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Sofia Dias

A perenidade dela

As tuas pestanas ficam pretas com o rímel. Pensas que o produto que estás a usar foi criado pelo mercado da cosmética para homens velhos e ricos ficarem ainda mais ricos, conseguindo capital à custa das tuas inseguranças. Estás a apoiar, a perpetuar um padrão de beleza inatingível que te faz odiar a ti própr- FODA-SE, ESPETEI ESTA MERDA NO OLHO, ESTOU TODA BORRADA. Sais de casa. Vais a um espetáculo de stand up de uma comediante para dizer que apoias a arte feminina e que as mulheres também sabem contar piadas. Ficas o espetáculo inteiro a pensar na merda da mensagem não respondida. Sais do Coliseu e és assediada. Sentes repulsa e sabes que se tivesses passado pelo velho bêbado e ele não te tivesse mostrado a pila, então era porque não estavas bonita o suficiente. Mas, hoje não é o caso, por isso relaxas. Vais para casa, o telemóvel não brilha.Vês pornografia degradante na internet. Vens-te. Sentes-te pesada. Cheia de fluidos vaginais e da repulsa de teres acabado de contribuir para uma das maiores indústrias que te retiram dignidade e que utilizam o teu corpo como produto de troca. O teu não. O de outras. Sentes-te uma má feminista, achas que não és digna para receber tal rótulo. Pensas que apesar de bateres com o pé quando te dizem que as mulheres só pensam em homens, passas o tempo a pensar na mensagem não respondida e no Tomás que toca guitarra numa banda alternativa qualquer e que finge ler o que escreves sobre feminismo, fazendo comentários ridículos e superficiais que gritam “merda, eu quero é foder-te e por esta altura vai ter que ser sexo aborrecido, estas gajas hoje em dia acham-se todas emancipadas…”. Queres que o Tomás se foda, mas que te foda a ti. Cospes no feminismo liberal por te ter ensinado a narrativa da mulher moderna empoderada pelo sexo casual, que acaba por ser uma indireta reprodução do padrão de comportamento masculino. Imediatamente a seguir, sentes culpa por achares que te aproveitas de teoria de género para evitares um compromisso moral com o que sentes. Não tens sono. Vais escrever. Escreves sobre ti. Preocupa-te se o intelectualizar dos teus sentimentos não passa de um mecanismo em que expões as tuas emoções, de forma a vitimizares-te relativamente às situações que as suscitaram. Achas que o que escreves é fundamentalmente feio. Que as frases não são lidas como um poema, mas sim como se alguém se estivesse a engasgar e depois as cuspisse e tossisse uma e outra vez. Pensas que as tuas palavras são, quer filosoficamente quer politicamente, inúteis. Ninguém vai pegar nelas, por muito mais que te digam que as amam. Sabes que namorarem com as tuas palavras não interessa, o amor não te entrega voz num prato e tu estás esfomeada. Desprezas homens que escrevem horrivelmente e que utilizam a escrita para dizer merdas embebidas em heroísmo e tristeza regurgitada, merdas que, no fim, irão ser endeusificadas e tu sempre foste um pouco iconoclasta. São geniais porque vêm de onde vêm, porque são ditas por quem as diz. A genialidade da arte, pensas, tem o seu início e o seu fim nas mãos de quem a faz. A arte masculina faz-te bocejar. Sabes que amaldiçoar a arte masculina não é propriamente útil para o movimento político feminista, mas, sinceramente, agora queres que o movimento se foda por uns momentos. Estás-te a lixar para o artista amedrontado e desejas que o homem branco e heterossexual seja amputado. Olhas para o telemóvel e ele não brilha.

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