não. Qualquer um se esqueceria do mero detalhe e poria em causa todo o ciclo que nos pauta a existência. Só se Deus... Não, também não foi Ele. Não me venhas com Deus que eu não suporto a hegemonia! Quem...? o quê!?... Se me deito e olho o céu estrelado, algo se curva diante de mim, para lá da imagem. Há uma troca ineludível entre o que olha e o que é olhado. Chega-me de lá uma serenidade, e não é a luz que a traz. Porque, se pudesse ser medida, seria muito pequena para ser levada, seria daquelas coisas que nem se tocam de tão sublimes. Mas sentem-se. E também eu dou de mim qualquer coisa que brilha baixinho, tão baixinho que não se vê. Pelo menos não com os olhos... Não te questionas sobre quem terá plantado tal completude? Eu gostava de saber, para ao menos lhe perguntar o que fazer com os excessos que criámos. É que sinto que qualquer dia o ciclo rebenta. Ninguém avisou a quem fez tudo isto que nós viéssemos e enchêssemos tanto tudo. Que deitássemos mão a tanta coisa que já cá estava e funcionava tão bem por si. Se pudesses, não lhe perguntavas o que fazer? Que farás tu se deixares de sentir as estrelas? Se não te fizerem mais chorar as ondinhas de ar que te entram nos ouvidos? O que restará se o teu calor não se agitar mais com a brisa fresca? Pior, se não houver mais quente em ti? Pergunto-te porque não sei o que farei eu, e se ao menos tivesses ideia... Talvez seja melhor esperar que a resposta brote em flor. Pode ser que essa já tenha sido plantada há muito, e que fizesse parte disto sentirmos o medo de que te falo. Pode ser que o fruto que depois vem tenha em si o doce de mais um círculo perpétuo. Só espero que não traga consigo o dom de dizer o que ainda não conseguimos, acho que não nos faz falta. Não achas?
_edited.png)











