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- O vício da solidão
Dizem-nos sempre a nós, introvertidos, para nos espevitarmos, para sairmos da casca, chamam-nos "bichos do mato". Somos demasiado silenciosos, demasiado sozinhos. Mas nunca ninguém diz a um extrovertido que se acalme, que tire um tempo para si, que é demasiado ruidoso, que se cale. Parece que somos uma espécie rara e decadente viciada na droga da solidão. Eles não entendem. Talvez nunca entenderão. A liberdade, o conforto, o refúgio. A leveza de viver sem a pressão, sem a crítica, sem a imposição da vontade alheia. A arte de observar, sentir, absorver, saborear tudo. De encontrar vida, amor e beleza em todo o lado. A chance de poder ficar mais um pouco porque não tenho pressa. O facto de não ser preciso arranjar assunto para preencher o silêncio. Porque o silêncio é casa, é abrigo. Mas há algo sobre o qual eles estão certos. A solidão é um vício. É um abraço apertado que não nos solta e do qual não nos queremos soltar. Queremos mais. E mais. E quando damos por nós, afundámo-nos. Faz-me lembrar quando era criança e caía no insuflável...as outras crianças continuavam a saltar e eu não me conseguia levantar. O mundo continua, todos são tão produtivos, tão sociais, tão alegres... E nós, introvertidos, viciados nesta droga, não conseguimos sair do abraço apertado da solidão. Acima de tudo, ninguém fala da sensação de estar rodeado de gente e sentir-se sozinho. Da necessidade de fugir. Do refúgio que é a solidão. Mas, à semelhança de todas as drogas, também esta deixa sequelas. Desgasta. Corrói. Queima. Prende. Ninguém fala de como o refúgio e a liberdade se tornam numa prisão. A loucura, o desespero de tentar sair desta bolha e não conseguir. A espiral de pensamentos que surge de repente e nos apanha desprevenidos. E, de um momento para o outro, precisamos de fugir do nosso refúgio, porque este se apoderou da nossa mente e a virou contra nós. Mas fugir para onde? Seremos nós cobardes? Estaremos a refugiar-nos numa ilusão momentânea de um mundo pacífico que não existe? Será a solidão mera negação do caos e do ruído que nos rodeia? Será medo do perigo, da perturbação, da crítica do mundo? Será isto auto-sabotagem? Ou auto-salvação? Será esta espiral de pensamentos, esta ânsia de fugir da bolha, uma forma de me salvar de mim mesma? Seremos nós efetivamente uma espécie deslocada, incapaz de se adaptar e aceitar o mundo? Ou estarão os extrovertidos a fugir ao vício da solidão, a este tormento constante, a este abraço que, sem que nos apercebamos, nos afunda e sufoca? São eles que fogem da solidão, ou somos nós que fugimos do mundo? E para onde fugimos todos? E quando vamos parar de fugir?
- Poemas de Fernando Ruivo
Desconclusão Se cá estivesses, eu não teria morrido Mas também, sei que agora, o quanto pedir, não o concedereis Eu tive a oportunidade de mudar, de alguém ser Eu pude, não noutra como pensava, mas nesta vida Tantas vezes, Tu me ofereceste renascimento Ser algo novo, mudado, de alma renascida Tantas vezes plantaste oliveiras Mas eu não as regava Tantas vezes me procuraste Mas eu escondia-me Tantas vezes me falaste E eu não escutava Mesmo eu sendo pá partida, faca bota, defeituosa Procuraste fazer de mim um instrumento da Tua paz Mesmo eu sendo de alma desprovido, homem seco Procuraste-me mas eu não me deixei encontrar Mesmo que Deus queira Se o homem não sonha A obra não nasce E para o homem que não dorme Uma obra é inconcebível De nada me servem lamentos e poemas melancólicos agora Ser um coitadinho não me vai fazer mudar No máximo alguns têm pena Outros, desprezo E por pena não vale a pena A alma é muito pequena Pelo menos percebi que poderia ter sido diferente Isso deixa-me esperançoso e sorridente Quando morre a videira A terra a acolhe E a espalha pela Terra inteira. Ultramar III No cesto do cultivo me misturo com os outros vegetais Verdes de outras hortas, do minho a sagres, desiguais Eles vivem felizes, contando e sua terra louvando Ó cozido salgado, quanto do teu sabor São vegetais de Portugal E lá estava eu com eles também, não tão entusiasta Tinha a minha fé, mas lá esperava o que me esperava lá Aí! Se eu soubesse o que me vinha Aí! Se eu soubesse o que me aguardava Andávamos nos pelo mar a dentro, como os nossos antigos Eles porém viram o império a ser erguido Nós vamos acabar por vê-lo destruído E no cesto de vegetais que segue pelo céu refletido, Tal como nuvens que atravessam pelo mar refratado Embalado por ondas do seu andar, cesto de ferro couraçado, Lá contam-se histórias, jogam-às cartas, acende-se tabaco (tem lume que me dê?) Um camarada aproxima-se de mim: “Aí então, o senhor é de lá de cima” “Lá de cima só o Senhor Deus, eu sou da margem do Douro” “Oiça o que digo, depois de ver o que há aqui em baixo, Deixa de ver o que há lá em cima” Tinha razão. A vela Tão louvada é a luz Glorificada pelos seus brilhos Amada pelo seu iluminar Que a verdade traz aos olhos E é passada como chama em tocha Tão forte que nem caverna nem rocha Alguma vez a poderão ofuscar Nunca ninguém porém fala do pavio Pavio que carrega a chama e a sua luz Que se sacrifica como que em cruz Para que a chama queime E a luz não se torne vazio Nunca ninguém porém fala da cera Cera que envolve como senhor o pavio da luz dama Que ao derreter se deixa marcar pela chama Para que nele sempre lembre do que brilhou E a luz não se torne esquecida, efémera Assim não esqueçamos que para a bela luz brilhar Houve um pavio que ardeu Houve cera que derreteu E por fim, houve quem a vela acendesse Para fazer luz E a luz foi feita
- Registo 1: Carmesim
A olhar para a parede branca, ouço os passos atrás de mim. Passos de uma multidão a recuar. A evacuar aquele espaço de recreação para realizarem as atividades realmente importantes. De modo a executarem "os testes", como dizem os guardas e os cientistas com os seus gestos tranquilizantes. Na verdade, ainda consigo escutar os apelos dos soldados. Eles que ordenam a evacuação do recreio mesmo até agora, agora que eu me pus a contemplar o canvas branco e rugoso da parede. Os guardas ordenam, guardas como o Leo. E nós seguimos. Mesmo sem ter um nome pelo qual nos possam chamar. Em meado ao barulho dos pés descalços dos meus semelhantes a sair da zona em que me encontro, das vozes severas dos guardas e dos barafustos distantes de utentes a discutir, fico só. Erguido no centro do espaço delimitado por três paredes e uma cancela a indicar o final da região de experiências e o início da região de descontração. Erguido, observo uma estrutura pura como o leite que vejo cientistas a beber enquanto anotam os resultados dos seus testes. Erguido, deixo-me ficar onde devíamos ficar apenas por alguns meros instantes. Erguido, fico cara a cara com uma barreira física. Erguido, enquanto todos os barulhos ao meu redor se dissipam e são reduzidos a nada perante aquilo que vejo erguido. Erguido. Erguido, ao nível dos meus olhos, vejo um buraco minúsculo na estrutura. Um furo disforme de alguns centímetros de comprimento e de menos de meio metro de largura. Com lascas de tinta seca a revestir os bordos exteriores da anomalia presente naquela arquitetura até então perfeita. Repleto de pedras e pedrinhas no seu interior, de vestígios da anatomia da parede. E é claro, além do que envolvia aquele buraco, havia o que ele escondia do outro lado. O mundo exterior nunca antes visto por nenhum outro Classe C. Ou melhor, uma das supostas engrenagens do mundo exterior: uma rosa. À distância, bem no fundo, era possível ver aquela flor carmesim. Plantada firmemente no que devia ser uma multidão de pequenas protuberâncias esverdeadas. De caule igualmente esverdeado, esguio e de aparência suave. Verde. Tão verde. Apenas não tão marcante como a cor das suas pétalas, do seu corpo escarlate, rubro, flamejante. Apaixonante. De tamanha singularidade e beleza que me fez esquecer os espinhos escondidos a revestir o caule. Aqueles traiçoeiros gumes de dor providenciados pela natureza a fim de afastar malfeitores. No entanto, acho que isto é o que é uma rosa, não é? Uma combinação de luz com escuridão. De beleza e fealdade. Trata-se de uma mistura equilibrada entre apreciação e aversão. Precisamente como descritas por Leo nas raras ocasiões em que ele se dava ao trabalho de responder às cobaias que devia manter em ordem. Creio que os meus olhos se arregalaram algures no meio da minha admiração. Senti as minhas pupilas dilatarem, inclusive. Nem me posso culpar por ter reagido de forma espalhafatosa. Passei o dia anterior a ouvir as palavras dos guardas, de entre os quais Leo, a conversar sobre isso. Tudo porque alguns Classe C numas celas ao lado da minha não paravam de falar sobre o mundo exterior. Por isso, a melhor forma que eles arranjaram para os calar foi falar até à eternidade sobre o assunto, na esperança que os ignorantes na matéria ficassem saciados ou simplesmente calados num silêncio sepulcral ao perceberem a tamanha complexidade da matéria. Bem, funcionou. O ruído cessou e sempre consegui entrar no sono ou lá como os cientistas lhe chamam. Sim, adormeci. Mas adormeci a pensar no que eles tinham dito. Nas tais árvores com braços enormes chamados ramos. Os dedos de relva a crescer no chão que dizem ser castanho, signifique isso o que significar. Em correntes líquidas e translúcidas. E nas flores, flores a exibirem uma palete de cores cuja existência nunca soube. Flores como a rosa. Cores como o vermelho. Eu aproximo-me da falha com vista direta para o plano oculto para qualquer um dentro daquela instalação. Apoio uma mão nas rugas da parede, encerro um olho e uso o outro para mirar na flor. Contemplo-a em silêncio. Na quietude que os soldados desejavam de qualquer Classe C. Se ao menos eles soubessem que a prática vale muito mais do que a teoria, eles teriam todas as alas quietas. Bastava ceder às súplicas dos prisioneiros. No caso de ontem, tudo se resumia a mostrar aquilo que eles tanto queriam ver. Garanto que ninguém iria piar. Pois eu nem consigo dizer nada de tamanha incredulidade. Por alguma razão, recordei-me das palavras dos guardas. Especialmente naquilo que Leo disse. Sobre o facto de existirem outros seres vivos como nós por aí. Exato, seres vivos. Essa foi a palavra que ele usou para se referir também às plantas. Uma peculiar escolha de palavras. Quer dizer, pelo que percebi, nós também somos seres vivos. Com isto, digo que somos indivíduos que pensam e respiram. E, como tal, vivem. Todavia, aquela flor...tenho a certeza que ela não respira ou pensa e que, como resultado, não vive. Certo? Mas, se assim é, porque é que Leo disse aquilo. Os soldados não se deviam enganar. Este é o mundo no qual cresceram. Eles são os nossos testemunhos da realidade que só agora consigo vislumbrar por entre a falha na muralha de concreto e betão. Não podem estar equivocados. Ou pelo menos não deviam estar equivocados. A não ser que estivessem a fazer de propósito para induzir-me a mim e a todos os outros Classe C que também estivessem a escutar a conversa em erro. Ainda assim, se assim fosse, o que é que teriam a ganhar com isso? O que teriam a ganhar a enganar pessoas que nasceram há poucos dias? Já para não falar que os meus olhos comprovam a veracidade da descrição deles. Ao menos a descrição que eles deram das flores, das rosas está certo. E a minha experiência prática está a corroborá-lo. Portanto não, eles não mentiam. Assim creio. O que não me deixa tão confortável quanto queria. Sim, leva-me a acreditar que eles não mentiam e, apesar de tudo, não me livra da dúvida. Deixa-me ainda a questionar. A matutar a mesma pergunta, a mesma dúvida, a mesma constatação. O exato e idêntico porquê de antes. O que é que uma flor e um ser vivo têm em comum? Observo atentamente as curvas das pétalas no rebordo da detalhada obra da natureza. Mastigo o lábio ao mesmo tempo que inconscientemente arranho as lascas de tinta branca gasta com as unhas da minha mão de apoio. A esbranquiçar-me os dedos. A fazer a minha mente viajar por entre o pouco conhecimento que colecionei em aproximadamente um dia de vida. A vasculhar. A buscar e a voltar a buscar. A mastigar o meu próprio lábio no processo. A raciocinar e a processar o que vejo. A piscar o olho direito responsável por este ato de espionagem e a voltar a focá-lo na obra diante dele. A admirar. A passar os meus dedos manchados de branco pelos limites pontiagudos do buraco. A infiltrar o meu dedo indicador no mesmo, a passá-lo por entre o que restou do incidente que orquestrou esta brecha. A evitar encalhá-lo com as outras camadas da parede. A conduzi-lo rumo ao seu destino. Rumo ao toque, ao contacto, à proximidade. À descoberta, à suma e total entrega à aventura, a vivências nunca antes experienciadas ou vivenciadas por qualquer outro Classe C, a uma vida real- Um estrondo faz-me retirar o dedo do furo e virar-me para trás quase por instinto. Os meus olhos movem-se de um lado para o outro com urgência maníaca. Rastreio o cenário. As outras duas paredes. A parede à minha direita. A parede à minha esquerda. Todas brancas. Olho rapidamente para o chão. Limpo, salvo as impressões digitais dos pés descalços dos prisioneiros que evacuaram o recreio há demasiado tempo atrás. Há quanto tempo é que sequer estou aqui? Perdi a noção do tempo. É a pensar neste tema que passo o olhar pelo solo debaixo de mim, indo desde os meus dedos gordos e nus até à fronteira que demarca o fim do recreio, até à cancela de metal pintada de vermelho levantada, até aos portões de ferro encarnados, até ao corpo de costas no chão e envolto numa poça de sangue. Os meus olhos não só repousam na visão à minha frente. Eles cravam-se nela. Cravam-se como nem se cravaram na rosa. Fincam-se naquela imagem nova para mim. Nova ao ponto de nem ter ouvido falar dela durante o dia de ontem, nesta minha curta vida. Um homem. Careca. De estatura média. Massa muscular mediana. Com ar de duas dezenas de anos de idade, mas que sei não ter vivido mais de dois dias. Enfiado num uniforme branco comprido a cobrir-lhe os braços, pernas, tronco, tudo exceto a cabeça, as mãos e os pés. Um ser vivo. Metido numa poça do próprio sangue. Escarlate sangue a envolvê-lo, a molhar as suas costas e nuca. Vermelho sangue a abraçá-lo, a sair-lhe pelos cantos da boca e a escorrer para junto da foz que banha toda a secção anterior do corpo. Rubro sangue a acolhê-lo e a espalhar-se, centímetro a centímetro a afastar-se da fonte que é o corpo. Ruivo sangue a fazer do solo branco um canvas, oriundo de um incidente que eu nem consigo imaginar. Encarnado sangue a escapar-lhe do corpo como o mundo exterior nos escapa à vista, a manchá-lo e a marcar aquilo que presumo ser o seu fim. Carmesim sangue a traí-lo, pois o fluído que outrora estava dentro dele agora escolhe vazar e trazer o seu fim. O fim, pois reparo que o seu peito não sobe nem desce, os seus dedos estiraçados não têm espasmos em reação a serem molhados, as suas pupilas estão imóveis, o seu nariz petrificado, a boca aberta a demonstrar os seus dentes amarelados, as sobrancelhas permanentemente presas na exata mesma posição, os glóbulos oculares...baços...baços como os vidros das janelas pelas quais os indivíduos de bata observam as experiências às quais expõem as suas cobaias...às quais nos expõem. Acontece é que desta vez, a cobaia não foi submetida a nada. E o mundo trouxe-lhe o que presumo que seja... ... a morte. Na verdade, eu não o conheço. Nunca o vi. Deve ter estado numa cela longe da minha. Não sei, não estou vivo há tempo suficiente para perceber. Porém, sinto pena dele. Afinal, olhar para ele é como olhar-me no espelho da cela. Então, eu quebro a minha passividade. Desato a andar. Reconheço que a rosa e o vislumbre do mundo exterior distraiu-me da minha tarefa de seguir a rotina que me foi atribuída e a todas as outras cobaias. Logo, teria de fazer por regressar aos eixos. Depressa. Antes que os guardas dessem pela minha falta. Em passada larga, eu circundo a poça de sangue em crescimento sem que suje os meus pés. Por muito que tenha dó dos restos mortais do homem, sei que, se não me despachar, mais tarde ou mais cedo terei o mesmo destino às mãos dos guardas. Podem não esbanjar muito, mas os cientistas asseguram-se de avisar-nos sempre relativamente à abundância de armas de fogo no arsenal dos soldados. Lá no fundo, agradeço-os por estas advertências ocasionais. Neste momento começo a ver o uso delas em trazer-nos de volta ao caminho certo a levar. Como são úteis em retirar-nos das distrações hipnotizantes que encontramos no caminho. A andar rapidamente, deixo para trás o recreio. O buraco. A fenda com um vislumbre inédito do outro lado. De um novo mundo, de um novo início. A vista igualmente inédita que tive da morte. De um fim cuja existência desconhecia. Não me esqueço do que vi. Limito-me a empurrar tudo para um canto da minha mente. Para um local que seja acessível, facilitando a minha consulta num momento mais oportuno. No entanto, enquanto caminho, não consigo deixar de me abstrair do cenário. De me retirar do presente e recostar nos meus pensamentos frontais. Os meus pensamentos acabados de surgir, aqueles que ainda não tive tempo de negligenciar e organizar. E dou por mim assoberbado pelas questões e pelo quão semelhantes são com as que já tenho. Aquilo era a natureza? Leo mentia? Para que serve a flor? De onde é que veio o buraco? Quem é que o fez? Quem poderá ter sido o autor, sabendo que esta pessoa causou a brecha muito provavelmente consciente de que seria punido? Será que esse indivíduo foi apanhado? A morte é mesmo um fim? O que é que aquele homem fez para ficar assim? O que é ao certo a morte? Porquê logo aquele homem em específico naquele instante em específico? E, acima de tudo, a resiliente e teimosa questão: o que é que um ser vivo e uma rosa têm em comum? Pensei, pensei e pensei, mas não cheguei a lado nenhum. Quando chegou a altura em que julgava estar a fazer algum avanço, os gritos dos soldados À frente da fila de Classes C cortou-me o raciocínio. A seguir, infelizmente somente me ocorriam linhas e linhas de texto preenchidas com o meu nome. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Orlo. Depois de uma pausa reflexiva é que dei por mim a pensar na poça de sangue. No quão vívida era apesar de ser um sinal do contrário. No quão sedutora era. No quão viscosa parecia. No quão fria devia ser, quase tão fria como o chão em que piso. No quão vermelho era. Tão carmesim. Carmesim como a rosa que vi através da fresta que nunca deveria ter lá estado.
- Quando o laço cai
Nem sempre posso fazê-lo. Mas quando tenho a possibilidade de desamarrar o laço e vê-lo lentamente a tornar-se num só fio contínuo, enquanto anseio rasgar o embrulho de forma a preservar, ainda que mal e porcamente, a sua integridade, os meus olhos viram estrelas, mesmo aquelas que já morreram, mas que para nós continuam a brilhar. O que vai ser desta vez? Os meus pais mantêm a cara vazia de sempre, provavelmente para eu não descobrir o que se esconde por detrás dos quilos de papel que vão diretamente para o lixo (ou, com sorte, para a reciclagem). Começa a aparecer um fio de cabelo, parece-me algo familiar. Com nuances castanhas, mas despenteado, nota-se que andou bastante tempo a abanar dentro da embalagem. Um rosto sereno sobressai, como de quem se encontra agora em paz. A roupa dela era perfeita, exatamente aquilo que eu estava à espera. Rosa, cintilante, vinda diretamente de um conto de fadas – ainda que a minha fada madrinha se tenha esquecido do dinheiro debaixo da almofada, continuo a acreditar nela. Agora que a vejo por completo, tenho de ter muito cuidado para não a estragar. Seguro-a bem perto de mim e peço baixinho que me proteja, que nos proteja, a mim e à minha família. Espero. O silêncio devolve-me apenas a respiração dos meus pais. Espero mais um pouco. Nada. Só me resta imaginar um “vai ficar tudo bem” da parte dela. Mas já ouvi essa frase antes, e sei que nem sempre é verdade. Ainda assim, ela é tudo o que sonhei. Há tanto tempo que pedia uma boneca. Agora está finalmente aqui, comigo. Mas, por mais que tente, a minha imaginação não consegue enganar os sentidos. Primeiro é o cheiro. Não é perfume doce de loja, não é o aroma plástico das bonecas das revistas. É um cheiro a terra húmida, a pó entranhado, a palha seca. Tento afastar esse detalhe, mas o toque confirma o que o nariz já sabia: a pele dela é áspera, feita de fibras e cordas que me arranham os dedos quando tento entrelaçar os meus nos dela. O meu coração aperta. Levanto os olhos à procura de uma explicação. Mas os meus pais não se movem. Continuam a olhar-me com aquele rosto gasto, cheio de rugas que parecem histórias não contadas. Histórias que eu não sei se quero ouvir. É nesse instante que compreendo, talvez isto é tudo o que resta de um mundo onde ainda se oferecem presentes. E então decido: ela é perfeita porque tem de ser. Abraço-a com mais força contra o peito e digo-lhe em segredo o nome que escolhi. Porque, se eu acreditar o suficiente, ninguém me poderá convencer de que esta não é a boneca mais linda que já existiu. E talvez, se eu acreditar ainda mais, ela me consiga devolver aquilo que o mundo insiste em tirar: a esperança de que, um dia, vai mesmo ficar tudo bem.
- A melhor alternativa política
O mapa autárquico mudou este domingo. A vitória do PSD nos cinco maiores concelhos do país, Lisboa, Porto, Sintra, Gaia e Cascais, destacando a capital, foi para a esquerda, sobretudo para Leitão, inesperada. Escrever sobre política e poder local é, por mais estranho que pareça, menos linear do que sobre política nacional ou internacional. Neste caso, o meu objetivo não é analisar detalhadamente os resultados autárquicos de todo o país, mas interpretar o resultado especialmente baixo do Partido Socialista em Lisboa. Culpo parte deste fracasso ao destaque que a ala bolchevique do PS ganhou nos últimos anos. Com Pedro Nuno Santos, o país ficou a conhecer, ou conhecer melhor, uma nova classe do partido, neste caso a dos políticos profissionais extremistas. O "neto de sapateiro", título que depois se veio a provar como falso e exagerado, entrou na juventude do partido com apenas 14 anos. Porém, não ficou necessariamente mais competente, como veio a provar pelos conhecidos escândalos do "whatsapp" enquanto ministro das infraestruturas. Quando o descrevo como extremista, não o faço com base em campanhas ou em ações, mas sim em convicções, até porque a sua campanha foi sempre baseada num discurso brando para pensionistas, o que lhe garantiu o falhanço histórico de pôr o seu partido em 3º lugar, atrás do Chega. Pedro Nuno é, e sempre foi, um radical. O caso de Alexandra Leitão não é muito diferente. Ao participar numa coligação com o Bloco de Esquerda e o Livre, a antiga líder parlamentar põe-se num lugar estrategicamente errado numas eleições autárquicas, assumindo um papel muito mais à esquerda do que ao centro. Não sei se Leitão também queria ter estado na Flotilha, mas esta coligação assegurou-lhe o resultado miserável que todos vimos. Escolher coligar-se com um partido como o BE, que ao longo dos anos tem diminuído exponencialmente a sua expressão, chegando a ter apenas um assento parlamentar atualmente, é, no mínimo, ingénuo. Curiosamente, a agora vereadora Alexandra Leitão não se demitiu, mesmo depois de se ter responsabilizado por esta derrota humilhante para o PS. Ficou apenas pela promessa de uma "oposição firme". As palavras de José Luís Carneiro não foram, na minha opinião, especialmente inspiradoras. O atual secretário-geral socialista afirmou no passado domingo que o seu partido é, agora, a melhor alternativa política. Por este andar, não vai passar disso. Um partido com 50 anos de história não passa hoje de uma oposição fraca e ténue ao PSD e ao Chega, como mostraram as últimas legislativas. Pior ainda é a responsabilidade, ou falta dela, dos seus líderes. É, para mim, inconcebível que Leitão não se tenha demitido depois deste resultado. Não sei que oposição pretende fazer como vereadora, mas não vai facilitar as funções do atual Presidente da Câmara, nem que seja por uma questão de orgulho. Agora, os socialistas só podem esperar por um resultado melhor nas eleições presidenciais de janeiro. Talvez com um candidato mais moderado, como António José Seguro, se possam voltar a sentir representados. Até lá, apenas podem relembrar glórias passadas ou esperar pela ressurreição milagrosa de Mário Soares ou Jorge Sampaio.
- Perfidious and powerful player
Perfidious and powerful player, Ally and adversary of ambiguity. Ravaged, it renders all men Anthropophagi, racing to bite off the Burden of their own bitter heads. Enchant me not, tenacious creature! No more nightly nurturing of the Seraphic sphere can I take. Do not draw down, Divine Selene. Admonish me, oh Aphrodite! Incited I’ve been by such tender incense So unceasingly; so oft, Yearning is my recompense
- Por quanto tempo?
Forçados a servir como meros espectadores pelos nossos governos - quer a nível nacional, quer a internacional -, todos os dias acordamos para ver horrores indescritíveis nas telas dos nossos dispositivos. Nós vemos, eles vivem. Por quanto tempo é que a etiqueta do “anti-terrorismo” servirá para destruir a vida de populações? Por quanto tempo é que o capital servirá de justificação para o extermínio? Por quanto tempo? Por quanto tempo? Não necessito de dizer ao que me refiro para a plenitude dos que me leem compreender do que falo. Por mais “inútil”, “irrealista” ou “utópica” que a Flotilha Sumud (Resistência, Perseverança) fosse, serviu de alba, numa esperança de raiar, durante a madrugada escura. A inutilidade tem sempre uma função e tudo vale a pena se a alma não é pequena. De facto, quando o “ativismo de sofá” sai de casa, também as ideias se movem. Se é verdade que dizer slogans e colocar bandeiras no perfil do Twitter é fazer a política de forma passiva, também é verdade que, caso isso produza a mínima manifestação material - quer seja individual, organizacional ou política -, vale a pena. Mas não é tudo. O mesmo se aplica à tentativa de limpeza de consciência que se deu com o reconhecimento da existência do Estado Palestiniano - basta dizer “Sim, vejo que existes e não és resultado da minha imaginação”, ou será que não é tudo? Não há debate dócil o suficiente para abafar os gritos que ecoam em todo o mundo. Desde a solidariedade dos trabalhadores italianos, a cada poema ou artigo inútil, como este. Ouça-nos um, ouçam-nos todos. Do rio até ao mar. Talvez um dia sejam vingados. Tenho a certeza, contudo, que esse dia será demasiado tarde. Um parágrafo num livro de História nunca trouxe almas de volta.
- Falhanço humanitário Global Sumud
À partida, uma frota, ou como ouvimos incessantemente nos media no último mês, flotilha com fins humanitários teria a missão nobre, meritória e politicamente neutra de levar recursos materiais à população civil da faixa de Gaza, que pouco ou nada tem a ver com a posição do Hamas ( e muito menos de Israel ) sobre a legitimidade de anexação do sítio onde vivem. Contudo, não foi o que se observou. A flotilha Global Sumud, onde se encontravam personalidades da esquerda portuguesa, alegadamente financiada através de angariações individuais e campanhas de organização de fundos, foi mera campanha política no panorama português. Da esquerda à direita, é unânime afirmar que, atualmente, a política em Portugal se faz, muitas vezes, através de popularidade, frequentemente recorrendo a redes sociais, a programas de televisão populares ou a entrevistas sensacionalistas. Não é coincidência que os partidos com uma aposta mais forte em plataformas tão simples como o TikTok apresentem uma clara vantagem no eleitorado jovem, como se verificou com a ascensão do Chega nas legislativas de 2024. A flotilha e a sua interpretação por parte de ativistas e atores não escapou à regra, o que levou a que se tornasse num instrumento para aumentar o número de likes e de seguidores que tinham nas redes sociais. É evidente que Sofia Aparício não decidiu em setembro que se devia candidatar a Secretária Geral da ONU, e que Miguel Duarte, embora ativista, não se queira juntar aos médicos sem fronteiras. Quanto à flotilha, as dezenas de barcos que, entre si, incluíam os navios militares espanhóis sob comando de Sanchez, esta foi claramente tomada por Israel como uma afronta, um desafio. Os membros de Global Summud não chegaram, propriamente, num bote a remos. Vinham rodeados de navios militares de um membro da União Europeia, o que não é, de todo, irrelevante no contexto internacional. Pelo contrário, é determinante a um ponto de levar à sua vigia por parte de drones israelitas, e posteriormente ao aprisionamento temporário de vários membros. Hoje, afirmo convictamente que a missão da flotilha se perdeu, se é que alguma vez existiu. Será que levaram realmente ajuda humanitária e que a qualidade de vida dos habitantes de Gaza melhorou, ao ponto ínfimo de não passarem fome e sede durante meras horas? Ou terá caído no erro de ser um “ trampolim “ para a projeção do Bloco de Esquerda em posteriores eleições?
- Cantiga do Rei Louco
Majestades, perdoai, o Rei está louco, de outrora inabalável, caiu qual pouco. Autoproclamado, perdeu-se na razão, o povo já duvida da sua condição. A imagem ruída, tão fraca, tão vã, a antiga rainha recorda o que nele era chaga. O castelo de cartas desmorona, é certo, confiança perdida, o trono já deserto. Majestades, perdoai, o Rei está louco, Repete histórias, sempre remendadas, quando ouve da falecida lembranças passadas. Mas não esperava tamanhas reações, agora os súbditos riem das suas invenções. A antiga monarca ausente, culpada é tida, pela loucura régia, tão bem servida. Nos banquetes farto de boas companhias, afoga-se em copos, promessas vazias. Julga-se senhor de poder e vontade, mas não vê que perdeu já toda a autoridade. Majestades, perdoai, o Rei está louco, Pensa ter tudo seguro, nome e posição, mas já ninguém o segue, reina só ilusão. Cego de vaidade, crê-se ainda superior, quando o povo murmura: “Sabemos quem sustentava o seu labor!” Muitos perguntam, entre riso e desgosto, se não foi afinal a antiga rainha quem fez o posto. E o rei, louco e preso na sua vaidade, cai cada vez mais na dura realidade. Democracia! — grita, cheio de engano, Mando sobre todos, mas ninguém manda sobre meu pano. Enquanto ri a corte, em segredos bem guardados, já se trama quem ocupará os tronos abalados. Quando um rei fraqueja, trocam-se peças, ficam os restos, a coroa em promessas. Majestades, perdoai, o Rei está louco, Planeava grandeza, mas só fez engano, culpa dos outros, nunca do soberano. A Inquisição agrada-lhe, decapitar o vilão, Entre amigos sorri, mas em praça nega a mão. Planeia a ruína de quem ousa contrariar, Mas diante do povo finge nunca julgar. Tenta enganar os súbditos com lábia e mentira, mas todos sabem bem da sua cobiça e ira. Por mais truques que use, ninguém se deixa levar, o povo já conhece o rei e o seu fingir sem par. Sonha com os cofres, o ouro a dominar, oculta segredos, e a todos tenta enganar. Só pensa em fortuna, poder e ilusão, faz do sonho de trono o seu palco de traição. Majestades, perdoai, o Rei está louco, Ora diz ser presidente, ora veste coroa, anda como louco, a corte não perdoa. Vendido a todos, mas engana ninguém, Fala bem de uns, e de outros fala também. Tudo pela atenção, pelo sonho do poder, Só tem lábia, nada sabe fazer. Se à presidenta se atrever a ir, nenhuma vitória há de conseguir Ela age com naturalidade e sem fingir, não precisa mil máscaras para se fazer aplaudir. Ela governará de forma simples, sem truques ou engano, Ele só quer poder, custe o que custar, vendia a alma inteira só para reinar. Majestades, perdoai, o Rei está louco.
- Tenho um cérebro muito cusco
Tenho um cérebro muito cusco. Numa ridícula curiosidade desavergonhada, vai sempre mais além para conseguir manter-se informado. Ora corre então para junto do coração para discretamente - quase passando despercebido - ouvir o que este sente: faz se de amigo…até põe o ombro a jeito, mas é óbvio que só quer arrancar os seus segredos mais profundos. Desbocado, começa a matutar naquela informação e, não tarda muito, desata num frenesim para a partilhar com os amigos - naturalmente muito desejosos de o ouvir, sedentos de algum entretenimento. Ora então contando e descontando, a saltitar por toda a parte vai aquele pequeno segredo que, de tantas voltas dar, acabou por retornar ao coração - pobre coitado, já se julgava mais leve. Em pânico e descrença, o coração começa a andar do lado para o outro - tum tum - cada vez mais impaciente - tum tum tum tum tum tum – despenhando-se até aos pés; daí sobe num turbulento impulso pelas pernas, fazendo-as tremer por toda a parte. No entanto, a caminho de ir reclamar com o cérebro pelas suas inconfidências, fica preso na barriga e rebela-se: à medida que força a sua fuga vai deixando um buraco…um vazio incomodativo. Por fim, sai disparado pela boca, estatelando-se nas minhas mãos. Derrotado. Cansado daquele corrupio sem fim, que o levou a dançar pisando-o e partindo-o a cada passo. Mas ao menos, já cá está fora - já não sente. Já não pode ser vítima das armadilhas do cérebro. Já não se magoa mais.
- Coloco tudo isto na minha lista de afazeres
.... ver vestidos para a gala ir buscar os meus óculos estudar não me esquecer que a ***** quer almoço segunda ir ao ginásio não me esquecer da maquilhagem comprar a prenda de anos da minha mãe apanhar autocarro às 14:30 Coloco tudo isto na minha lista de afazeres. Dependo disto para me lembrar das coisas, por mais importantes que sejam. Sem a fisicalidade, irei-me esquecer. Até da prenda de anos da minha mãe. É patético. Não sou nada mais do que um casulo oco de alma. O dia a dia é cansativo, mas tão cheio. Não o suporto. Não me suporto. Sinceramente também não há muita gente que o faça. A este ponto é um sentimento partilhado. Já fui tanto e há tanto que ainda quero ser, há tanto que sei que nunca serei, e há tanto que imagino que esteja destinada a me tornar. Tudo me envergonha, tudo me magoa, tudo me desconcerta. Não sei se é do mundo, se é de mim. Sinto que pertenço e estou onde deveria estar. Quero morrer. Mas nem para morrer sirvo. Sei que sirvo para amar, contudo não acredito se algum dia servirei para ser amada. Sei que me sirvo a mim mesma. Sou escrava da beleza, da arte, da tentativa de atingir a perfeição. Estico as mãos para ela como quando Miguel Ângelo pintou a criação. Ando de gatas por uma gota do néctar dessa bela virtude e regozijo-me nele à mínima chance que posso. É um prazer momentâneo ao qual me agarro. É o sexo mais casual da minha vida, aquele que tenho com a minha própria imagem ao espelho. É supérfluo. Insuportável. Odeio-me. Não aguento olhar-me nos olhos por mais de um segundo que seja. Olho apenas para a beleza. É o que tenho e posso oferecer. Olhem para mim! Vejam-me composta! Vejam-me bem sucedida! O que eu vejo não me importa. O que eu sinto é irrelevante. Porque sou como os outros, o mais cansativa e normal que poderão ter. Sou profundamente aborrecida e cansativa e intensa. Intensa em tudo, até nesta inércia de vivências da qual nunca poderei recuperar, para sempre presa neste buraco negro para onde arrastarei aqueles que me derem a mão. Vai a mão...vai o braço...vai o torso...a mente...o coração...consumirei tudo daqueles que se atreverem. A fusão da normalidade com a incerteza apenas me assusta. Dizem que não há experiências originais, mas ainda bem que não, pois não quero estar sozinha. Não estou perdida, mas também não há muito que possa fazer para me encontrar. Capitã de um navio sem nome, sem autorização para atracar em porto algum. Quando atracar eu saberei...se algum dia o fizer.
- Vejo-os no natal
Acordar, tirar café, ver mensagens que mandei antes de adormecer, sentar à secretária, abrir o computador e rezar para que a placa do teclado ainda não esteja desfeita. UFF ainda não foi desta. Respirar de alívio. Queimar a língua. Esperar que o café arrefeça, gato escaldado de água fria tem medo. Acabar a beber café frio e aguado, e agora parece melhor que apenas tivesse deixado queimar. Enviar uma candidatura. Duas se calhar, não vá o diabo tecê-las. Amanhã repetir, sem grande vontade mas também sem grande enfado. Levantar e bater com o dedo mindinho na mala, porra, mala aberta no meio do quarto, mala vazia, mas pelo menos está escancarada não vá ela num laivo de coragem empacotar tudo de repente e partir. Partir, dar beijinho ao avô com lágrimas nos olhos. Vemo-nos no Natal. Não é corajosa, nem destemida, não pertence ao mundo, mas teme-o, tem que ver por si, com os próprios olhos. Sem particular interesse por nada, mas curiosa com tudo, vai seguindo, fones nos ouvidos, caneta na mão, vai abrir o caderno onde despeja os sentimentos. Para a meio, está a mentir. Risca, porque a caneta não se apaga. Começa de novo. Agora a verdade. Naquela noite dormiu mal. Não lhe apetece sair, tem coisas para escrever. Não muito boas, mas suficientes. Também não mediocres, trabalhou em si própria, acha que muda todos os dias e o lobo frontal que só se desenvolve aos 25, a paciência de esperar. É bom que chegue por lá com aliança no dedo, filhos pela mão, e um de colo. Com ou sem carreira? Só porque alguns sonhos são diferentes, isso não os torna menos importantes. Ou qualquer coisa com que se pareça, frases feitas pelo meio, voltar do inicio, ao início? Sobre ontem, quando dormi mal e sobre esta manhã quando bati com o mindinho na mala, e amanhã quando for repetir e beber café frio, porque antes estava demasiado quente e esqueci-me de que era preferível queimar-me a bebê-lo frio e não importa porque depois volto. Volto aqui, a repetir, afinal vou sair, mesmo que não me apeteça. E elas que são as minhas preferidas, jantar de despedida, presente de despedida, despedida no aeroporto, pai de carro engatado e lágrima de lado, próximos meses vai sozinho à bola, eu talvez volte mais mais elucidada, de fones nos ouvidos, vejo-os no Natal.
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