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Ainda estou aqui

Tiago Mancha

Ainda Estou Aqui, o mais recente filme protagonizado por Fernanda Torres, uma das atrizes mais consagradas do cinema brasileiro, tem conquistado um sucesso estrondoso a nível internacional, valendo-lhe três nomeações para os Óscares. Em Portugal, a receção não poderia ser mais positiva: há um mês em exibição, mantém-se no topo das bilheteiras e, no quarto fim de semana, levou mais 34.536 espectadores aos cinemas, segundo dados divulgados pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) no dia 10 de fevereiro.


O que torna este filme verdadeiramente especial, além da brilhante e impactante atuação de Fernanda Torres, é a forma como nos convida a reviver a memória de um passado não tão distante, cujas cicatrizes ainda marcam gerações. A narrativa expõe as consequências de um período de repressão, violência e autoritarismo, baseado na vida de Rubens Paiva, um dos muitos desaparecidos políticos durante a ditadura militar brasileira, trazendo à tona as cicatrizes deixadas pelos abusos do regime. E, embora a realidade da ditadura militar brasileira não seja amplamente discutida em Portugal, é impossível não pensar nas histórias que nos foram contadas sobre a nossa própria vivência de opressão enquanto assistimos àquelas imagens. A luta pela liberdade é uma luta comum a todos aqueles que enfrentam regimes autoritários, as histórias de resistência, luta e intervenção, independentemente do país, devem ser ouvidas como um todo, porque a repressão, a censura e o silenciamento não conhecem fronteiras.


A relevância deste filme torna-se ainda maior num contexto em que existe hoje uma tendência perigosa de romantizar o passado, distorcendo episódios de opressão para ajustá-los a agendas políticas do presente. A história, quando é distorcida, perde a sua força enquanto ferramenta de reflexão e aprendizagem, tornando-se uma arma nas mãos de quem busca reescrever a sua “verdade”. Este fenômeno não é exclusivo de um país, é um padrão que se repete globalmente, por exemplo, na Europa, movimentos nacionalistas têm emergido, impulsionados por discursos que exaltam a soberania e a identidade nacional, muitas vezes em oposição a valores democráticos, e exacerbando ideologias racistas/xenófobas. No Brasil, a ditadura militar é cada vez mais relativizada por grupos políticos que tentam apresentá-la como um período de progresso, ignorando a tortura, os desaparecimentos e a censura. Isto relembra-nos dos perigos de uma sociedade que, ao se acomodar na ilusão de uma democracia “intocável”, esqueceu os horrores do passado, como bem disse Santayana: "Os que não se lembram do passado estão condenados a revivê-lo".

Fernanda Torres, ao interpretar Eunice Paiva, transmite a dor, a revolta, e a resiliência de quem sobreviveu a um regime opressivo, mas, acima de tudo, dá voz àqueles que foram esquecidos pela história. Este processo de “esquecer” não é acidental, é uma estratégia deliberada para reescrever a história e apagar os abusos do autoritarismo, a memória, para mim, é uma das formas mais eficazes de resistência, ao manter viva a lembrança das vítimas, impedimos que se apague o sofrimento e a luta de todos aqueles que resistiram. Este filme, portanto, não é apenas um tributo a um movimento de resistência do passado, mas também um alerta contra o esquecimento forçado, mostrando-nos que a história não deve ser distorcida. Portugal não é uma exceção a isto, por mais que se possa tentar branquear o papel da polícia política, da censura e da opressão, e de “esquecermos” histórias como a de Catarina Eufémia, José Dias Coelho, José Ribeiro Santos, Alfredo Dinis, João Arruda, entre tantas outras vozes, cujas memórias, com o tempo, foram sendo silenciadas, devemos preservá-las e usá-las como ferramentas de reflexão.


Ao conquistar uma plataforma global e receber reconhecimento no maior evento cinematográfico do mundo, o filme cumpre um papel essencial, é um sinal de que, apesar dos esforços para silenciar certos episódios, a verdade continua a emergir, e com ela, a necessidade de aprender com os erros do passado.

 
 

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