Fizeste um rabisco nas notas do meu telemóvel. Era meio de julho, íamos no autocarro lado a lado a voltar para casa para as férias grandes. Estava muito calor, mas saía uma brisa fresquinha de uma janela perto do teto, que fazia mexer, de quando em vez, um ou dois cabelos teus. Pegaste no meu telemóvel - como tinhas feito tantas vezes antes - e fizeste o tal desenho de criança. Eu nem percebi a forma que tinhas desenhado, mas lembro-me de pensar que o ia guardar para sempre: acho que o meu subconsciente sabia que era das últimas coisas que ia ter vindas de ti. Lembro-me de olhar para ti durante muito tempo nessa viagem, mas o teu foco estava várias vezes no teu telemóvel. Em aplicações novas. Em coisas novas. Em pessoas novas. A meio da viagem tiraste os fones da mochila, puseste um no meu ouvido - como tinhas feito tantas vezes antes - e puseste música a dar. Já não eram os teus fones com fios que costumavas usar. Estes eram com Bluetooth, e eu já não gostava tanto deles. Outra coisa nova. Já ninguém usa fones com fios. As pessoas só querem coisas novas. Disseste que me querias mostrar uma música – como tinhas feito tantas vezes antes – e mostraste. Abriste o Spotify e puseste a letra à minha frente; nunca to disse, mas tu já sabias que eu adoro ler as letras quando oiço música nova. Afinal, sempre foste a pessoa que sabe mais coisas sobre mim. Ouvimos música atrás de música e eu esforcei-me muito para perceber o que tentavas dizer com cada uma, porque nós só falávamos assim. Mas acho que nesse dia não estavas a tentar dizer nada. Acho que nesse dia as músicas eram só as músicas, e os significados já tinham sido gastos nas pessoas novas. Houve um momento em que pousei a cabeça no teu ombro – como tinha feito tantas vezes antes – fechei os olhos, e tudo pareceu voltar ao normal. Desejei o nosso normal com muita força.
Mas nada daquilo era normal. De repente havia entre nós muito espaço - tu estavas sentado à entrada do autocarro e eu estava nos últimos bancos de trás - e eu não o conseguia preencher, por muito que quisesse. Não podia sair do lugar que estava escrito em tinta desbotada no meu bilhete. E tu não podias sair do teu. Éramos vítimas do motorista distraído que nos separou, filas de cadeiras entre nós: eu nunca quebraria as regras, nunca me sentaria num lugar que não era o meu – era esse o teu problema. Tu quebrá-las-ias, noutros tempos, levantar-te-ias e virias para o lugar vazio ao meu lado; mas não mais. Já chegava de quebrar regras que eu não estava disposta a quebrar.
E depois quando abri os olhos estavas ao meu lado, contemplativo, a responder a uma mensagem. A música continuava a soar, mas parecia-me cada vez mais longe. Disseste que estavas a ficar sem bateria, então trocámos para o meu telemóvel, e fiquei eu a escolher. Esforcei-me muito para que percebesses o que estava a tentar dizer, mas se o percebeste fingiste bem que não. E tu nunca foste um fingidor (apesar de te fascinar o meu gosto pelo poema). Também não te riste muito nessa viagem. Lembro-me de pensar que não te ouvia a rir a sério há muito tempo; de pensar que antes estávamos sempre a rir. Lembro-me que me passou, por uns segundos, uma imagem na cabeça: tu, deitado de barriga para cima, com os olhos fechados com muita força e a rir como se toda a alegria de todas as crianças do mundo tivesse entrado dentro de ti. Nem me lembro se fui eu que disse alguma coisa engraçada. Mas sei que perdemos as coisas engraçadas para dizer um ao outro algures no caminho do tempo. Gostava de ter feito um vídeo desse momento para nunca me esquecer dele: nós esquecemo-nos das coisas pequeninas; acho que é delas que dói mais lembrar. Mas queria poder vê-lo na caixinha de memórias com que ando sempre no bolso de trás das calças. As pessoas dizem que pertenço a uma geração de viciados, mas ninguém me convence de que ter uma caixa de memórias não é um superpoder – eu tenho o superpoder de voltar atrás no tempo sem sair do lugar. Devíamos ter tirado mais fotos e vídeos enquanto tínhamos vontade de criar memórias. Devíamos ter enchido a caixinha de nós. E assim eu não me esqueceria. E poderia viajar no tempo.
Estávamos prestes a chegar e o lusco-fusco do autocarro tornava-nos ainda mais pesados do que já estávamos. Aquele era um dia de finais, e eu sabia-o. Fiz as minhas despedidas silenciosas. Olhei-te durante muito tempo. Mostrei-te todas as músicas que queria e disse tudo o que queria dizer através delas. Encostei a cabeça no teu ombro e teletransportei-te para a minha imagem mental favorita de ti. Guardei o rabisco como prova de que, pelo menos por um dia, ainda estavas lá. Porque nunca farias o rabisco se não estivesses. Nesse dia, ainda estavas comigo, apesar de estares de partida para destinos novos. E eu sabia-o. Se não o soubesse, não teria feito as minhas despedidas silenciosas.
Mas fi-las sem saber: às vezes, o meu coração sabe coisas antes de o meu cérebro sequer as compreender. Às vezes, o cérebro nunca chega a compreender o que o coração já sabe. E às vezes, parece que estão num ringue de boxe a lutar para ver quem leva a sua avante, quem compreende melhor, quem sabe primeiro. O coração tende a ser mais perspicaz, mas mais discreto. O cérebro demora mais, mas quando compreende é brutalmente honesto. Acho, no entanto, que nesse dia o coração tinha o ringue todo para ele. O cérebro ainda não tinha percebido que aquele autocarro era o nosso final. E, então, a honestidade impetuosa não estava lá. E o coração deixou-me ter as minhas despedidas sob a ilusão de que eram só os mesmos velhos hábitos, de que nós ainda existíamos juntos.
Até esse dia, sempre tinha gostado de autocarros. Sempre tinha pensado que eles traziam histórias muito diferentes de pessoas muito diferentes em momentos muito diferentes. Eram um pouquinho como as caixinhas do bolso de trás das calças: mais recatados, mais secretos, mas igualmente testemunhas de fantasmas da vida, e da felicidade, e da tristeza, que deixaram outrora riscos nas cadeiras, desenhos nos vidros embaciados, botões do ar condicionado ligados e cortinas fechadas. Fantasmas da amizade e fantasmas do amor, que se sentaram nos lugares onde nós nos sentámos e partilharam esperanças e planos para o futuro. Mas para nós não havia futuro. E eu deixei de gostar de autocarros. No fim de contas, toda a gente sabe que os autocarros nunca são novos. E as pessoas só gostam de coisas novas.
Sempre que abro as notas do telemóvel, e vou à procura das mais antigas, encontro o teu rabisco azul. Dei-lhe o teu nome – pareceu-me justo. Continuo sem perceber a forma. Vê-se melhor quando o telemóvel está no modo escuro. O raio do desenho. Não é uma foto da minha caixinha de memórias, então quando abro as notas nunca estou à espera de o ver. Vejo-o. Lembro-me. Fecho as notas. Nunca o apago. Tê-lo dá-me um superpoder de voltar atrás no tempo. Tê-lo deixa-me agarrada à esperança de que, se te voltar a ver, vais rir (com toda a alegria de todas as crianças dentro de ti) quando to mostrar e fazer outro ao lado, igualmente desajeitado. E então, mesmo se eles não forem novos – especialmente se eles não forem novos – eu vou voltar a gostar de autocarros.
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