Estou cansado que nos vendam miséria esmaltada em ouro. Estou cansado dessa verdade enfarpelada e enaltecida pelas elites e pela escola. Dessa verdade aprumada e deliberadamente excisada das suas características mais vis e verdadeiras pelos que estão no topo – estou cansado que nos falem da vida retratada do cimo de uma cadeira de um qualquer executivo quando nós todos vivemos dobrados sobre nossos próprios rins numa labuta infinda que nunca nos trará mais nada senão cansaço e vazio.
Eu quero a má verdade; quero a verdade feia – aquela destrutiva, remordente e insuportável. Aquela mutilada pela fome e pela pobreza, pela indigência, pelo sacrifício, pela injustiça. Eu quero a verdade do povo. Esse que se farta de criar riqueza mas que acaba inexplicavelmente todos os meses com um par de bolsos vazios e um estômago à míngua. Esse que não se cansa de ouvir falar no elevador social mas que há muito que teve tirada das suas mãos calejadas a única escada que alguma vez teve. Esse que há muito que deixou adormecer no seu peito abril e vê setenta e quatro como um mero oásis na aridez seca da mediocridade política portuguesa.
Estou cansado de ouvir os mesmos quatro comentadores na televisão a falarem de problemas e de assuntos com os quais nunca terão de lidar após a emissão terminar. Já alguém pensou em entrevistar a prostituta em horário nobre e lhe perguntar o que acha da sua condição? Já alguém ponderou em interpelar o pobre e mostrar a Portugal inteiro o que é que o aumento do salário mínimo significaria para a sua vida? Conseguirá alguém apurar o grotesco em não haver um único afrodescendente nos órgãos de comunicação social a expressar a sua opinião depois de um incidente de brutalidade policial contra corpos negros à porta do seu local de residência? E os homossexuais? O que terão eles a dizer sobre a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo? Porque é que sobre todos estes assuntos nunca ouvimos a opinião daqueles que de facto sofrem na pele as consequências do debate político e da opinião que saiu vitoriosa da altercação? Já alguém teve a inaudita e genial ideia de interrogar a adolescente que teve um brutal e sangrento aborto clandestino num vão de escada e perguntar-lhe o que é que esta acha da descriminalização da interrupção voluntária da gravidez?
Mãe, porque é que estão quatro homens a falar na televisão sobre as vinte e três mulheres que morreram vítimas de violência doméstica no ano passado e não há qualquer voz feminina a opinar? Bem sei o que tu dirias se pudesses, mas as nódoas negras e os hematomas que tens no corpo não são suficientes para poderes ter uma opinião, primeiro precisas de ter um curso superior e um pós-graduamento. Pai, porque é que na rádio quando é para falar sobre o aumento dos impostos às grandes fortunas e para combater a evasão fiscal falam sempre só com os empresários e os mais abastados e não há uma única voz a falar em defesa de todos aqueles que beneficiariam de um maior investimento nas infraestruturas e nos serviços públicos? Bem sei em como seria um alívio para nós lá em casa não termos de pagar passes de transportes públicos ou se não tivéssemos de pagar as propinas da mana. Mas não há almoços grátis… oxalá houvesse, só Deus sabe a fome que já tive que enganar com sobras de pão e uma pouca de água, ou os sonhos de ser artista que me forcei a renunciar por não termos dinheiro e só irem migalhas do orçamento de Estado para a cultura.
E eu, preso a este corpo que repudio, que abomino, que execro com todas as minhas forças, que me arrasto pelos dias com uma depressão severa porque me veem como mulher quando eu me amo como homem, porque é que quando é para falar dos transgéneros e da operação da mudança de sexo não há vivalma que se lembre de centrar o debate à volta de quem de facto sente na pele a ostracização e a violência de não poder escolher ser quem é, e porque é que continuam a relegar cinicamente as pessoas transgénero para o papel de espectador desinteressado num assunto que muitas vezes lhes é uma questão de vida ou de morte?
Estou cansado desta açambarcagem vil e abjeta da verdade. Estou cansado que coloquem um v maiúsculo quando falam dela e que continuem a fingir que há só uma no meio de todas estas pessoas indescritivelmente diferentes e inapreensivelmente únicas entre si. A verdade nunca foi unívoca – há tantas verdades quanto há corações palpitantes por esse mundo fora, e isso é incontornável: cada alma é uma forma singular de se relacionar com a realidade e de a condicionar; cada alma é uma constelação irreproduzível de experiências e de acasos; cada alma é um universo inteiro encapsulado numa forma única de ser. E no entanto saem sempre nos ecrãs e nos rádios as mesmas e pisoteadas verdades a que estamos tão habituados e nauseados de ouvir – a verdade do homem; a verdade do branco; a verdade do heterossexual; a verdade do rico. Tornemo-nos de uma vez por todas intransigentes nisto. Reclamemos finalmente um pouco de espaço no campo discursivo para as nossas verdades – as verdades da mulher; as verdades do negro; as verdades do homossexual e do transgénero; as verdades do pobre – uma democracia que abraça uma verdade unidimensional e inequívoca é uma democracia que está gravemente doente.
Uma democracia saudável, uma democracia sadia, uma democracia como aquela que abril imaginou, é aquela que se encontra em permanente tensão; é aquela onde as verdades se multiplicam irrazoavelmente e se sobrepõem umas às outras! É aquela onde nenhuma das infinitas verdades se arroga o direito de superintendência e superioridade em detrimento das outras!
Reivindiquem o vosso lugar,
reivindiquem a vossa história, afirmem a vossa verdade! Peguem com as vossas mãos o legado de possibilidades que 74 nos fez herdar e entrever.
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